5 de outubro de 2022

Cláudio e Mônica

 - Que merda é essa na pia?

- ah, isso… é uma coisa que estou cozinhando.

- Suponho que não seja comestível… esta com uma cara repugnante. Lembra do filme da bolha assassina?

- Vai fazer outra coisa Mônica, me deixa cozinhar.

- Não posso, preciso comer. Estou faminta! 

- sua mãe deixou um pacote de biscoito no armário. Come…

- o que minha mãe veio fazer aqui?

- te visitar ué…

- mas eu estava no trabalho. Me alcança a geleia?

- ela veio aqui te visitar e você não estava, então…

- mas ela sabia que eu estava no trabalho.

- logo…

- logo ela não veio me visitar, porque ninguém visita alguém quando sabe que a pessoa não está em casa. Nossa, que fedor!

- da geleia?

- não, desse negócio que você está cozinhando! Tem cheiro de defunto e perfume de velha rica.

- meu Deus! Coisa horrível isso que você disse!

- o que? Velha rica?

- é! Cheira como sua mãe então…

- Cláudio, você me faz rir! Se acha que “Velha rica” é uma ofensa, por óbvio acabou de xingar minha mãe.

- se eu fosse xingar sua mãe eu diria que seria velha rica e pão duro. Porque ela deixou esse pacote de bolachas e ainda por cima aberto. Podia ter trazido um bolo ou aquela coisa detestável que ela adora comer.

- que coisa detestável?

- aquela coisa de legumes misturada com farinha velha.

- pashka 

-essa coisa aí!

- aí Cláudio, sinceramente, tá fedendo essa merda! Que foi que você enfiou na panela?

- peguei uma carne do congelador pra fazer sopa.

- e olhou pra ver se estava boa?

- como assim boa?

-se não estava estragada… podre.. sei lá!

- não estava verde… aliás, porque não limpou o congelador da última vez que arrumou a geladeira?

- vai à merda Cláudio! Na próxima limpa você!

-limpo sim, ué! Parece que não faço nada nessa casa! Olha só esse balcão brilhando!

- uau! Quer palmas? Uma salva de palmas para ele, por favor!

- vai à merda Mônica! Palhaça! Nossa, agora senti… tá fedendo mesmo!

- eu disse…

- vamos jantar o que então?

-você eu não sei.. mas eu comi bolacha da velha rica e boa noite.

- credo! Boa noite…

- e vê se acende um incenso… a casa tá infestada!

- boa noite, Mônica, adeus!


13 de setembro de 2021

Vacas fazem greve?




 O cara foi diminuído a velocidade até parar por completo. O carro estava a toda, mas brecou com surpresa, como quem cospe o café afora, engasgando.

Ué, tem uma vaca parada no meio da estrada?

 Não tinha que estar ali.

Que raios uma vaca tá fazendo no meio da estrada?

Não tem pasto no asfalto, tá fazendo o quê?

Nem sabe para onde vai com toda aquela senciência limitada. Ser ignóbil de quatro estômagos, mamífero ruminante que nada sabe sobre destinos, não tem que pegar a estrada! O semovente alucina com o farol na vista e brilha o olho como uma faixa reflexiva.

Chama a concessionária!


A vaca grita, ninguém entende o mugido estridente, os lábios trêmulos, os olhos vidrados, não há que se ter paciência, afinal a vaca não está no seu lugar. Toca a buzina o afoito viajante. A estrada é sua e de mais ninguém. Para onde vai o homem? A vaca não sabe.


Não há coisa que sirva à vaca no pavimento compacto.

Ela grita, novamente. 

É coisa que causaria um estranho desespero essa falta de comunicação. Ao homem, um pequeno desatino, tem medo de romper-lhe as carnes com o pára-choque, ficar com o capô abalroado, quiçá morto por uma vaca na estrada, o que não é coisa fácil de se conceber. O que diria a família? Receberia o seguro? E se fosse algo de deixar-lhe aturdido no acostamento ao bater com a cabeça no voltante, os olhos saltados das órbitas, das ideias confusas, da testa contundida. Não é prudente avançar.

A vaca grita no olho do sol, chamou aos seus. O homem também, vem chegando o carro da Viasempre. É a ajuda, oras, tudo vai se resolver, que tirem a vaca, é o que lhe basta.


Mas havia mais, dezenas de vacas berrando chegavam na faixa, todas desesperadas numa sinfonia terrificante.

Pra onde vamos? Uma só pergunta retumbava!


O pânico as acometia e começaram todas a mugir em uníssono. Havia algo de amedrontador naquelas vozes, era uma cena aterradora a obstruir a via, uma rodovia na contramão da producência, um caos que intensificava a necessidade de respostas da humanidade.


Nunca saberemos o que queriam no olho do calor, não é anunciado um evento assim tão magnífico e improvável da natureza. Como podem as vacas se reunir no meio da rodovia e se pôr a cantar e berrar e gritar sem serem entendidas?

Não diante da dureza e do cinza, não diante dos homens cheios de diplomas, falantes de vários idiomas, os homens que projetam e erguem as grandes estruturas, não eles, justo eles sem saber o quê estava ali.

Do som chiado vindo do carro de portas escancaradas se ouvia a prima notícia de que as vacas se reuniam na principal estrada no país. 


Adiante se aglomeravam os curiosos e seus smartphones transmitindo ao mundo sua própria ignorância ao vivo.


O pixe eternizado que leva a tantos lugares não fazia sentido, não para elas e sua turba estática. Se aglomeraram como gente fossem, sem dar alguma inteligível satisfação em meio caos que se instalava. A vida parou diante do branco atravessado de pelos pretos, marrons, castanhos, de vermelhos intensos, das patas cascudas, parou nas tetas imensas a recolher o calor do asfalto que lhes distorcia a imagem.


Uma buzina, quase inaudível, elas gritavam. Logo uma fila imensa de automóveis se formou.

Seus motoristas perplexos não compreendiam, o que está a acontecer? O que querem? A polícia e seu giroflex. As vacas não sabem o que é giroflex e urgência. As vacas devoradoras de pasto das paisagens campesinas. Muitos estavam as vendo pela primeira vez, curiosos de si, ninguém arredou o pé. Que animal é este? Que animal é aquele?


Não é de se estranhar que o evento inusitado logo tomasse proporções inimagináveis! Isso porque ao ouvir os berros, o pasto tremeu no acostamento e logo vacas e mais vacas vieram de seus campos, currais, rompendo cercas, anilhas, forquilhas, foram se juntar às demais, trotando, correndo e passando e pisoteando o mato, o capim. Já não era de se admirar que tudo ficasse tomado por uma trilha imensa de fendas e cascos, que o chão cedesse nos longos quilômetros, que caíssem as árvores, plantações destruídas e pisoteadas, derrubadas, arbustos arrancados com raiz e tudo pela onda de centenas de vacas. Devastando o redor, as pradarias, as estepes, o pampa, o banhado, o charco, as terras devolutas, as produtivas, o mundo estava pisado por vacas, por óbvio que mudasse com isso, completamente, a paisagem de tudo.


