16 de maio de 2016

KROMM - Imperador de Jade - Parte I


Já faz algum tempo... Faz algum tempo que nos conhecemos e conversamos por aqui. Tenho mostrado tantos escritos e só tenho a agradecer o carinho de todos durante esses anos. Finalmente, porque todos aqui já sabem que escrevo esse livro desde 96. O blog, nos ídos de 2000 hospeda esses contos, que foram reunidos, costurados e lançados de forma independente só agora.


Então convido a todos para conhecer os meus trabalhos, incentivados pela pandemia, à entrar no mundo, por PORTALOS, quer dizer, pela amazon. Não á fácil publicar, não é, ainda mais no formato de ebook, sem publicidade paga, sem anúncio, sem editora e no meio de uma pandemia onde não há eventos. Convoco todos a espalhar esses bons ventos. Kroom chegou na terra, e vocês são os responsáveis.


https://www.amazon.com.br/s?i=digital-text&rh=p_27%3AJaque+Machado&s=relevancerank&text=Jaque+Machado&ref=dp_byline_sr_ebooks_1


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Notas Iniciais           

Este é um livro sincero e não tenho pretensão alguma além de contar uma história nova e usando recursos um pouco inusitados e diferentes.              

 Queria poder tê-la contado com palavras dignas dos meus ídolos literários, mas coube a mim essa tarefa, farei ao meu modo. A expectativa de apresentar-lhes esse mundo é grande, por que esses personagens, esse mundo, me consomem diuturnamente.                

O continente de Kroom foi concebido com o intuito de colocar no papel pessoas, cenários e acontecimentos que me atormentavam à noite, insistindo para que lhes desse vida. Uma exigência que me tomou noites de sono e prazos de outros compromissos, por muitas vezes me consumiu completamente.          

 Volto a falar da criação ambiciosa que demandava tempo, um tempo que ao longo dos anos foi sendo caro para mim e tornando-se escasso. Superestimei minha capacidade criativa, que assim como o tempo livre, também foi diminuída. Tive medo  se ser lida, de ser julgada ruim, mas venci este medo: Valéria me ameaçava à noite, confesso temê-la mais do que aos leitores. ​          

Houve um hiato, um momento de afastamento deste trabalho.  Retomei às criações anos depois, porém não com o mesmo conhecimento deste mundo e tampouco com o mesmo furor criativo, mas somente porque Ben Adam, Tantalus, Fineas e tantos outros desconhecidos (principalmente Valéria e Carniça) me acordavam durante a noite me forçando a registrar seus apelos.

A maturidade e a exigência sobre a criação me demandam longos períodos, porém não os satisfiz como pretendia, considero meu trabalho algo do qual não tenho mais orgulho do que vergonha, pois preocupei-me mais com a técnica, confesso! No entanto fazê-los conhecer essas criaturas que aqui vivem é uma necessidade que me consome, bem como ter que tornar público esse Mundo todo, sob protestos constantes de mim mesma: "não está bom!". Mas, eles me pedem, me exigem e demandam tudo de mim.        

Estas criaturas, lugares e acontecimentos são memórias vivas de algo muito tangível para mim: um universo de que fui Criadora, uma Deusa na essência teísta poderiam dizer os crentes, e é com essa idéia que lhes apresento a narradora da história: a entidade onisciente e onipresente que empurra e entorta as molas mestras de Kroom, balançando o tabuleiro, porém sem interferir no movimento das peças. Ela é capaz de contemplar o passado com amplitude, mas jamais conhece o futuro, apesar de nada lhe escapar sobre o presente.

               Assim, tentei ser o mais fiel possível a tudo que me foi transmitido por esses seres imaginários que pude sentir na pele, que me emprestaram suas emoções, seus olhos e suas vidas para contar essa longa história. Antes preferiria não escrever, a escrever histórias incompletas ou das quais não tinha pleno domínio e conhecimento pormenorizado, hoje a liça de criar já não é tão desgastante e me preocupo menos com a rigidez criativa e mais com o valor do texto e da narrativa. ​Essa tendência ao detalhismo, que foi amenizando e que para mim se tornava um empecilho à conclusão do trabalho, me empurrou para fora da linha de improvisação que deve fazer parte das qualidades de um bom escritor.

Portanto, tenham paciência com as longas descrições de cenários, personagens e batalhas, com o pensamento dos "bonecos" (é como os chamo), que divaga longe, por vezes. Tenham a certeza de que cada personagem foi criado com carinho, melhor, foi descrito com carinho, porque são eles que veem a mim.

Vou adivinhando o que querem e fazem, eles estão vivos e não posso mais controlá-los.         Hoje fico humildemente satisfeita, em contar ESSA estória. Essa pequena e longa estória, por horas bonita, outras terrível, às vezes divertida e sempre  inesperada. E as memórias desses acontecimentos estão dispersas pelo mundo. Não são contadas na cronologia de um tempo contínuo, estão enredadas e se misturam assim como nossos próprios pensamentos. São confusas ou muito cristalinas às vezes. São difíceis de compreender, assim como são os sonhos e este é o meu sonho. Esse mundo que chamam Água Viva (termo cunhado pelo Esteta Parmindes de Nicéia em razão da infinita quantidade de vida nas águas marinhas e continentais, bem como pela ocasião do batismo da gema ou jóia que recebe este nome) ou, simplesmente, Kroom (nome dado a essa porção de terra pelos povos originários que foram se miscigenando aos imigrantes empurrados para lá nas ondas de migração impostas por seguidos cataclismos), foi palco de guerras constantes na porção de terra situada entre os intransponíveis desertos além de Sabo, entre o Mar de Cima e os Mares Austrais, além das terras congelantes de céu azul e verde.

Nesta estreita faixa de terra para onde os povos do mundo foram migrando devido desastres naturais de eras imemoriais é onde se passam os acontecimentos. Uma terra governada por um Rei eleito, que hoje tem seu poder submetido ao Conselho dos Povos livres Unidos. Houve guerra no passado, muitas vezes, mas a última guerra foi especialmente devastadora e por isso os povos se juntaram para combater um inimigo ameaçador: os bandeiras sombrias, a flâmula tenebrosa cujo general era um homem capaz de coisas sobrenaturais.

Viu-se após o fim da guerra, diante da intensa crise, a necessidade de arregimentar uma estrutura de organização continental, de controle social e ideológico, bem como de manutenção do assistencialismo que chamaram de Escola dos Mistérios.

O comércio floresceu novamente nesse tempo de paz, o conhecimento progrediu a passos largos, houve tempo capaz de servir como solo fértil para o desenvolvimento de toda uma civilização. Mas a paz não é capaz de ser para os vivos uma sensação perpétua e a guerra sempre é um fantasma que vem assombrar a todos, como diria o Decano Mestre Egídio, neste mundo não é diferente.

Aqui há heróis que não são dignos e vilões que nem são tão maus assim. São criaturas cinzas e cheias de humanidade, bons e maus, assim como nós, tão complexos como jamais gostariam. 

A leitura inicia no Prólogo, com um culto ou aula pública, ao qual os Preletores dos Mistérios dão o nome de Patronagem. Nele refletem sobre os ensinamentos, princípios e leis arcaicas de Kroom, depositando juízo de valor de acordo com o entendimento da corrente a qual pertencem nas escolas: racionalista ou jusnaturalista. Vencer esse capítulo é importante, pois nele está contigo todo o conhecimento sobre o passado deste continente, bem como a mitologia, nele ficam estabelecidas algumas regras iniciais para a leitura.

É necessário saber que Kroom é uma zona continental que existe dentro de um mundo vasto, uma zona miscigenada e cuja cultura é o resultado da mistura de todas as lendas, do conhecimento oral e escrito dos povos que chegaram ali depois dos grandes cataclismos que dividiram as terras à sua volta e que deixaram a maior parte das outras áreas continentais, ao que sabem as personagens, completamente inabitáveis, seja por condições climáticas, geográficas ou atmosféricas. 

A lenda mais antiga, colocada a termo pelo Esteta Giovane de Trivontela, faz um apanhado sobre a tradição oral dos povos de Kroom, remontando ao um acontecimento conhecido como "A Entrada dos Deuses no Mundo", muito antes da reorganização das Escolas de Mistérios, portanto ainda na era politeísta. Hoje, Kroom tem uma religião monoteísta, onde aquele a que chamam D'us, no passado recebia milhares de outros nomes, cada povo tinha seu demiurgo. Com o intuito de uniformizar os ensinamentos, constituindo a religião e sua instituição como forma primordial de organização da ordem social, é que foram unificados os mitos da criação com o nome dessa entidade primordial nomeada de Primeira consciência ou D'us (feminina e masculina ao mesmo tempo). Esses Deuses chegaram ao mundo de Kroom entrando por Portalos, uma ilha insular que hoje guarda os restos de um grande portão de pedra, quase que completamente derruído, onde nenhuma vegetação significativa cresce. Depois de entrarem no mundo fundaram as primeiras comunidades e foram tidos como Deuses. Hoje a religião trata tal conto como uma referência de símbolos para a colonização dos primeiros Vivos que chegaram nessas terras, sendo que desembarcaram primeiramente naquela ilha rochosa e depois se espalharam pelas porções continentais de Kroom.

A guerra foi uma constante neste mundo e mudou e muda a todo momento o movimento e a cultura dos povos que habitam os condados, vilas e cidades do universo deste livro.

Apresento pouco do passado das personagens, ou, um pouco de cada vez, para que tenham tempo de capturar a essência abstrata que carregam, por que aos vivos foi dado o livre arbítrio, e também, por que não há profecias, conforme dizem os Patronos e Patronesas, cada um pode mudar seu próprio destino. 

Logo, não podem ser definidos por seu passado, tampouco por aquilo que venham acreditar que seja seu futuro. São criaturas efêmeras em sua existência e estão mergulhadas no caos e sorte dos dados que o tempo rola.                                      Os idiomas constantes na obra são uma referência à línguas do planeta terra, não tenho a mesma aspiração de outros escritores, no momento, de debruçar-me sobre a criação de um sistema de signos próprio destas personagens que aqui se encontram.

Mas, para que entendam minimamente onde a ação se passa, explico de início um pouco sobre as Cidades Gêmeas: Harpis e Coptset, a Cidade da Lua e a Fortaleza do Sol, respectivamente.

Foram as primeiras comunidades de que se tem registro, chamadas de Primeira e Segunda Cidades Anciãs, embora não reste muito delas. Na Cidade da Lua remanesce a Torre e o Templo reformados, bem como o aqueduto, que se encontra em ruínas. Na Fortaleza do Sol a torre dos aposentos reais é a única parte ainda original, o resto da cidade antiga encontra-se soterrada por construções modernas e pelas várias camadas de tijolos amarelos. Cresceram e se fortaleceram amamentadas pelo rio mãe, Rio Ausar, que cruza todo o continente e se vai ao sul até Nicéia, ao Norte até a foz da Baía de Ouro, onde inicia o dourado Mar de Carabeus. Pertenciam a um mesmo Rei, mas seus filhos dividiram as cidades buscando o domínio da principal rota de comércio e navegação, mas principalmente por que cobiçavam a  uma mesma gema, a Água Viva.

Sobre a face de Kroom habitam muitos vivos, como se autointitulam, os chacais, híbridos de homens e chacais, os mais variados fenótipos de Kolbis (bípedes, não bípedes, verbais, não verbais, ferais, humanóides e crocodilianos), um povo guerreiro que se reproduz sem necessidade de machos (as chamam de guerreiras, no feminino, mas elas próprias não se reconhecem como pertencentes às convencionais padronizações binárias humanas), os solarinos ( o povo autóctone de Kroom e quase dizimado e que recebe este nome por que hoje seus descendentes existem somente nos arredores de Solar das Laranjeiras), os Gorlionianos (pouco se sabe sobre eles, exceto que algumas lendas dizem que viviam nas terras de pedra de água) e diversas outras criaturas que serão apresentadas no decorrer da leitura.                         Talvez deva falar-lhes um pouco sobre a Escola de Mistérios, que existe em cada cidade, vila ou aldeia de Kroom. Peregrinos podem se curar de ferimentos e obter assistência social, bem como podem enviar seus filhos para que sejam iniciados nos Mistérios do Mundo, da natureza, da sabedoria dos vivos, do estudo das forças metafísicas, das artes e ciências. Cada Escola tem um Patrono ou Patronesa Decanos, e este escolhe uma ordem para seguir (um destes objetos de estudo).  Existem duas correntes de entendimento sobre o prisma pelo qual esses mestres enxergam o mundo, e já falei sobre elas. Como cada local tem uma Escola, geralmente os condestáveis, administradores e Reis recorrem aos Patronos Decanos para tratar de assuntos como política, leis, comércio, arquitetura, ciência, etc. É permitido ao templo e seus discípulos ser instrumento para a canalização das forças da natureza e de D'us, sendo considerada por eles a magia algo inexistente, reservado à práticas da manipulação de outras forças pelo homem, seja através da ciência ou de uma outra fonte não natural.

O tempo em Kroom é contado de acordo com o avanço das constelações sobre o céu, ao que o período em que uma constelação demora para cruzar o estertor noturno chamam de signo. Cada constelação é um signo, com observações de padrões sobre a reação do mundo naquele dado espaço de tempo: as colheitas, o clima, a mudança da vegetação, como se comportam os hábitos reprodutivos dos animais. São quarenta e dois signos ao total, identificados como animais, uma volta completa sobre a roda (instrumento que utilizam para marcar a passagem do signo) é chamada de siglo. 

Logo, o tempo e sua passagem são observados de maneira diferente da nossa, sem a percepção de unidades de tempo que não estão relacionadas a acontecimentos naturais.

Espero que vivam e sintam como as personagens sentiram, como os senti, e que ao final venham ao mundo os sonhos dos quais jamais conseguiu fugir com dignidade. 

 

  Jaque Machado 

 


 O passado e o presente

Do fosso de sacrifícios as sombras correram para a borda, galgando suas paredes, seus tijolos de pedra, engolindo cada espaço. O fosso e ela estavam frente a frente, mal conseguia conter-se diante do pavor inominável que habitava a escuridão, o próprio medo era oprimido ali. Sob seus pés o chão se movia, a tenebrosidade devorava o som, pressionando sua mente,tamponando seus ouvidos, ensurdecendo-lhe. 

      A escuridão movia-se na direção daquela mulher, que usava a veste daquelas que são proibidas, avançando disforme. Porém, havia esse breve momento no qual parecia tomar formas, como se dentro dela pessoas estivessem aprisionadas, contorcendo-se, e estendendo suas mãos em busca de socorro; vultos das praias dos mundos inferiores. Assim ele havia soprado levemente aos seus ouvidos, aquilo que estava lá no fundo e que lhe descrevera, em diversos sussurros na sua mente: "as praias mais distantes de mundos iguais e completamentes diferentes deste".              Aquele era o seu toque, frio, incompreensível, aterrador. Capaz de despertar as emoções mais primitivas e as lembranças atávicas mais insuportáveis, insanas, por que seu poder devastador nascera dos espasmos iniciais da existência, quando a Primeira Consciência ainda andava sozinha no vazio.        A lama a desejava desesperadamente, tentando agarrá-la pelos tornozelos e trazê-la para si, foi tão intenso aquele pavor que a jovem tentou fugir, mas era tarde e estava paralisada. Sua mente acelerada estava viva, mas seu corpo imóvel era gelo e pedra. 

     A tenebrosidade tocou-lhe os pés e foi subindo. Ao devorar-lhe a carne, hirta que estava pelo horror, sentia os ossos enregelarem, cada indivisível parte de si transformou-se em mínimos cristais pontiagudos e apinhados, verdes como jade. O corpo congelado expandia, trincando por debaixo da pele e revelando mínimas fissuras, como finas varizes daquele verde vicioso. A agrura combalia seu espírito e o arrependimento de ter se deixado seduzir por aquelas vozes lhe comia o peito. Logo ela: a mulher livre que andou por todo o mundo, aquela cujo ventre deitou as criaturas de Kroom.  