Tv e repórteres chegaram para flagrar o evento curioso que agora era um grande acontecimento: as vacas, dezenas, centenas delas aglomeradas e falando no meio da estrada, gemendo, vociferando, gritando às alturas. Nenhum microfone sobrepujava aquelas vozes incompreendidas.

Lhes falta pasto? Água?

E o campo, não vai bem?

A TV nada sabe, tampouco a internet tem respostas. Veremos como se desenrola.


É dia 9 de outubro, um ano, as vacas não foram embora, a cidade se divide, se rompe entre o urbano e o rural, entre o doméstico e o selvagem, entre a organização e o caos. Derrete como queijo quente diante de sua própria ignóbil vida limitada, enquanto as pessoas deitam e acampam, trazem seus colchões, dormem pela via só para ver o show.

Um acampamento de estudiosos acompanha o fenômeno, vacas conferenciam.


Vacas fazem greve?


Onde estará o humano que fala com os animais? Está ali! Deitado e dormindo, cansado, não pôde abandonar o posto e permaneceu como todos os outros. Não vão, ninguém pode, é demais todas aquelas milhares de vacas, de todos os lugares, juntas para ninguém sabe o quê. 


Mais vacas na estrada, os dias avançam já são incontáveis desde então, de imensurável quantidade aquela multidão e tantas outras não paravam de chegar.

A humanidade amofinada acompanhou a tudo já deitada por completo sobre o pasto da via, que invadira, tomara conta, crescera nas ranhuras abertas à força. O verde reinava sobre o cinza e as pessoas, que não podiam sair dali nem para comer, em desespero, enfiavam a grama crua goela abaixo. Feito vaca, esmagando areia e vegetal com seus dentes amarelados. Arrancavam com a língua espiralada as lâminas verdes recurvas sob chuva e sol, puxando raiz e galho, deglutindo a materia das resmas, que agora só lhes tinham serventia no estado natural. O faziam como se quatro estômagos tivessem. Mas não tinham, não por enquanto.


Tudo parou, a humanidade parou, prosseguiu a marcha dos animais vindos de todo lugar, talvez todas as vacas do mundo estivessem ali. Elas atenderam ao chamado umas das outras, suas vozes em toda terra, juntas. Já não havia mais rodovias, estradas, passos e ruas, não havia mais BR. Não havia mais humanidade. Era tudo só vaca agora.


26 de agosto de 2021

A CEGUEIRA DO DIA - imperador de Jade 3

 




O caminho da profecia

O Rei acordara de sobressalto, tendo uma ideia repentina. Algo que surgiu enquanto seus olhos ainda estavam fechados, mas seu espírito queria despertar. O coração ficou acelerado e seus pensamento cresceram, o tirando da cama. Mas era noite ainda, o sol não havia avançado.

Ele mesmo preparou suas vestes e banhou o rosto, posto que estava com pressa, tanta que sequer colocou a máscara. Esfregou o anel de sua mãe, uma lembrança que levava sempre consigo. Feito de aço preto, com um rubi vermelho na forma do Carabeus.

Embora estivesse muito gelado, Tantalus saiu somente de camisa e calças, com a falta de frio contumaz. O costume dos pés nus quando estava só, habituados à rocha gélida dos salões duros, já era conhecido por todos que trabalhavam próximo a Ágoras. Pés grandes e fortes com ossos salientes.

E foi assim saindo e cruzando os corredores das alas, caminhando rápido por entre as tapeçarias e aparadores decorados. Desceu as escadarias principais e entrou na segunda sala privada, ao lado do salão central. Lá, uma dependência redonda com uma mesa circular guardava dezenas e dezenas de livros, do chão ao teto. Empilhados sobre cadeiras e muradas. Repousados sobre as pedras, aos pés da soleira da porta.

Ele sabia o que queria, porém não tinha ideia de onde pudesse encontrar o volume que procurava.

Livros de política, leis, nomes de Patronos famosos ocupavam os espaços dos nichos. Grandes volumes sobre heráldica e sobre as batalhas continentais, seus reinos e impérios passados.

Uma cópia do Livro dos Mistérios, autografada pelo Mestre Egídio, há cerca de quatro séculos atrás.

O que ele procurava era um exemplar raro, o Grande Livro dos Estéticos. Ali, era sabido, havia informações sobre tudo que se desejava saber, reunidas ao fim em um índice organizado pela linha de semelhança cognitiva entre os verbetes.

Quando o encontrou, já se havia ido a manhã inteira, fizera questão de dispensar o bibliotecário que o enviaram, muito tempo após o sol nascer. Pediu um vinho quente e ficou debruçado sobre a tarefa. Mas quando o encontrou, empurrou com o braço a tudo que colocara sobre a mesa, abrindo espaço para aquele imenso e largo livro. Tinha meio corpo do cabeçalho ao rodapé, e um braço de margem à margem. O volume era tão alto quanto um castiçal de cinco velas.

Ágoras catou um apoio de madeira que tinha o formato de “v” com um ângulo adequado, próprio para abrir os livros grandes, cujo objetivo era impedir que a lombada descolasse, devido ao peso das páginas e capas.

As folhas eram grossas e não se dobravam ao serem folheadas. Ele foi ao índice procurando o verbete “Gema”. Descartou a desambiguação sobre gemas de ovos de animais vivos e míticos. Quando encontrou a referência por “mineralogia”, seus olhos verdes brilharam entre todo aquele breu.

Na parte da tarde abriu a porta, por fim, e saiu voando atrás de um prestante, pedindo-lhe que trouxesse Edir Gramateus; a pressa era grande.

Quando o Sacerdote entrou na sala, esvoaçando as vestes, ficou abismado porque a grande maioria dos volumes estava fora do lugar. Mas ele seguiu prestando atenção na cena. Tantalus estava de frente para a porta, apontando uma figura no Grande Livro dos Estéticos: “Eu a encontrei, é essa a Gema que o velho profetizou. A gema que me fará construir um império.”.

Embora Edir estivesse contrariado com muitas coisas por aquele rapaz, seus olhos se arregalaram de satisfação ao escutar tais palavras, que acabavam por levar certeza às escolhas terríveis e silenciosas que fizera recentemente ao apoiá-lo.



Invenire Res Ignota

O quê é essa “natureza ousada” a qual se refere, Senhorita Abigail? - veio o Sacerdote com forte inclinação perscrutadora enquanto colocava o cálice sobre o altar.

-É fazer o que queira. - disse a moça com ar de desídia, enquanto tirava os calçados em pé.

-A Senhorita só faz o que quer? (só retire os calçados, por favor. O restante não é necessário.) Isso importa satisfação? -continuou Edir, enquanto dissimulava uma adaga sobre a manga.

-De certa forma.- respondeu a moça, coçando a orelha.- Vai demorar?- indagou impaciente.

-Não, será rápido.- prosseguiu o Sacerdote. - É que ponho-me curioso com a sua inclinação, então gostaria de satisfazer tal incerteza que me inquieta, pois talvez não tenha outra oportunidade. O que a faz, depois de ter constatado as implicações de sua atividade, que permaneça sob o jugo da satisfação perversa desses terríveis interesses alheios?