      A escuridão a devorara inteira, arrastando-a para o fosso na forma de centenas de mãos e garras. Seu corpo estava coberto com uma armadura viva de lama, porém dura como a própria entranha da terra, a pedra eterna cuja corrupção do tempo jamais a alcança.     A jovem tentou respirar e livrar a boca e o nariz do piche, tão escuro como o alcatrão e tão irrespirável como a queima da Água Viva, porém se via sufocada, enquanto se debatia inutilmente: seu último grito foi abafado pela mão pesada e gélida das sombras e seu olhos, antes de se fecharem por completo, brilharam como duas lamparinas verdes na Noite Mais Escura. Depois a escuridão penetrou pela garganta e desceu rasgando tudo o que encontrava, até chegar ao peito, onde, como a força da explosão que deu origem à própria existência, destruiu-lhe o coração.          -Este é meu legado, minha amante, o legado que deixo ao mundo onde nunca mais poderei viver. - ela ainda conseguia ouvir as vozes, como uma e mil ao mesmo tempo,  ecoando na sua mente- é assim que recrio o mundo: à partir do caos.  
















Prólogo

-“Havia uma pedra no topo do existência.” - O Sacerdote levantou-se dos bancos de pedra onde estava sentado junto à audiência e subiu no púlpito elevado citando a primeira frase do Livro dos Mistérios, enquanto passava a mão sobre o cabelo de uma criança que corria ao pés do elevado. E quando subiu no parlatório seguiu-se um momento breve onde todos peregrinos se organizaram e começaram a silenciar sob protestos de chiados de ordem com dedos sobre os lábios.

Ben não se importava em conduzir a cerimônia com um toque de informalidade, desenvolvera seu estilo próprio de oratória, cuja idealização vinha de muito tempo porque sempre desejou estar com suas velhas sandálias sobre a madeira lixada do Parlatório da Escola de Mistérios da Ordem da Lua. 

O Bardo e Sacerdote fez uma mesura ao Patrono de Letras Atticus de Penhascoforte, que acabara de deixar a tribuna e fez uma brilhante explanação sobre a etimologia do “Existir” presente na Passagem Poética da Liturgia “O Terceiro Filho de D’us”.

Aquele era o encerramento da temporada, a estação dura estava próxima e o  público era grande, por isso Ben queria trazer uma fala que refletisse as sensações de caridade e os objetivos nobres que devem residir na alma dos peregrinos, principalmente no inverno, onde a indiferença mata mais que tudo. Então Ben tomou o Cânone na liturgia da criação e iniciou a leitura àqueles ouvidos atentos que estavam no Templo, no Primeiro Havdalá do Primeiro do signo do reinado de Ben Adam de Quran e Susana de Niceia:

“Havia uma pedra no topo do existência acima da pirâmide do mundo, criada por D’us ao despertar de seu sono. Despertado, o olho onisciente da própria criação se abriu e passou a brilhar como uma estrela, todo o tempo, e não havia noite. Então, D'us, moveu-se para a direita e deixou que um filho saísse de dentro da Primeira Consciência. E soprou nele uma dádiva. E moveu-se assim mais seis vezes em um círculo, criando sete filhos, cada qual com seu dom. Sete foram as palavras de D'us e também foram sete as notas musicais. As cores foram sete e sete foram as forças do mundo.”

O Sacerdote interrompeu a leitura enquanto segurava suas vestes sobre os joelhos e caminhava ao redor do púlpito olhando para a assistência:

-Vejam filhos de D'us, o homem é uma criação espontânea tal qual a natureza. Ele é parte do todo porque veio de Nossa Senhora da Primeira Consciência. Cada homem com seu ímpeto é amado pela Primeira e quando tudo se extinguir é a ela que retornaremos. Vejamos- e prosseguiu a leitura avançado para um outro trecho-Os irmãos não possuíam bom relacionamento e para tornarem-se mais poderosos por diversas vezes, tentaram roubar a Pedra de seu lugar na criação. D'us zangou-se com o comportamento dos filhos e para castigá-los ordenou que a Pedra fosse enterrada no sopé da montanha mais profunda. E então, com a pedra oculta veio a escuridão. Os filhos procuraram muito por ela, indo fundo na terra. O Sétimo Filho, caminhando pela superfície caiu num desses buracos cavados pelos irmãos. O buraco era muito profundo e não conseguia sair dali. Tão entranhado era que atingia as fundações da terra. E ficou sozinho por longas eras. Estendeu seus braços para o topo tocando quem ali passasse, mas todos se incomodavam e tinham medo daquela escuridão profunda. E Sétimo ficou lá, amargurado e só, jamais foi retirado por ninguém. No início ficou triste e muito infeliz, ressentido de que ninguém fora resgatá-lo. Depois ficou com raiva. Ódio! E seu coração ficou intoxicado com tais sentimentos. Ao final ele quis vingança e com o passar das eras tornou-se vicioso.” - o Sacerdote dirigiu-se aos ouvintes, esticando e torcendo as sobrancelhas ruivas com a ponta dedos, enquanto gesticulava para a aprendiz lhe alcançar a flauta - Essa passagem sobre as primeiras eras da existência nos mostra como é possível que o homem através da sua autodeterminação venha a escolher os sentimentos que deseja nutrir, levando em função disso, os acontecimentos de sua vida para um destino. Tal destino, ainda que de difícil retorno, pode ser alterado pois somos todos seres conscientes e de vontade própria. O Sétimo escolheu ser dominado por seus sentimentos mais viciosos, assim, o colapso dos bons sentimentos dentro de si o levou à sua ruína. Ninguém quis se aproximar dele pois ele queria ferir aqueles que o faziam e assim também é na vida. Ao vivo amargurado que se deixa contaminar somente pelas obras ruins dos irmãos e irmãs, sem conseguir ver o mundo com esperança e felicidade, esse irmão padece sozinho. Isso porque, vazio de amor, quando alguém se aproxima para ajudá-lo acaba execrado. Precisamos de amor. Precisamos nos permitir receber o amor, abrir as portas da alma para a empresa exitosa da vida. D'us nos ensinou formas diversas de sensibilidade para exercitar a candura das almas, uma delas é a música.  Agora, vamos ouvir uma canção que nos  foi ensinada por D’us. - o bardo tomou a flauta e soprou as notas que os Deuses legaram aos vivos para sua alegria: “A Balada dos Deuses”, como era conhecida a longa e repleta sinfonia da criação do mundo. O trecho executado pelo Bardo era a Canção da Dissonância. E era como ouvir as terras rachando-se, os rios desviando seu curso, como ouvir o som terrível do aço das espada se chocando na guerra. Era como a fúria das camadas duras da terra deslizando sobre um fundamento de desconforto e injustiça. Uma sensação crescente de inquietude e inconsonância que se encerrava abruptamente, sem transitar por qualquer área harmoniosa. O que despertava na platéia imanente desconformidade, e esse era o objetivo de Ben. 

Após a emocionante e triste canção o Bardo recobrou-se e retomou o Livro dos Mistérios, continuando a leitura:

-”Compadecido dos filhos em meio à escuridão, D'us, piscando seu olho de fogo criou um sol quente e avermelhado para iluminar os dias, que chamou de Havdalá. E criou também três luas, uma delas muito lenta e fria, para clarear  e refrescar a noite, afastando o breu da escuridão completa. Uma segunda a cruzar tão rápido o céu que surgia uma vez no horizonte junto com o sol, indicando o início do dia e depois junto com a lua fria marcando, o início da noite. Porém, havia uma terceira lua, a escura. Que cruzava o céu uma vez ao mês, simbolizando o início de tudo, lembrando a todos da escuridão profunda. A Lua Sombria era capaz de encerrar até o dia e levava uma manhã, uma tarde e uma noite para cruzar o céu.” Algum de vocês consegue nos dizer sobre o que se trata essa passagem?