-Primeiro foram as mãos duras e o peso dos braços. Depois a prata e as peças de cobre, girando sobre as mesas.- respondeu a moça, arqueando as sobrancelhas.

-Interessante… E o que vem depois? Há um êxtase apesar de tudo?- aproximou-se o Sacerdote.

-Às vezes só penso que termine de uma vez. Quero comer e depois voltar para casa e ver meus filhos. Levar-lhes pão, vê-los afinal.- falou Abgail, já sem paciência, enquanto torcia os dedos dos pés uns sobre os outros. -Vai fazê-lo ou não, Senhor? - disse a moça coçando a cabeça piolhenta e preparando-se para receber as costumeiras pancadas que compravam o seu pão.

-É uma pena. Pensei que havia mais.  - encerrou Edir, golpeando-lhe por trás com a adaga, sem que ela esperasse por isso. Puxou-a para si e cortou a garganta de um lado a outro e afastou-se num pulo, ao que deixou o corpo cair no chão com um baque. Abgail ficou se retorcendo por um tempo enquanto o Sacerdote escrevia Invenire Res Ignota com sangue na sola de seus pés.

Edir tomou o cálice do altar e verteu a água que estava ali sobre os lábios da infeliz enquanto os olhos alucinados giravam e o sangue emanava em profusão da boca e do ferimento. O Sacerdote foi esquivando-se do lago de sangue que jazia ao redor dela.

Ele virou-se para o Prestante, limpando a adaga em um pano: 

-Quando ela levantar siga-a para onde quer que vá. Não deixe que a vejam, cobre a passante com aquele manto vetusto. - e apontou para uma roupa esfarrapada no canto do mausoléu. - Quando acontecer, a lua Sorda estará alta. Será noite escura, portanto pegue um lampião e o óleo de caxaréu e acompanhe onde quer que vá. Deixe-a seguir seu rumo então, no lugar correto desfalecerá e quando acontecer, é só então, arremessarás a lâmpada por cima do corpo, deixando que queime. Depois volte e me diga o lugar onde caiu morta.

Edir de Gramateus deixou as catacumbas da colina, Semprenoite, chamava-se o local, e foi se perguntando o que mais poderia fazer uma  magia como essa, cuja força se encontrava no sangue. Sentia-se poderoso por fazê-la e ainda mais por conseguir ocultar sua prática ocasional com tanta propriedade. A bem da verdade, sentia um orgulho torpe das suas transgressões, tal como julgou que sentia aquela mulher que comumente era paga para se deixar ser espancada, mas que no entanto, e para sua decepção, descobriu que o fazia por pura indiferença.

-Para encontrar a coisa de que se precisa, e que no entanto é desconhecida tanto na condição de sua natureza, quanto na serventia que terá. O feitiço para o desconhecido., essa era a descrição da magia no livro de feitiços de sangue que Edir havia escolhido para executar.

Na manhã seguinte, no café comunal, o Prestante adentrou a sala com um semblante esgotado e sussurrou no seu ouvido: “Vilarejo do Córrego“.


Antigos cochichos nos corredores


A mulher puxou o pano para tapar os pés, havia tantos buracos nele que não seria possível, não mais. A caneca de ferro, meio torta e amassada era um dos seus dois pertences, com a qual recolhia água do fontanário e também mendigava nos armazéns da Cidade do Sol. Quando já tinha as costas doídas de raspar os assoalhos dos Senhorios não pôde mais vingar na lida da serventia, e já não podia mais levantar os velhos e velhas abastados de seus catres, limpar-lhes o alívio, nem banhar-lhes, por isso já não tinha mais uso como cuidadeira. Então, com o corpo gasto pelo trabalho extremo foi trabalhar na cozinha de uma estalageria, mas as mãos e punhos foram vencidos pela dor de empunhar a faca e por mais que procurasse ignorar e não franzir a testa seus dedos perderam a fortaleza mínima para manter as colheres de pau rodando dentro da panela. Então não servia mais para cozinha, nem para as tarefas do lar. E também não tinha lar, não tinha mais ninguém.

Foi balançando a caneca ao lado das portas dos mercados, das lojas, dos açougues e tavernas. Primeiro de pé, tremendo no frio, depois de noite sob o teto de algum estábulo público, dividindo espaço com os cavalos e o feno fedido a esterco.

Até que não pôde mais ficar de pé, foi se acocorando ao lado das portas a balançar sua caneca de metal, vazia na maioria dos crepúsculos. E já não tinha forças para sair dali, por isso foi se acostumando com a frialdade da calçada, suportando os dias de fome e fraqueza, até o corpo ficar tão duro quanto o chão. 

Em um dos bolsos aquele broche achado entre as cinzas e as madeiras encarvoadas da torre da Fortaleza, lá onde os nobres encontram os céus já foi seu lugar de ganhar o pão.

-“Vem Iscah, deixa tudo que fazes e asseia o chão. “ A Rainha lhe dizia enquanto sacudia o pó das estopas, após já ter esfregado o soalho exaustivamente. Ela lembrava de arremedar a fala da Nossa Senhora com uma voz fina e jocosa  enquanto fazia as tarefas junto com a filha. 

-Deixe que fale, minha mãe. Faça o que Ela pedir e promova o seu contento. Foi assim que me disseste quando tive idade bastante para os afazeres da torre. Ainda que minha mão seja pequena, pela minha idade pouca, estou melhor aqui. Me era mais penoso tocar a vara no chiqueiro e o fenasco aos animais no celeiro. Tinha as canelas roídas pelo frio e mal podia respirar quando deitava nas enxergas úmidas, seguia atormentada a noite toda por uma tosse. Disso os demais criados reclamavam no alojamento, insones, por essa razão o meirinho da Escola a mando do Sacerdote, vinha com o béquico, mas nem tal medicina era capaz de estancá-la. Carregava também o medo constante de que alguém  pudesse me fazer mal nos lugares desvigiados. Aqui é quente e o trabalho na cozinha não é demais. A menina sorriu e mostrou as mãos pequenas e calejadas, mas limpas, porque o trabalho já não era mais saburrento nem encarvoado, tão pouco lamacento como o de antes.

Minha menina, tão ingênua. Iscah tinha essa lembrança muito clara na sua memória, porque fora a última conversa. Ela ainda sentia o cheiro do cabelo da menina, pois puxou a cabeça da filha e deu-lhe um beijo sobre a trunfa, em seguida secou as mãos no avental.

“Observa aqui e ali, ainda há pó. Põe a prumo o tapete na soleira, vá que tropeces e acabe por espalhar água suja pelo chão. Faça isso, faça aquilo”, a criada seguira arremedando a Rainha.

Mãe minha, deixe estar. Melhor que vê-la de olhos loucos rebatendo a comida da mesa, espalhando tudo pelo chão. Melhor que vê-la esbravejar desatinada e batendo em todas com a vara que repousa na sebe da lareira. Mãezinha, somos tu e eu felizes porque não passamos fome lá nos campos, onde o que se planta mal dá para o sustento.

-“Vá longe o Rei” ela resmunga. Pobre do nosso reizinho. Homem tão bom! Ela não lhe deixa ver o filho, não deixa que o leve para montar e apear do cavalo, para aprender o ofício que espera o menino. Não vai saber de nada se servir somente para purgar o pranto da mãe. Estamos por um fio, tu e eu aqui. Prefiro mendigar a ver minha filha ainda pequena ser maltratada nas mãos de uma covarde. Antes que nos aconteça algo é que devemos ir. Vê-de o que dizem da Rainha com as criadas, não é à toa que se põem todas adoentadas na cama, sem forças até para segurar o esfregão. Vamos tu e eu bem longe, trabalhar com os nobres no norte, onde a gente é bem honesta e servimos com retribuição digna.

Iscah sabia que a filha era criança, e como toda criança nada saberia do mundo, mas não. A menina sabia muito do infortúnio, e naquele dia tentava apaziguar o coração da mãe. Tão logo a sorte fosse diferente, acreditava ela, estariam indo longe para uma vida melhor. 

Mas, não, tudo acabou muito rápido naquele dia. Iscah ainda foi obrigada a trabalhar por mais tempo para o Rei, enquanto era importante que ficasse quieta. E depois as labaredas consumiram toda a Torre… Depois de algum tempo, quando estava velha, moída e desaparelhada da lucidez dos jovens, foi empurrada para fora do Castelão. Sobrou aquele broche no bolso esfarrapado e lembranças doloridas, tanto quanto o corpo senil. 

Iscah já não sentia tristeza, não sentia saudade, nem frio. Sentia vontade de deitar o corpo na calçada e dormir sem desejo algum de acordar, pois não fazia diferença. Não sentia ódio nem amor. Sentia que estava viva, às vezes, porque quando se encolhia demais o alfinete do broche lhe picava a pele, derramando algumas gotinhas de sangue como acontecera naquele momento. 


Meu poder

O rei estava sentado, observando as chamas na lareira do salão central. Sua grande cadeira de madeira estava muito próxima, ignorando qualquer ofensa que o calor intenso pudesse vir a causar. Parecia que o movimento das sinuosas labaredas fascinava de forma hipnótica o Nosso Senhor da Fortaleza do Sol que estava absorto pela dança do fogo, parecendo ignorar os acontecimentos naquele lugar.

Adiante segurando uma mulher em farrapos estava seu fiel General, Giom. Um jovem militar que prosperara muito rápido, ajudando o Rei a executar uma sucessão de eventos que o levaram ao poder e tornando-o o governante mais novo que a Fortaleza do Sol já teve.

Ele deu uma pancada com o cabo da espada na cabeça da mulher.

-Escória do Vilarejo, fale! 

Ao lado um menino de no máximo três signos procurava o abrigo das vestes daquela mãe, subjugada.

Edir Gramateus, o Alto Sacerdote, mostrava uma figura de um livro: -“Diga onde está!”, ordenava com altivez.

“Eu não sei, meu Senhor, eu não sei.”, respondia a mulher que chorava desesperada, abraçando o menino na tentativa de protegê-lo. O General segurou seu cabelo com firmeza e chacoalhando a cabeça da jovem esfregou seu rosto nas páginas do volume. Tornou a balançá-la de forma severa dando-lhe socos na nuca.

-Por favor, piedade. Piedade, piedade. Eu não sei de nada-. Soluçava a mulher. E aquela cena persistiu por algum tempo.

O Rei, saindo do seu torpor, falou com calma e num tom baixo e loquaz: 

-parem de bater na mulher. Ela disse que não sabe de nada. Esses gritos… Já chega! -

O General a libertou com um empurrão e a jovem ficou no chão, chorando copiosamente abraçada ao garoto. Então Tantalus Ágoras se ergueu e foi estudando aquela composição enquanto se aproximava. E abaixando-se próximo à mulher, colocando seu cabelo desalinhado para trás da orelha, perguntou qual era o nome do menino. Estremecendo, ela disse baixinho entre um suspiro e outro:

 -Alexandre, Nosso Senhor.

-Me diga, mulher, se eu perguntasse a esse menino, a quem foi dado o nome de Alexandre, se ele pode me contar alguma história que sua mãe tão carinhosamente tenha lhe contado antes de dormir, ele me diria que sim?

Então ela apertou o menino e chorou com mais intensidade respondendo muito baixo com um “ Sim” em Copta.

E o Rei prosseguiu: 

-“E se eu , seu Senhor, perguntasse igualmente a esse menino, Alexandre, se essa história que sua mãe lhe conta à beira do leito e que ele tanto tem apreço em ouvir (e ela em contar); se eu lhe mostrasse a figura de uma pedra brilhante, e azul, ele a reconheceria?”.

Ela ficou em silêncio, soluçando.

-O Rei perguntou! - interferiu Giom, -Responda!

-Eu não sei! - ela levantou a cabeça e seu olhos estavam inchados. E as lágrimas haviam deixado caminhos de lama pela suas bochechas. Ela babava e abraçava desesperadamente o filho. -Eu não sei, - prosseguiu.

 Seu choro repetia um gã, puxado junto com ar, e depois um chiado, grave e salteado por fungadas curtas. Reverberando intensamente pelo salão.

-Acho que nós deveríamos perguntar diretamente para o menino. O que a Senhora acha?

-Não, não, não, não... - Suplicava a mulher, meio que segurando os pés de Tantalus Ágoras.

-Alexandre, é esse o seu nome, não é? Você gosta de histórias, sua mãe já nos disse isso. Aquele homem ali, - e apontou na direção de Edir Gramateus- ele tem muitos livros, com inúmeras figuras. Lá no alto de um palácio enorme. Você já esteve em um? Vá com ele enquanto eu terei uma conversa com sua mãe. Lá há uma porção de uvas e tâmaras com leite de amêndoas. Vá com ele.

E o Alto Sacerdote foi puxando o menino, enquanto a mãe resistia em deixá-lo ir. As mãos ainda tentavam se tocar, mas Edir Gramateus não precisou fazer muita força para separar o miúdo que mal falava dos braços da mulher.

O menino deu uma olhadela para a mãe, entre as vestes drapejantes do homem, porém as histórias lhe pareciam muito, muito interessantes, tanto quanto a comida e sentia que deveria ir com ele, que parecia mais seguro que ali.

Mal a porta havia fechado, e um silêncio repentino se fez no salão. Cessaram todos os lamentos daquela mulher, cujos ecos pertenceriam agora ao abraço inexorável do esquecimento.



A dança dos amantes

Lis saiu do casebre da velha com o coração na boca e não sabia se corria para casa para encontrar Geb ou se isso não seria prudente, afinal.

Sua mãe lhe dissera para cuidar as regras mas Liz não lhe deu ouvidos, afinal ela queria ser mãe e sonhava com isso, desejava casar-se, ter filhos, plantar e tocar a vida e tinha certeza que seria com Geb.