Uma mulher levantou a mão, e falou, em Copta: 

-Sobre o amor dos pais. 

-Também. -concordou o Sacerdote, apontando-lhe o dedo -Essa passagem fala de um sentimento que é comum aos pais também porque seu amor é genuíno e essa passagem fala sobre a compaixão e como ela, sendo um sentimento tão honesto, pode modificar completamente a realidade. Modifica por inteiro os termos da existência de todos tocados por ela, porque um gesto de bondade e compaixão nos arranca da dureza, aquece o nosso interior de fora para dentro. A compaixão aqui nessa passagem, literalmente e metaforicamente, ilumina. A bondade pode tocar alguém e alterar-lhe de tal maneira que ela mesma passará a ser um agente de mudança para si e para outros. O indivíduo vê que isso é bom e as circunstâncias de seu pensamento se aproximam cada vez mais do plano da realização.

O Sacerdote tomou um gole de vinho enquanto a pequenina Helena  passava com um cesto de pão entre os peregrinos que ouviam as palavras no Parlatório. As paredes frias não eram capazes de afugentar o calor que todos recebiam do templo, tampouco o frio acossava a desenvoltura do homem maduro que fazia sua fala com a chama viva da fé e do prazer de levar compaixão ao próximo.

   O Sacerdote prosseguiu a leitura enquanto o pequenino aos pés do púlpito gracejava para a plateia entupindo a boca de pão:

 -”Uma vez que tornou a ver a face da terra, D’us não conseguiu encontrar dois de seus filhos: o Primeiro e o Sétimo. Ordenou a todos que se pusessem a procurá-los, porém ninguém obteve sucesso. D’us, muito triste e compadecido da perda de seus entes queridos, deitou-se e dormiu eternamente. A dor da perda. - Disse o Alto Sacerdote fechando o livro e marcando as páginas com o dedo, e  fez uma pausa dramática.- A dor da perda é tida como insuperável. Ela é vista assim porque não conseguimos compreender a morte no auge de nossa ignorância. Foi-nos dito que o fim da existência é o retorno à Primeira Consciência, à unidade singular onde a carne, o volume e o tempo não mais existem da forma como conhecemos. Mas é difícil que consigamos compreender isso, porque é difícil esclarecer que saem os vivos desta existência, que possui forma e condições particulares de vida que nos são conhecidas e crer que possam estar em boas mãos em um lugar que não é sabido pelos entes queridos que remanescem. As aparências dessa vida se manifestam através das Leis Universais estabelecidas por D'us, lá no momento inicial da criação, que nomeamos “as forças do mundo”. Ele fez as cores, os sons, as dimensões matemáticas da flor da vida. Essas são as suas regras  e o prisma pelo qual enxergamos a realidade que nos cerca. Com a morte devemos entender que as regras da existência são outras diferentes daquelas a que estamos acostumados enquanto vivos. Para que possamos compreender que a morte não é um fim devemos estabelecer que D’us nos deu uma dádiva além da sensciência: a consciência. Nós, os vivos, nos tornamos uma unidade independente e ao mesmo tempo indissociável do todo. Vejam, isso é lindo e bom! D’us fez conosco o que um Pai e uma Mãe fazem a um filho; eles tem o poder de criar a vida, uma nova consciência. São Deuses em seu  mundo, daquele ser que vem ali e que é totalmente independente e  ao mesmo tempo não o é. E então, essa é a sua criação e um dia ele morre. Desse modo o pai e a mãe, eles não compreendem naquele momento a perda, passam à uma negação irascível. E vejam,- o bardo espremia os olhos com a mão sobre o coração- os sentimentos dolorosos são criados pela ignorância, isso faz com que os pais chorem a perda dos filhos e não compreendam que aquilo que chamam de morte é na verdade o retorno à Primeira Consciência, o estado puro da criação. Assim, trata-se a morte de um regresso à essência primordial e elemental da onisciência, uma volta para o lugar de onde tudo vem.

Sunamon contornou o púlpito com o jarro de cerveja e ofereceu aos Patronos convivas que também ouviam as Palavras do Sacerdote, balançando suas cabeças e concordando com o sábio Ben Adan. À Sumidade foi entregue a taça de vinho quente de especiarias:

-Assim, meus tão pacientes ouvintes, eis o Mistério da Vida escrito nas pétalas da flor da criação. Tu a tu. -então todos responderam em coro com a mesma fala.

O Bardo bebeu o vinho, inclinando a taça vazia na direção de Sunamon e a depositando sobre o chão de madeira no primeiro degrau do altar. Sentou-se ali, puxando as vestes sobre os joelhos e abrindo o livro do Mistérios, sorriu para o pequeno que ali brincava, depois retornou para a leitura enquanto duas ouvintes faziam um breve gracejo sobre as canelas finas do Sacerdote:

-“O primeiro filho cavara ao sopé da montanha, onde nas profundezas do mundo encontrou a Pedra maravilhosa que o Pai escondera. E permaneceu quieto nas entranhas da Terra para que ninguém viesse arrebatar-lhe o penedo. Tomou as terras ocultas nos subterrâneos do mundo como sua morada e chamou a Gema de Chesteb. Foi lá que o Primeiro viveu, iluminado pela luz da gema fria e gélida como o cosmos, mas terrivelmente magnética como a vontade da própria vida. Assim, ele a cobiçou por longas eras naquele abisso e seu maior empenho era para que não a tomassem de si.” O que nós vemos nessa passagem? Sobre o que ela fala? -Indagou o Sacerdote para sua atenta audiência.

-Ganância? -Sugeriu um fiel esticando a cabeça para ver o rosto do Rei.

Coçando a barba ruiva, ele respondeu:

-Exato! A ganância! Importante falar sobre ela.  Vejamos o que significa “ganância” segundo o livro dos verbetes do Grande Preletor que hoje nos honra com sua presença, Senhor Áticos de Penhascoforte, meu Mestre. - desejava abrir um outro livro e pediu a Sunamam para trazê-lo com um aceno. - “Ganância (origem copta): cobiça ou desejo intenso, imoderado por bens e riquezas. São correlatos do verbete: usura, egoísmo, cupidez, interesse, cobiça, avidez, ambição, usura, desejo, ciúme.”. Os chamo a pensar: o que seria a ganância, considerando essa descrição, senão um desdobramento da propriedade? A propriedade! A maior origem de vícios e desentendimentos. Ela é a expressão maior do errôneo apontamento de que a natureza deve servir aos vivos. Errado! Errado! A propriedade é una! É um legado natural da criação para todos os vivos usufruírem, deve servir a todos e não à um vivo distintamente. O que vem dos vivos sim pode ser apropriado de forma adequada, cada um é dono daquilo que consegue fazer e erigir com suas próprias mãos. O suor do trabalho do homem deve ser recompensado, somente isso. Porquê, ao passo que o trabalho do vivo constrói e é infinito, na razão da existência desse vivo, a apropriação da natureza como um fim em si consome a criação. Considerando que os recursos naturais são finitos e por essa razão não podem estar disponíveis para todos de maneira igual, exsurge a desigualdade primordial. Quando alguém se apropria da natureza um outro alguém não terá acesso a ela. E essa desigualdade se intensifica na medida que a propriedade é maior. Então, se um tem muito e muitos não tem nada, qual a justiça nisso? A solução é que a natureza não é fruto do trabalho do homem, logo não há razão para receber remuneração pela propriedade que possui. Ao homem só pertence o seu trabalho e a ele que deve ser devida a correspondente remuneração. Da propriedade vem a guerra, meus caros peregrinos, cujo objetivo é retirar de outro aquilo que não se têm. 