Quando se encontraram naquela tarde, debaixo das figueiras planas, seu coração disparou muito e ela não conseguiu lhe dizer. Ficou apreensiva e preocupada porque também não conseguiu contar aos pais e pensou que seria melhor falar com Soler primeiro, porque assim poderiam contar a eles juntos, tornando tudo menos pesado para ela.

A Velha mesmo a sentou numa bacia: “A cor das águas nunca mente”, ela disse- “Muito escura. Eu diria que uma lua apenas.”, porque a água ficou roxa como um repolho. “Me pague a moeda”, exigiu. Então a moça ficou assustada e saiu correndo sem nem retribuir, por isso pensou que deveria voltar lá e entregar-lhe o pagamento, o que podia trazer mau agouro, porém não  tinha a coragem necessária para ir até o chalé da Velha do Córrego novamente.

Parecia que um breve medo ou uma incerteza tomaram as rédeas dos acontecimentos e a idéia de ter alguém dentro de si mais a assustava que a deixava feliz, ao menos naquele momento, onde tudo ainda era um segredo.

Lis foi levando os dias com aquele comportamento estranho, até a mãe lhe chamar no corredor enquanto carregava a bacia de roupas para lavar: “deve contar ao seu pai.”, ela disse, fazendo cada nervo de Lis gelar e depois fazia suar tanto que a vista desapareceu.

No entanto a jovem não sabia, mas Soler Geb queria o mesmo, a queria para a vida, para ter filhos com ela, para juntos cavarem a terra, colherem os frutos e dividir o trabalho no campo. Queria consertar o velho chalé que era sua herança e então chamá-la para viver lá, fazendo o fogo de todo dia e plantando o alimento juntos na simplicidade da vida que levavam.

O jovem vivia sozinho, trabalhando como ourives e colhendo azeitonas nas plantações da família de Lis que foi onde se conheceram.

A princípio somente olhares, como ele mesmo recordava, depois já não sabiam quem havia falado primeiro e passaram a se encontrar todos os dias e não queriam ficar longe, como se só pudessem estar felizes se na companhia um do outro. E quando longe, uma saudade desesperadora os consumia. E veio à sua cabeça pedí-la em casamento, oferecer-lhe a sua relíquia de família e coroá-la com erva doce, bebendo água da gruta do mesmo cálice e depois seriam companheiros até a velhice.

Soler era o único filho homem do último casal Geb. Liz, uma jovem Oliveira de cabelos cacheados, pele clara e olhos negros como a noite.

Soler tinha uma irmã alguns signos mais velha, porém há cerca de quatro signos partira envergonhada com a acusação de desonra por uma gravidez recusada pelo pai, acabou sendo expulsa também de sua casa e foi para os burgos da Fortaleza do Sol.

A mãe não suportara o peso da tristeza na ida da filha e após alguns meses foi arrebatada por uma letargia que a consumiu até morrer de uma infelicidade aguda. Seu pai há algumas luas atrás recebera a notícia do desaparecimento de sua filha e do neto, que soube se chamava Alexandre, e sentindo-se culpado deu cabo da própria vida.

Restara ele e somente ele.

O pai o aconselhera, já planejando suicídio, a cuidar da relíquia de família e a não deixar que ninguém a tocasse. O patriarca lhe disse que a honra dos Geb não deveria ser manchada pela ocasião da perda de um bem tão precioso e do qual eram guardiões, embora vivessem sob o estigma de falastrões e larápios.

Mas Soler não entendeu o que seu pai lhe explicou,  ignóbil, aquilo soou no íntimo de seu coração que aquele era o bem mais precioso que possuía, assim, seria sua maior prova de amor.

De sobressalto e com uma única coisa em mente, Soler, o artesão, rumou ao pequeno esconderijo cavado no chão da cabana e ao tomar a pedra da singela caixa, deixou-se embevecer pela imagem maravilhosa da jóia que fabricaria. A gema que talvez valesse muito mais que um templo ou um reino, lançava sua luz fantasmagórica nas tábuas do humilde casebre deixando escapar por entre reflexos misteriosos uma vertiginosa incógnita fria e azul.

Primeiro pensou em ofertá-la nua como dote à pequena amada, mas depois desistiu porque lhe ocorreu de encrustá-la numa jóia.

O Jovem ficou durante um ciclo de lua fabricando um verdadeiro tesouro feito de cobre, estanho e bronze. O adorno ainda que moldado em metais não nobres, resultou numa peça bela, cuja atenção central era a gema relíquia de família. Ali reluzia sua beleza mágica por entre o fino metal moldado por Soler: acreditava ser uma Lápis-lazúli, com um fulgor vivo em seu interior, uma massa que parecia ter vida própria se convulcionava incrustada entre folhas de lótus ornadas pelo artesão.

Após admirar a obra que concluíra, Soler a embrulhou, preparou uma refeição com carinho, uma coroa de erva doce, uma taça de vinho e foi correndo buscar Lis, querendo logo pôr a peça em torno do pescoço da amada.

Ele saltou entre as pastagens, através das oliveiras, dos cedros e das corticeiras. Atravessou o córrego como um relâmpago e viu ao longe a chaminé da casa de Lis. A arrancou de lá e a puxou pelo caminho enquanto a jovem conjecturava o porquê da pressa e do desgaste. Mas podia ler nas feições do amado que era algo bom e ela estava feliz com isso porque pensou que seria um bom momento para contar-lhe, uma boa hora para dizer ao artesão que suas regras estavam atrasadas há três Luas e que não seria mal irem morar juntos, arrumar as coisas para três. 

Já na cabana, o Geb não deixou que falasse e tapou seus lábios com as mãos e caminharam na direção da mesa onde uma refeição estava servida, e repousava a grinalda de erva doce, um cálice com água pura da gruta, um jarro de vinho e muitas frutas e flores guarnecendo a ceia. Caminhar na direção da moça o deixou trêmulo porque via-se no rosto dela uma grande expectativa, o que a surpreendeu foi o embrulho que retirou de dentro do camisão  atado de veludo e linho. Ela tentou falar mais uma vez, porém Soler pediu silêncio:

-Feche os olhos -ele falou - tenho uma surpresa para ti.


Quem espera sempre alcança

O Alto Sacerdote bateu o livro e o fechou, formando uma nuvem de poeira em frente ao rosto. Abanou aquilo, enquanto fazia caretas e coçava o nariz.

-Sim, eu tive a confirmação. - falou veementemente ao Rei.  - O Ritual, ele não falha. E o Garoto, neste mesmo salão assentiu o que minhas conclusões apontavam como informações corretas. Depois de tantos meses tentando rastreá-la, finalmente encontrei o ritual adequado. Nesse mesmo livro. Mas não me custou barato. Um ciclo no mar até Shadai. Mais quatro luas inteiras esperando que o copista entregasse a encomenda. O passamento do meu assistente, caído no Mar de Cima. Escorbuto e prostração por duas vezes. Depois, a dificuldade de reunir os elementos para o ritual. Mas, eis a recompensa. A gema está lá, no Vilarejo do Córrego, como sempre pensamos que estivesse. Tão logo traga a gema para cá, eu farei o que estiver ao meu alcance para extrair o que for necessário dela. Seis grandes volumes estão à caminho. Os encomendei na visita à Shadai. E serão muito úteis quando estivermos com a pedra em mãos.