O sacerdote serviu ele mesmo mais um pouco de vinho e o fez descer pela garganta seca com um gole só, estirando as veias do pescoço como fazia sempre desde quando cantava nas tavernas e o canto lhe ressecava a goela:

-É sobre isso de que trata essa passagem: um alerta sobre a origem da exploração dos homens pelas mãos dos seus próprios irmãos. Uma parábola sobre a alienação da propriedade e a usura pelo estado natural. O real resultado é que para alguns só lhes resta o trabalho puro, sem a terra e as ferramentas para exercê-lo e nesse compasso eis que aquele que se apropria da coisa natural para a usura também acaba por se apropriar do trabalho do vivo desapropriado. As consequências dessa prática, que desencoraja a remuneração do trabalho e enaltece a exploração dos vivos, é o empobrecimento da maioria. O que é veementemente censurado por D’us na interpretação dos Mistérios da Escola da Lua, porque a criação deve ser usufruída por todos de forma igualitária: somos todos iguais na medida do amor com que fomos colocados no mundo. É isso que colocamos aqui todo Havdalá e que as outras escolas de mistérios distorcem porque querem continuar perpetuando as suas posses, justificando nos escritos sagrados as estruturas de poder e controle das riquezas. Pensem nisso meus filhos. 

Essa foi a palavra de hoje.

O Bardo repousou o livro sobre o degrau do púlpito e uniu as mãos formando um triângulo com os dedos e polegares em oposição:

-Oremos para a chama que nos lembra que existe um fim para o dia escuro, mas que também há o dia escuro e que ele não pode ser o nosso fim. Na fé sem reflexão não há Luz, somente escuridão. 

E todos repetiram em coro: “Tu a tu”.

O Parlatório foi esvaziando após os fiéis levaram o pão e a cerveja distribuídos pelo sacerdote entre sorrisos e abraços de conforto.

Atticus, que permaneceu ouvindo a Patronagem de Ben, foi ao encontro daquele homem simples que fora seu pupilo e que tornara-se Rei, foi aproximando-se com os braços longos e bronzeados dos Solarinos, bem abertos e depois o trouxe para si num abraço cheio de entusiasmo enquanto um sorriso vinha largo sob o bigode alaranjado:

-Meu amigo, é sempre tão bom ouví-lo! É muito bom retornar à esse Parlatório, sempre muito bem Patronado! Cheguei no início da manhã e fui recebido por Susana: “Ben está no templo!”, veio dizendo e me empurrando pelo portões com os modos costumeiros dela e vejo que Sunamam está bem, embora não tenha tido chance de conversar com ela cochichou que grandes nomes passaram aqui nessa temporada: Joyce de Mataguda, que é sua favorita, Baruc de Shadai, Parmínedes de Niceia, Nossa Sumidade Fineas de Penhascoforte e Mestre Agenor. Vejo que estiveste ocupado trazendo grandes Patrícios Jusnaturalistas!

-É sempre um prazer reencontrar os nossos porque há muito o que fazer!

-De fato! Estou velho, mas não tão velho que deva abandonar tudo agora, que é quando os vivos mais precisam de coerência para reerguer-se da guerra. Estive pensando: precisamos formar uma mentalidade que afungente a sombra da autodestruição. -O patrono esticou a boca fazendo o bigode encostar no nariz, o velho cacoete que Ben achava tão engraçado e do qual se lembrava desde que Atticus o fizera entrar para a Escola de Mistérios, meio à força. Cria que se o velho Mestre o raspasse, não seria mais o mesmo mesmo.- as pessoas não podem mais viver pela cultura do ódio. Temos que dar um bom exemplo, tudo o que fizemos foi por uma boa causa! - o velho Preletor repetia isso toda vez que sentia o peso da culpa pelas coisas que fizera no passado, mas afugentou as lembranças abanando a mão sobre o rosto- Confesso que se soubesse de antemão que tais eminências patronariam aqui, teria vindo passar a temporada. Acabei visitando Parlatórios das Escolas de Mistérios em Portogaivota e na Ilha de Bar, lugares que considero necessitar de uma atenção especial nesse momento delicado de pós-guerra.- enquanto conversavam iam caminhando pela saída lateral do templo em direção aos jardins do pátio, vislumbrando o sol matinal sobre o tijolos azulados de uma marquise que percorria o largo corredor aberto, enquanto pavões bem criados passeavam pelo assentamento laranja.

-A situação dos Jusnaturalistas não está boa no Leste pois não há sequer um Patrício Jusnaturalista Patronando diariamente, só Racionalistas! E, aposto, indicados por Edir Gramateus de Shadai, minha mea culpa cabe aqui por criar esse monstro debaixo da cama! - completou o Patrono, enquanto observava a neta Sunamam encerrar seus afazeres, puxando os portões do templo.

-A influência dele cresceu muito na Convenção Racionalista. - completou Ben Adam tentando amenizar os sentimentos do velho mestre enquanto acendia um charuto, presente de Mestre Egídio: o fumo de especiarias e óleo de laranja mais cobiçado no Oriente. 

- É... - completou o velho Atticus reticente. -Muito em breve será nomeado para tornar-se o Alto Sacerdote da Escola de Mistérios da Ordem do Sol da Fortaleza, são esses os rumores que rondam as convenções de que participei. Aquele prodígio de merda poderia ter ficado do nosso lado quando planejamos tudo. Mas é um hipócrita porque vai ocupar um dos cargos mais altos, mesmo odiando o que foi construído quase do zero por todos nós. Me dê uma fumada desse negócio - Atticus foi puxando o charuto e colocando a fumaça para dentro com a avidez que tinha para consumir tudo e continuou, devolvendo a delicatessen para o pupilo enquanto esticava a cara e erguia a sobrancelhas, apreciando o sabor do fumo- e eu digo que muito rapidamente será a Sumidade Oriental! -E riu, apertando o braço de Ben Adam, que ocupava o cargo atualmente. -Meu filho, ainda bem que há, bem na frente da morada daquele jovem ambicioso, uma Escola famosa pela tradição Jusnaturalista para acabar com a putaria desses escravagistas comedores de macaco cru - referia-se ao comércio de vivos, contra o qual recentemente haviam aprovado uma moção de abolição. Tal comércio também mantinha acesa a chama se certos costumes, como a extravagância de consumir, entre a elite, macacos vivos nas festas opulentas do Sudeste. - Não deixemos que a convenção racionalista persevere, temos que aumentar nossos esforços diante disso! Mas vou indicar alguns nomes de Patronos Patrícios para que Vossa Sumidade Clerical, querendo, nomeie-os para essas comarcas tão desprestigiadas de Luz.

-Isso é nosso dever e  nossa obrigação moral! -emendou Ben - Mas cá entre nós, Mestre, chame-me de Ben. Esse cerimonial, essa formalidade, sempre me deixa envergonhado e confuso e vamos caminhando, quero tomar uma boa cerveja de aveia, me acompanha?

E Atticus lhe respondeu enrugando o rosto inteiro:

- Não, agradeço. Cerveja em viagem me deixa com a sensação de que pareço um grande balão pronto para galgar os céus. -justificou o Patrono, sem muita convicção ao empurrar o ar com as mãos.

Riram do gracejo enquanto bem abria as portas da varanda que ficava bem à frente dos jardins, um lago de pedra bordado de verdes evaporava água estimulado pelo calor tímido do primeiro sol da manhã, enquanto pássaros cantarolavam aqui e ali dando pequenos pulinhos sobre a amurada do lago. Ben continuou: 

-Fiquei encarregado de Organizar a Convenção Jusnaturalista daqui uma quarentena, poderia me ajudar com isso. Faríamos uma moção para indicar Patronos dispostos a ir para lugares onde não ocupamos nenhuma cadeira fixa. - e hesitou com o dedo no ar- Reconheço as dificuldades que os Patronos vêm passando, afinal estão tendo que reconstruir alguns templos e Parlatórios, muitos do zero. Entendo que não podemos obrigar ninguém a ficar em uma comunidade que não deseja, não nessas condições, mas alguém tem que fazer esse serviço! Essa guerra foi devastadora e os ânimos em determinadas regiões ainda não são de paz. A prova disso é que Ainda há rebeldes em Represagorda!

O Patrono de Penhascoforte coçava a barriga grande e inchada quando o Bardo percebeu que a ponta dos seus dedos estava escurecida por demais: a velha doença da cerveja o vinha comendo aos poucos e sem parar ao longo dos signos. Atticus apertou o rosto e depois continuou:

-A bem da verdade, passei muito rapidamente por lá. Fui recebido pelo comissário  e naquelas condições achei muito gentil da parte dele me abrigar por duas noites numa zona safa de Represagorda. Veio a mando de Endro que estava combatendo imperialistas perto de Evreskaya, sempre há conflitos para restauração do Império Kaisar naquela região. Mas hoje acredito que não teremos mais problemas com esses homens por lá porque uma praga horrível se alastrou na região. Matou o Rei Jassen, coitado é bem feito, nunca gostei daquele velho malvado! Os domínios foram isolados e uma zona safa foi construída para abrigar os povos de Evreskaya numa estreita faixa de Represagorda: entre o Bosque da Represa e o Braço da Leoa. Eu vi com meus próprios olhos, Ben, muita pobreza. Então me comprometi com o comissário e aqui estou, indo ao Conselho na Última Vila Mais ou Menos ao Norte e à Baía de Ouro para aprovar uma moção de repatriação temporária. Ah sim! As coisas estão tensas por lá com os estrangeiros em Represagorda,  não demorou para a peste chegar e isso foi logo após a minha saída. E por sorte, Fineas estava, ou esteve ( não sei se foi embora) em Evreskaya para auxiliar no tratamento dos doentes, incluindo Sara de Kaisar, que foi levada para  Represagorda. Infelizmente, ou felizmente eu penso, não em tempo de livrá-la da contaminação! Morreu a filha daquele monstro homicida que destruiu todas as terras! Ela foi a única vítima de Represagorda até o momento, soube disso por lá e foi o próprio Finéias que a encontrou morta. Mas é esse o impasse, filho, uma fronteira cheia de doentes e uma população revoltada com o asilo do outro lado rio.

-Sim, eu soube. -Disse Ben, enquanto servia-se na varanda de uma caneca de cerveja de aveia junto à tina que estava próxima à entrada da biblioteca. Os Patronos sentaram e tiraram as sandália. Ben Adam pediu a aprendiz que trouxesse água quente para os pés dos dois e prosseguiu, deixando a barba ruiva cheia de espuma acima da boca.- Fineas ao retornar para Penhascoforte esteve visitando o Rei Tantalus Dágoras, me juntei a eles na Fortaleza para beber e fazer o de sempre, queria purgar a saudade. Soube de tudo o que me disseste porque ambos estiveram no Sepultamento do Rei Jassen em Represagorda, nem ocorreu em Evreskaya! Mas não é tudo, também há novidades: ele não voltou sozinho.-e completou, com um largo sorriso no rosto -O nosso querido Rei firmará União Familiar, finalmente!

E Atticus abriu um sorriso tão largo quanto, os dois se aproximaram, riram e se abraçaram. Ben Adam passou o dedo na linha d’água e afastou algumas lágrimas de alegria enquanto os dois trocaram olhares de sincera e real felicidade pelo Rei.

-Ai, ai... Então é isso. - Patrono Atticus disse a si mesmo inebriado, lembrando de quando fora o Preletor daquele homem na infância.- Acho até que vou aceitar aquela cerveja! - e levantou-se gemendo e estalando as velhas espaldas, enquanto caminhava, e ria sozinho na direção da tina.


O que os homens fazem na escuridão

Israel correu como um sorro no meio da mata, foi andando com o archote apagado, se esgueirando de pinheiro em pinheiro. Deslizando junto à relva na clareira, caindo alguns tombos, mas procurando manter-se nas sombras para que o homem que seguia não o visse. 

Ele não queria estar ali, mas sabia que deveria, afinal, desde o dia em que aquele estranho enfiara o pé na porta de sua casa, que ficava na herdade sob proteção de Eduardo Minarica, e ali se instalou, comendo do pão e da carne que sustentava a família, sua vida virara uma desgraça. 

Um ciclo de lua vinha durando aquele inferno, sabia que não poderiam continuar vivendo assim. E o Estranho nada falou ao chegar, mas tinha uma ar soturno, a pele acinzentada, um cão feroz que o acompanhava. Fez de toda a família de Israel reféns em sua própria casa.

Arrancou-lhe a irmã da cama na noite alta, despertando a todos, com o cão infernal latindo desatinado, fazendo sinal para que fosse para o chão, e dormiu na enxerga aconchegante sobre o leito, sendo vigiado pelo cão, que de vez em vez pestanejava aos seus pés.

O Estranho exigia a tudo sem falar nada. Sentava e comia calado, queria ser servido e deixado em paz. Então, ao seu bel prazer os fazia sentar e comer junto dele, entre mãos trêmulas, coisas caídas e o choro irrefreável da irmã de Israel.

O pai tentara apunhalá-lo pelas costas uma vez, o que fez com sucesso, mas o Estranho sangrou pouco e botou o cão para cima do pobre velho, fazendo arrancar-lhe um bom pedaço da panturrilha. E desde então ninguém mais tentara nada, ficaram à mercê daquele Estranho na desventura daqueles dias.

Quando se demoravam a trazer o que queria ou a fazer o que comandava com a mão, já descia o punho sobre a mesa, e o cão começava a latir incessantemente incutindo um pavor nos nervos trêmulos.

Eis que na noite mais escura o homem deixou a cabana e sem saber se ele voltaria ou não, Israel se esgueirou pela mata querendo descobrir seus assuntos.

E foi rumando em direção à velha mina de prata.

Israel, mantinha distância razoável, mas acompanhava a luz da lamparina que o Estranho carregava. O cão parava de vez em vez, como que percebendo que estavam sendo seguidos, mas o amo o mandava tocar adiante, estava com pressa e sua desvantagem era a luz, essencial naquela noite de breu.

Quando entrou no portão da mina, a claridade que Israel perseguia se encerrou, e ele ficou tateando os bolsos até encontrar o isqueiro e pôr fogo no seu archote. O que fez com dificuldade, pois suas mãos tremiam de nervosismo, afinal, ainda não tinha certeza se não estava sendo visto. Por conta disso ainda derrubou seus aparatos e demorou a encontrá-los no chão, antes de fazer o fogo e a luz.

Mas assim que fez, aproximou-se devagar.

De súbito pensou que não haveria como entrar ali sem ser percebido e lembrou-se da entrada lateral onde brincava com alguns meninos quando pequeno.

No tempo que a mina ainda estava ativa um túnel lateral fora cavado por ladrões para retirar as riquezas na calada da noite. Mas assim que um dos três túneis principais desabou a mina foi condenada, e hoje nada mais que morcegos saíam e entravam guiados pelos dormentes apodrecidos na direção do céu noturno.

Então Israel foi se esgueirando pelo buraco apertado, empurrando o archote à sua frente. O calor do fogo era demais e a testa do rapaz brilhava banhada pelo suor. Então sentiu-se sufocado em seguida o fogo foi mirrando até se extinguir. Mas o Jovem não parou e foi avançando com dificuldade através do estreito canal na rocha.

Foi que, quando pensou que não podia mais suportar aquilo começou a ouvir vozes e uma claridade muito tímida se anunciou. O túnel desembocava no salão principal do segundo corredor, numa cavidade alongada, cuja escada era formada de pequenos sulcos na pedra.

Mas Israel não desceu, ficou oculto pelas sombras da cavidade, primeiro somente escutando muitas vozes entoando um canto ininteligível. Depois colocou a cabeça para fora e viu que eram muitos homens (ou mulheres) não sabia ao certo, pois a penumbra era grande e a pouca iluminação lançava sombras nos baluartes do salão. 

Primeiro cada um falava uma coisa e depois todos juntos começaram a repetir o mesmo trecho, mosregem, ele entendeu. Então se fez o silêncio, e o homem à frente elevou uma arma acima de suas cabeças, uma espada quase sem lâmina que emitia uma pálida luz verde, tingindo o interior da caverna de um doentio tom esmeralda, como se estivessem todos submersos em um lago de água verde musgo.

Então Israel colocou a cabeça para fora da cavidade novamente e viu o misterioso estranho indo na direção daquele que seria uma espécie de mestre. O cão latia alto e reverberava nas paredes do salão, derrubando grãos de areia do teto inteiro.