Tantalus Ágoras escutava as palavras de Edir Gramateus em silêncio. Assim que o Sacerdote concluiu, o Rei acenou com a cabeça.

Goim, compreendeu a ordem e assentiu. Retirou-se do salão, com passos largos. Tantalus descansava as mãos sobre as costas, andando de um lado para outro.

Pensou em ir com os soldados, mas afastou o intento. Quem espera sempre alcança, dizia seu pai. O que era bem verdade.

Então ele foi acompanhar pela janela, o movimento dos homens no pátio, até a Companhia das Lanças Douradas cruzar o portão Leste, rumo ao Vilarejo do Córrego às suas ordens.


Visitas inconvenientes

Ali dentro do casebre, depois de coroá-la com erva doce e tomarem do mesmo cálice, Soler ofereceu-lhe o presente.

Mas ambos não perceberam o barulho de cascos fora do casebre e não perceberam que ao longe havia gritos. Que o fogo consumia as choupanas, muitos de seus amigos estavam feridos ou mortos.

Eles não ouviram as crianças chorando e se escondendo debaixo da cama. Não ouviram os gritos das mulheres sendo violentadas. Não ouviram as portas sendo estraçalhadas com o vigor das maças e tampouco as espadas sendo desembainhadas.

Os jovens ouviram os lamentos de todos tentando evitar o ferro, seus amores, seus irmãos e seus parentes sendo fendidos na noite sangrenta, famílias deixadas para morrer dentro das casas em chamas. 

Se houvessem escutado poderiam ter corrido e saído noite à dentro, fugido daquele destino horrível.

Mas o futuro pai e a futura mãe estavam absortos, por isso o jovem quis entregar o embrulho à Liz.

Ao abrí-lo uma luz cegante saiu da pedra e antes mesmo que ela pudesse olhar o colar levou suas mãos às vistas, mergulhando, imediatamente, em uma cortina de escuridão e ardência. Soler a abraçou preocupado e enrolou de volta nos panos, o arremessando de volta à tábua falsa do soalho.

Foi neste instante que Liz escutou o estrondo da porta sendo despedaçada e depois passos, tilintar de ferros, mas não pôde distinguir nada a não ser o gemido do Geb logo após um forte solavanco. 

Ela foi tateando os ares até encontrá-lo pelo chão, o puxou com toda força para si, mas não conseguiu segurar o corpo pesado, tão cheio da matéria do mundo e tão vazio de vida! Lis esfregou os olhos desesperadamente na tentativa de arrancar a venda escuta que ali se depositará, ao prantos, como nunca havia chorado. E as mãos quentes espalhavam a massa rubra pela face da jovem cujo cheio de ferro líquido  sentia pela primeira vez, a amálgama da vida que corria dentro de alguém.

Algo aproximava-se e ela só fez colocar os braços sobre a cabeça na tentativa de se proteger, mas seu punho foi segurado com força enquanto se debatia, tentando livrar-se da mão forte que a apertava com o toque frio de metal. Pôde sentia o punho inimigo cerrando sobre o seu, que foi torcido e estirado e a força que impunha sobre ela era tamanha que foi ao chão, patinando sobre as vísceras que se espalhavam. A jovem queria resistir, porém a fraqueza infligida pelo medo fê-la ceder. Ainda não sabia se estava ferida , se estava viva ou morta quando foi erguida e arremessada novamente contra o soalho.

Apalpando todas as coisas espalhadas encontrou um objeto pontudo e segurou-o com sua vida enquanto o queixo tremia e lhe escorria muito sangue pelos cabelos. Notou que aquilo ia lhe cortando a carne, mas investiu contra uma pessoa que estava à sua frente. Um grito subiu pela garganta e saiu pela boca, empurrando seu corpo na direção daquele alguém. Mesmo sem poder ver, ela sentiu a cerâmica cravando a carne macia, rasgando a resistência da pele que contra a qual se opunha e depois foi arremessada longe.

Algo doía tanto que não conseguia esticar o braço esquerdo e nem respirar fundo e tentando arrastar-se foi erguida pelo braço novamente, enquanto gritos de dor de um outro alguém ecoavam pelo casebre: “Veja o que fez com o General! Rameira!”. Então uma outra voz disse: “Ela não pode ver! Seus olhos são brancos, é cega!”. Logo a voz que gritava parou e rugindo se dirigiu a ela como que aproximando-se: “ Não sou do tipo que bate numa moça. O problema é que eu não posso dizer o mesmo desses Senhores.”. A voz ordenou aos outros que estavam no casebre: “Quebrem todas as coisas, procurem a pedra e então voltem. Lokar, vou tentar salvar a ruína do meu rosto, fica tu no comando.”

Um momento de hesitação pairou por segundos entre o homem e a jovem. Porém foi agarrada pelos cabelos por um outro alguém e quase repartida ao meio como uma carcaça de frango, após veio uma pancada forte no rosto, o metal cravando fundo na carne e deixaram-na cair ao chão.

O corpo rodopiou antes de cair no assoalho tomado de objetos irreconhecíveis e ela teve a sensação de algo perfurar-lhe a mão. Encolheu-se em torno do antebraço procurando ficar sobre os joelhos, o mais encolhida que pudesse, queria safar a barriga e salvar-se da dor excruciante que a impedia de erguer. Foi quando sentiu uma forte pancada nas costelas e em seguida na cabeça, e veio a dor novamente pressionando seus ouvidos com um zumbido que invandia até as ideias, e seu corpo se contraiu de súbito e ela enrolou as mãos em torno do tronco.

Logo um novo puxão pelo cabelo a arrastou desastrosamente entre todas aquelas coisas e depois de alguns metros a ergueu, enfiando seu rosto com velocidade sobre a mesa molhada. Um cheiro forte de álcool invadiu o as narinas e algumas gargalhadas soavam pela casa.

Liz não pôde lutar e estava muito ferida para resistir, foi reunindo forças de algum lugar no seu íntimo para empurrar a mesa, mas foi inútil seu corpo estava quebrado e ela absolutamente vulnerável e a única coisa que conseguia sentir era a dor nas costelas.

Antes que ela pudesse recobrar os sentidos sua cabeça foi batida contra mesa e o mundo se tornou lento, seguiram-se outros baques contra a madeira até ser arremessada ao chão e foi arrastada pela saia por duas mãos que não puderam removê-la. Em seguida muitas mãos a apertaram com força nos seios, no rosto, nas partes íntimas. Mas havia aquelas mãos que insistiam em tirar-lhe a roupa e sem sucesso a socava ao mesmo tempo.

Liz não pôde debater-se, estava quase morta e perdendo os sentidos. Perdeu-se no tempo e no espaço e estava quase lá, onde quer que fosse o lugar seguro onde desejava estar. 

Eles não estavam satisfeitos e erguerem-na pela nuca e puseram seu rosto contra a mesa novamente, onde sentia escorrer um líquido quente, os demais gargalhavam.

Desorientada tomou-se de arrepio quando um metal frio foi colocado entre seu vestido e as costas, e com um solavanco ser rasgado, as vestes baixeiras foram arriadas e os homens permaneceram toda noite no casebre, a mais longa e terrível noite de Liz, quando sua alma foi destruída.

Entre repetidos desmaios ouvia vozes, algumas conversas sobre a morte do Rei. Falas sobre o novo governante e sua promessa de opulência.

Por fim ela escutou o homem no comando ordenar uma retirada. Aproximando-se do seu ouvido e com uma voz sarcástica alguém sussurrou: “Nós vamos e deixamos com a Senhorita os cumprimentos da Casa Real.”, “ponham fogo em tudo e queimem a puta”, um outro gritou.

Barulho dos cascos foi dando lugar ao barulho da Madeira estalando e então tudo o mas se encheu de fumaça e de escuridão. Pensou estar morta, mas sentiu uma vertigem tão forte e pungente que antes de perder finalmente os sentidos deitou tudo o que tinha no estômago.

A única coisa que sentia, era seu corpo esfriando em cima do assoalho enquanto um calor crescente começava a rodeá-la.



O Drama do Vilarejo

A velha feiticeira, colocando as roupas no varal, sentiu um rumor sob seus pés.

Então, despontaram abaixo do morro, um bando de homens à cavalo, deixando o vilarejo. Vestes ensangüentadas. Espadas embainhadas. Armaduras reluzindo ao sol tímido da manhã, o símbolo da Guarda Real. A velha baixou os olhos e dirigiu-se para o chalé, com a bacia de roupas apoiada na cintura bateu com os calcanhares à porta. Boa coisa não era.

A velha deu de ombros, como se não quisesse se importar com o avistamento da cavalaria. De costas para a porta, parou de súbito, com a idéia de que algo terrível pudesse ter acontecido. Virou em direção à saída e correu para a porteira. No fim da estrada da vila viu vários focos de fumaça negra subir aos céus.



Largou a bacia ali e correu. Passando o campo de oliveiras ficava a vila.

Gritando por socorro, ela viu a destruição provocada. Crianças chorando, sozinhas e feridas, ao lado dos corpos de suas mães. Jovens mortos e casas em chamas. O mundo havia ruído no seu lar. Caído sobre seus estertores, e uma lembrança antiga lhe voltou à mente.

Ela correu. Correu para o lugar onde encontrara a pedra no passado, aquela gema que havia curado suas feridas, o seixo de vida brilhante que pulpitou nas suas mãos, muito tempo atrás. Queria curar a todos, desfazer o estrago dos homens no mundo. Ela correu na direção do casebre dos Geb.

Ao se aproximar da casa o bafo quente das chamas chicoteou-lhe a carne, a velha levou a mão aos olhos para proteger-se. A Porta da casa inexistia, e com dificuldade, enxergou lá dentro dois corpos.

Minutos antes a jovem acordou de súbito, com os nervos tremendo sob a pele. O coração palpitante parecia sair boca à fora,estava mole e não tinha forças para respirar. O corpo violado e dolorido, que desfalecera sobre o chão, agora, tentava agarrar-se. Porém, aos poucos se prostrou, para que tateando os espaços, encontrasse o cadáver de Soler. As mãos machucadas e temerosas apalpavam objetos indistinguíveis em meio à escuridão desesperadora na qual estava imersa.

Um estalo na madeira despontou sobre a cabeça da jovem. E mais outro.

E então, mais uma vez indefesa, seus instintos tomaram à frente. Ergueu-se do chão em busca da parede, estendendo os braços procurando uma saída.

Ao redor, a casa crepitava em chamas. Fumaça carregada por uma nuvem quente, deixava o madeiramento em direção ao centro do chalé. Em pouco tempo línguas de calor surgiram na periferia, minando a tentativa da jovem chegar à porta.

Sobre a sua cabeça o telhado rangia sem conseguir mais se sustentar. Então ela tossiu muito, e seu corpo doía. E ela foi perdendo as forças, até não conseguir mais se mover.

A Velha foi à margem do rio e apanhou um pouco d'água com as mãos, sorveu um gole dizendo algumas palavras. Seu corpo destilou uma secreção viscosa, como se fosse untada. Chegou até a porta, onde o fogo parecia não surtir efeito sobre ela. Caminhou entre os destroços e encontrou o corpo do ourives já em chamas e adiante a jovem desmaiada.

A Velha olhou para os lados como se procurasse alguma coisa. Revirou alguns objetos, mas desistiu. Arrastou Liz pelos braços até uma parede ao lado do forno de barro. Empurrou algumas madeiras e chutou outras para fora. Puxou a jovem através da senda e parou somente quando considerou estar à uma distância segura da casa. A Velha afagou-lhe o cabelo, e viu a mesma dor que sentira há muito tempo atrás. Ela então chorou pela jovem. Pela vila. E presenciou mais uma vez o rigor da vida, quando estranha ao amor e alheia à alteridade entre os homens.

A velha meneou a cabeça desapontada, num dizer silencioso de pesar. O jovem estava morto. Nada mais se faria a respeito.

Ela ainda voltou à cabana mais tarde, onde a única coisa que encontrou, entre os restos quentes de madeiras, metais retorcidos, ossos e cinzas, foi um lindo colar de folhas de lótus, incrustando uma pedra sombria leitosa. Julgou que tinha valor e levou consigo.



Nem Mais Uma Lágrima


A Velha disse a Liz que os soldados da Fortaleza destruíram a Vila. Não fora uma pilhagem comum, não carregavam objetos de valor, nem grande volumes consigo. Eles procuravam por algo. Porém não teve coragem de revelar à jovem o segredo que carregava, que guardava o colar, aquele que desconfiava, tinha a mesma pedra que a curara tantos signos atrás, que pensava ser a gema dos Geb. Que também a recolhera dentre as cinzas e guardava entre alcatrão cozido, debaixo das taipas do casebre.

Desconfianva de que estavam atrás da gema, mas guardou tais conjecturas para si.

A pequena chorou por muitas noites, enquanto se recuperava. Primeiro sem poder sair da cama, devido aos ferimentos causados.

Depois, quando a situação de Liz indicava que estava forte para pequenos esforços, ela não quis sair. Não poderia ver as flores. Os campos de oliveiras. Não poderia ver a aldeia. Sabia da destruição e das mortes. Dos corpos que a Velha e os outros moradores queimaram. Sabia de tudo. Mas não tinha coragem. Simplesmente ficou ali, deixando-se ser aturdida pela letargia, pelas profundas marcas inflingidas em sua alma. O corpo doía, pesava e ainda estava ferido, mas recuperava-se. Porém uma mácula irrecuperável caiu sobre a alma, sobre a mente e as vistas. Isso não seria modificado, não agora, não tão cedo.

A cada semana que passava, ela tinha certeza de que aquele sofrimento era irreversível.

Na quinta semana após o saque, Lis estava determinada a sair.