Quando o Estranho estava próximo o suficiente, o mestre, sem piedade nenhuma, o atravessou com o toco de lâmina que ainda restava no cabo da adaga, e a luz cintilante penetrou através do seu corpo, iluminando o sangue que fluía no Estranho. A arma foi removida, mas o homem não caiu, ficou de joelhos, mortificado, mas vivo. E após todos retomarem aquele cântico é que o Estranho se ergueu e foi enfaixado, o que pareceu ser o ponto alto da celebração. É claro que Israel não ficou para ver o resto e saiu com pressa e desajeitado pelo túnel. Ganhou à floresta e foi tentando acender o archote no caminho, tropeçando por tudo, ofegante. Há uma certa distância fez o fogo e correu no bosque de pinheiros com apenas uma única idéia, retirar sua família dali e procurar ajuda na casa do condestável. O que fez, com pressa e sem retirar os pertences do lugar. 

Mas quando voltou com ajuda, nenhum sinal do Estranho restava, tampouco do culto que anunciara ocorrer na mina abandonada, nem do ritual sinistro que o Condestável julgou que o jovem pensou ter visto. Tudo uma alucinação na Noite Mais Escura.

Quanto aos danos sofridos tanto na propriedade como aos familiares, o Senhorio e Protetor Eduardo Minarica falou que pagaria ao jovem uma cabra pelas injúrias e um ofício de grumete para o rapaz na Companhia Geral de Comércio do Norte, onde seu irmão era Capitão de um encouraçado mercante chamado Viúva Molhada, tudo isso em troca do seu eterno silêncio.



 Mar de Carabeus


As vagas douradas brilhavam no horizonte quebrando lentamente, como fosse um mar de ouro derretido, denso e impenetrável, escorregando sobre o leito do mundo, cheio de tesouros de tudo que fora devorado e agora dormia nas suas profundezas sob o soturno tapete amarelo de Carabeus.

Os marujos subiam as mestras para empurrá-los nos ventos favorecidos do Mar, que se preparava para enfunar as lonas nas alturas.

Fineas tinha o olhar fixo naquele cenário enquanto escorregava a não até o fundo de sua sacola, segurando o cristal preto entre os dedos. Fazia esse movimento com frequência somente para saber que Joyce estava viva, sentia a pedra receptáculo quente e pulsando tal qual as batidas do coração daquela mulher. A garganta apertava de angústia algumas vezes ao dia e sentia saudades da Patronesa de Mataguda sempre, mesmo depois de tanto tempo separados. Ainda tentava esquecer o nunca que fora o para sempre de ambos, aquela decisão que tomaram quando viajavam juntos durante a guerra. E doía lembrar, porque decidiu não insistir na idéia egoísta de permanecerem juntos, porque concluíram que os povos precisavam mais que estivessem a serviço da paz, nos terrenos longínquos do continente. Por isso não se arrependia da distância quando lembrava que ela era a mulher à frente do Templo de Mataguda. Seu estado de permanente inquietação com injustiças tranquilizava o coração de Fineas, a verdade era que ela iria contra todos para tornar efetivos os princípios com os quais estava comprometida. Uma mulher forte e de sentimentos intensos, realista e ao mesmo tempo inspiradora, uma semente de esperança plantada nos Jardins dos Laranjais na Torre Cevadilha.

Quando o conselho enviou o nome da Patronesa para ocupar o parlatório da escola de mistérios da Torre Cevadilha, Fineas sentiu um aperto, como rasgasse o peito, estilhaçasse uma história que jamais seria contada. Ficou alegre e triste, confuso porque deveria sentir-se feliz por Joyce, porém culpado por desejar que ela recusasse para somente satisfazer uma vontade própria e alheia ao bem comum. Ela já lhe dissera há muito tempo à beira do fogo, na noite que antecedeu a última batalha contra os bandeiras sombrias. Joyce apertou o tecido do manto muito forte enquanto dizia aquele não. O destino não iria lhes reservar essa felicidade, pois muito dependia dos cuidados que deveriam despender para a prosperidade das terras unidas. Foi um não dolorido, e não sobrou muito nos corações desmoronados, tanto quanto sobrou daquela fogueira: somente cinzas e lama na manhã fria.

Pensara com tristeza que aqueles amigos que lutaram tanto pela paz atual encontravam-se hoje separados. Não só pela distância, mas em seus espíritos: Ben Adam de Quran, Susana de Niceia, Atticus de Penhascoforte, Joyce de Mataguda, Edir Gramateus de Shadai, Tantalus Dágoras. Tudo havia mudado, exceto no coração de Fineas, em sua mania constante de nutrir as mais difíceis esperanças.

Agora estava ali, em razão da abssência inescusável do amigo e pai de Ágoras, Tantalus Dágoras, levando-lhe o filho para casa depois de passados tantos signos em terras estranhas. O menino ficara esperando ser buscado, mas não fora mandado nenhum navio, nenhuma comitiva, nenhum perdigueiro para avisar-lhe uma data de regresso. Fineas achou por bem organizar ele mesmo uma viagem, armou um navio e trazia consigo os meninos que foram para os Salões de Jade, hoje três homens completamente desconhecidos de todos.

Foi até a cabina onde o príncipe dormia, diversas vezes, mas não tinha coragem de bater-lhe à porta. Dentre todos os medos que sentia, o da mágoa do pequeno garoto que fora levado a contragosto para longe, era o maior, isso porque estava longe à época e nada fizera para impedir-lhe a ída. Um pânico, uma culpa e um aterrador pensamento de impotência lhe assombravam desde então, deixando a mente cinza em todos os dias que vinham datando aquela partida, mas alcançavam como fundo todos os demais, e ainda mais esse momento, onde ia o rapaz sob as ondas no calvário de madeira que se tornara a embarcação. O Sacerdote foi preletor do menino junto com Bem Adam, e ambos lhe tinham grande afeto, apesar das intervenções violentas e controladoras da Rainha, mas sentiu que tudo se quebrara irremediavelmente quando seus olhos se cruzaram com os de Ágoras nos portes dos Salões, Fineas lhe cobriu com o manto real  e tinha as vistas embaçadas de lágrimas, embora esperasse uma grande indiferença da parte do príncipe, não foi isso o que sentiu vindo dos olhos verdes e brilhantes do jovem que deixava as profundezas duras e frias, mas sim um ódio quase pungente. Uma raiva aguda que vinha o esfaqueando durante toda a viagem de volta.

O capitão tocou no ombro de Fineas, que estava absorto na visão das ondas douradas da Baía de Ouro, distanciando-se no horizonte, enquanto o sal ardia nos olhos amarelados pelo reflexo dos céus:

-Estamos entrando na foz, no Mar de Carabeus, pararemos somente em Inkaar, há sete dias de viagem. - a Sumidade Clerical assentiu com a cabeça, enquanto o cabelo preto se dispersava sobre o cenho ao sabor do vento. Sentiu um aperto pelo porvir nebuloso e relutante tentou afastar os sentimentos sombrios que insistiam em retornar. Aquela velha tentativa de esperança tremia nas cordas largas do peito do Sacerdote fazendo-o tocar mais uma vez na pedra, para ter certeza de que Ela estava viva.

Ele ainda tinha uma promessa a cumprir, sobre a qual sentia uma grande responsabilidade. Apesar da lonjura do tempo, da aflição das emoções, dos augúrios controvertidos, sabia que deveria navegar naquele mesmo navio novamente. Passara tanto tempo atravessando os mares, de cá pra lá, atrás de pistas para as dúvidas que Dágoras levantara no passado.

Assim planejara, a fragata iria até as cidades gêmeas deixar o príncipe, e depois, o empurraria mais uma vez através do Mar de Carabeus para longe, nas areias silenciosas que inconscientemente tentava evitar, talvez porque sabia que uma verdade dura o aguardava lá, cujas consequências não sabia como enfrentar, não sabia muito mais do que sabia como confrontar o ressentimento crescente de Dágoras. A missão de ir à Shaday era mais uma tentativa de restaurar uma amizade, eliminar qualquer que fosse a razão do distanciamento causado pela dúvida do Rei: muito mais do que a dúvida, Fineas era movido por uma culpa latente.


O imperador de jade

Tântalos Ágoras chegara com muitas expectativas, porém encontrara o pai tomado por uma velhice de espírito precoce. Não o recebera nos aposentos, somente o tinha visto por um breve momento na festa de retorno, um banquete do qual Nenhum dos dois desfrutaram, o imperador recolheu-se logo no início, após o discurso do Sumo Sacerdote Oriental, ergueu a taça e bebeu, não comeu ou festejou, arrastou-se para escuridão de seus aposentos sem dirigir a palavra ao filho. O príncipe limitou-se a receber os cumprimentos da corte, sem esboçar muito agradecimento e aparentava achar enfadonho toda aquele protocolo. Decidiu reunir-se aos soldados após o jantar, examinando os equipamentos e o estado de organização da guarda.

A noite mais escura desceu duas vezes sobre a terra antes que tornasse a ver o pai uma vez mais, e na frialdade da alma ressentida do velho imperador encontrou um homem sem expectativas e sem planos para o futuro: “leve o regimento que achar mais adequado e faça incursões na fronteira de Represagorda. Escolte os mestres até a fronteira para que cuidem dos pesteados.”

Ao retornar, fez um relatório sobre a situação na fronteira, tratou de reportar ao mestre de guerra sua insatisfação com os grupos insurgentes: “a fome, a peste, o abandono das terras era insondável”, tudo remetido ao conselho, submetido à burocracia democrática que julgava engessar o poder do imperador. “Fraco, meu pai é um fraco.”, pensava. Tanto poder, sem que possa usufruir não é algo digno de lhe conferir o título de imperador, rei de nada, era essa a expressão que utilizava para referir-se ao pai junto aos homens, soldados e comandantes.

Tântalos sentia-se enojado e irritadiço com tamanho prestígio imputado ao pai, julgava que não era digno das canções sobre a guerra que eram cantadas e tinham Dágoras como um cavaleiro de elevada estima, coragem e justiça. Pensara que talvez a glória teria obliterado o senso de governança e comando do imperador, que aquela carcaça de homem que passava admirando o fogo na escuridão dos aposentos da torre do rei não era nada senão uma sombra de dias passados, nada mais o fazia crer em qualquer respeito para com o velho desleixado que jazia na cadeira de ébano da Fortaleza do Sol.

Tampouco passou a insistir no sentimento de querer agradar ou mostrar-se digno àquele homem, sentia-se imerso na ojeriza a tudo que se referia ao rei, passando a procurar os conselhos do Sacerdote Edir, que mostrava-se interessado no comportamento promissor do jovem príncipe, que angariava cada vez mais a admiração dos militares e da corte.

Passavam momentos jogando tabuleiro real, o passatempo de estratégia favorito daquele lado do rio, muito embora pouco falassem, Edir demonstrava imensa simpatia pelo jovem, ignorando seus impulsos de ódio e sua muito curta paciência.

Naquela tarde fria, enquanto o fogo crepitava na lareira, mantinham-se concentrados na jogatina, bebendo vinho quente de especiarias.

O anel do príncipe batia ritmadamente na taça de cobre, o pé balançava inquieto sobre os joelhos cruzados, enquanto observava o Sacerdote concluir uma jogada.

Rompendo o silêncio, Edir pediu que os homens que observavam o jogo se retirassem, girando o dedo no ar. “Quero ter um tempo a sós com o príncipe”, disse ao mestre de criadagem, que assentiu com a cabeça e foi gesticulando em direção à porta para que os demais se retirassem.

Edir levantou o dedo, enquanto torcia o tronco para olhar o mestre:

-É de meu agrado que o Prestante Edgar permaneça. Somos homens de D'us afinal, alguns estão aqui para fazer o trabalho Dele na terra. - disse, enquanto tomava um gole pequeno de vinho temperado e depois coçou as mãos observando o tabuleiro. Era de costume arquear as fartas sobrancelhas, olhando de baixo para cima com suas fitas cinzentas, ao dar ordens aos seus. Tudo permeado por seu sorriso enigmático e distante.

Quebrando o silêncio que se surgiu, o príncipe retorquiu inquieto:

-E alguns aqui estão para não fazê-lo? - sua voz estava carregada de ironia, e foi esboçando um riso no mesmo tom, enquanto movia um peão mercenário na direção do rei para encurralá-lo, tremendo e remexendo-se impaciente- "Rex minati" , disse após mover a peça.

Nenhuma reação vinha da calmaria que descia sobre o cenho do Sumo Sacerdote:

-Uma boa pergunta. No entanto a resposta é que todos fazem o trabalho de D'us na terra, mas somente alguns são escolhidos para as tarefas de propósito elevado. Fomos feitos todos assim, não é mesmo? Diferentes apesar de nossas semelhanças aos olhos de D'us. - e moveu um peão soldado verticalmente o colocando entre o mercenário e o rei, que estava a duas casas do refúgio. Devolveu as mãos ao calor das mangas, onde já estava acostumado a escondê-las.

Tantalus Ágoras deu de ombros. Dentre todos os assuntos que estudara desde que foi ao Salões de Jade fizera questão de ignorar a religião, mas era um homem sem rodeios e entendeu perfeitamente que o assunto não se tratava de religião afinal, assim, decidiu embarcar no jogo de Edir para ver onde queria chegar:

-Nesse caso, Vossa Santidade, o que o servo de D'us desconheceria é o que tem que lhe ser dito, não é? Uma revelação do seu destino divino, o trabalho maior que deveria realizar. E quem lhe dirá isso? Eu apostaria que pensa que o emissário de D'us deveria trazer-lhe as novas sacras: o Sacerdote. - e moveu um peão mercenário na direção do refúgio, impedindo que o Rei chegasse no destino.- E o que foi que D'us lhe disse, Edir Gramateus de Shadai?

-E quem mais diria? - Edir lançou uma sombra sobre os olhos, com suas fartas sobrancelhas enquanto observava o tabuleiro, enrugou o nariz e saiu de dentro de si com um sorriso largo, pondo um soldado atrás do peão mercenário que o flanqueava. - D'us me revelou muito do que está por vir e como faremos cumprir esse destino divino, mas, lembre-se, essa liça do campeão de D'us não será feita sem algum sacrifício.

-Sacrifícios são necessários. - Tantalus foi obrigado a mover o peão mercenário para eliminar o soldado que ameaçava capturar o rei, deixando com isso o caminho para o refúgio livre.

-Sim, sacrifícios em nome de D'us, para colocar o Rei exatamente onde deve chegar. - e levou a peça real até o refúgio - Non Mors Regem (venci). Entenda, meu jovem Senhor, sou um homem de D'us, e muitas vezes ele vem ao meu ouvido e diz para que faça exatamente ao contrário do que pensei que deveria, os sacerdotes são necessários nesse momento de intervenção divina. Sou um homem de objetivos e justo, e leal na medida da recompensa que me cabe, não pertenço às salas de deleite, meus não são os caminhos do prazer vindos dos doces homens e mulheres, tampouco é de meu agrado o estupor que sucede ao abuso da ervas e fermentados em excesso. Sou homem que serve a D'us, com um único propósito do qual jamais fugirei.

Tantalus riu, mas de imediato um impulso lhe tomou as mãos ao que empurrou as peças: o Rei, o Imperador de Jade, saltou para fora da mesa, saiu rolando pelo chão de pedra e rachou-se, encerrando o jogo.

O jovem saiu como vento em direção à porta, deixando Edir na sala de pedra, com os passos do Príncipe ecoando até o estertor além das amplas paredes. Porém, quando chegou à soleira parou, segurou e ficou girando o anel do principado no dedo grosso e calejado da espada, as unhas tortas e levemente acinzentadas dos soldados de jade. Então disse sobre o ombro, com a voz levemente embargada:

-farei o que for preciso.