Colocou as pernas para baixo, sentindo o peso leve do corpo. Levantou o tronco sobre o catre. Estava frio, cada vez mais frio. Esfregou os pés, procurando aquecê-los, estavam magros, com ossos protuberantes. Lutando contra a dormência, pôs-se de pé. Uma vertigem repentina caiu sobre ela, a empurrando em direção à cama.

Caiu sentada e chorou. Chorou muito, tanto que seus olhos estavam inchados. Ela podia sentir a pele apertada entre as pálpebras. Mas combateu aquele sentimento com bravura. Aquele sentimento de medo, que a prendia no leito, a arrastava de volta à enxerga. Combateu a vontade imensa de deixar tudo, de ficar ali deitada esperando a vida se acabar.

Mas ela persistiu. E foi tateando a escuridão, tropeçando em objetos, tocando as paredes até a abertura. Lá um leve calor encostou sobre a pele translucida. Ela quase podia ver novamente. Mas quis imaginar o vilarejo, como o vira da última vez. Seus pensamento não ousavam voltar às memórias do amado artesão. Por enquanto, ficariam em um lugar seguro, longe de qualquer coisa que pudesse fazê-la desmoronar. Mas um cavalo relinchou no pátio, e Lis tentou voltar para dentro. Desesperada, deu alguns passos para trás, até bater em alguma coisa, e caiu sobre as tábuas duras do assoalho.

Se fossem os homens, com machados, com fogo, com morte... Mas não eram, ao menos fora de seu coração, não eram. Porém Lis ficou desesperada e tudo que soube fazer foi chorar. O choro logo se transformou numa raiva. E ela viu que isso afastava o medo. E ainda que sua espinha estivesse congelando, ela se agarrou àquela sensação que a empoderava, a sustentando. O ódio por aquele medo a movia, como o titereiro à marionete.

Ela cerrou o punho com força, não sentiu as unhas cravando na pele, nem o lábio sendo fendido pelos dentes. Então, das dores se ergueu. E ficou ali, de pé e resistindo. Concentrou-se no sentimento, deixando os pensamentos de lado.

Assim prosseguiu, por algumas semanas, usando uma raiva crescente como bengala.

De início pensou em seguir ali na aldeia. Ma a escuridão era muito grande, seu coração estava quebrado, sua alma intoxicada.

Esquecera da vida que carregava, e como um veneno, seus pensamentos se voltaram para a Fortaleza do Sol. Estavam sim, guiados pela força oculta que o desprezo lhes concebia.

Ela nunca conversara com a Velha, era só uma estranha compadecida. Ouvia seus passos e monólogos sem fim. Sobre como estavam reconstruindo a vila. Sobre como os soldados perambulavam por aquelas bandas. Exigiam coisas, favores e pertences, plantios e impostos, pessoas e terras. Dizia sobre rumores e circunstâncias estranhas que envolviam a morte do Rei, e que possivelmente (ela achava) o filho lhe assassinara, usurpando-lhe o trono. Que faziam campanhas pela plataforma, anexando vilas e comunidades, estações e entrepostos. Eram falas de outros para Lis, vindas pela boca da Velha. Talvez aquela Senhora jamais tenha saído dos arredores do córrego. Talvez ela não ousasse, e ficasse lá como os outros, como escrava de seus limites. Ela nunca falara com a Velha, resumia-se a murmurar e soluçar sobre o catre, de início. E, conforme as semanas avançaram, os rompantes amainaram.

Nos últimos dias, as notícias de intensos combates e guerra, já não mais a preocupavam, não mais lhe afligiam os pensamentos. Crescia dentro dela, uma idéia. Um sentimento germinava na escuridão de suas vistas, enquanto ela apertava secretamente as peles que a cobriam, enquanto ela raspava a madeira do assoalho com as unhas, ouvindo tais histórias. Um plano íntimo se formava e tornava-se claro conforme iam os dias.

Guiando-se no escuro, cada vez com mais cuidado, Lis, saíra fora do casebre pela primeira vez. E embora aterrorizada, sem conseguir respirar direito, escutando os ruídos da natureza à sua volta (talvez nunca notados, como agora os percebia), decidiu que faria algo, combatendo a letargia.

Liz, resumiu suas intenções. Lançou mão de qualquer auto sentimento que a mantinha ali. Num rompante de certeza, tomou a decisão que a arrastaria através dos signos , uma busca egóica, que incluiria não verter nenhuma lágrima a mais sequer.


De Costas para o Mundo

Suas vestes batiam contra os galhos, chapavam nos passos desconfortáveis dos pés nus sobre a lama fria. Ela seguia o caminho, guiada por sua inesperada preletora.

A velha a aconselhava: ande com cuidado, sinta os cheiros, toque as coisas e memorize os lugares. Tome cuidado com o que escuta, e por certo deve estar escutando muito mais. Contes os passos, guarde as passagens. O gosto do ferro, o cheiro do veneno. Veja o mundo com seus ouvidos, sinta tudo com o seu corpo. Os movimentos, o ar se deslocando, os suores e corações batendo. Veja a verdade e a mentira na voz de quem fala. Toque quando puder, evite quando convier.

Ela escutava calada todas as falas da condutora.

Isso porque sabia que a Velha havia nutrido por ela um sentimento de proteção.

Mas Liz não pôde ficar, e sem dizer nada decidiu partir para a Fortaleza. Isso porque foi consumida pela idéia crescente de abandonar a Vila, buscar vingança, numa nota de tom baixo, agonizando repetidamente.

Cega, rumava para a cidade sozinha, quando ouviu os passos largos e a voz pouco discreta da Velha. Espere, espere! Dizia repetidamente, e ao alcançá-la, foi fazendo recomendações.

Um sentimento de proteção e uma sensação de medo se traduziam na fala trêmula e atropelada da Velha do Còrego. Mas ela foi com Lis, e a entregou nos portões da Fortaleza da Cidade.

A Velha, ao se despedir, pegou nas mãos da moça e apertando firme entre as suas, frias e suadas, a acariciou. Eram mãos de pele flácida e ossos protuberantes, duras e calejadas. Ela sussurrou para Lis: “Vá, siga teu destino, e que a Deusa te acompanhe. E quando precisares de ajuda, lembra-te da Velha do Vilarejo. Pegue –e entregou um vidro pequeno contendo um líquido escuro- estes serão teus olhos quando vieres à mim. Que assim seja.”.

A pequena mulher quase desistiu de seus planos frente ao sentimentos acolhedor que percebeu na Velha. Quis dizer algo, mas a voz lhe faltou. Depois de todo esse tempo, nunca trocara uma frase sequer com a sua cuidora. A Velha a segurava firme. Porém, suas mãos se retorceram, ela afogou todo o sentimento, e as puxou para si, fugindo do toque daquela Senhora, que a cuidara por muitas semanas. Os dedos se fecharam em torno do punho. E ela cravou as unhas longas nas palmas da mão. Sentiu a dor que lhe fazia viva. Deu as costas para o mundo e erguendo o braço, cuja sensação afastava a fraqueza, rastejou para fora de si e bateu na porta.

Ali ela partiu, pois quando virou as costas para o vilarejo, ela já não sentia mais vontade de chorar.

Só respirou fundo e engoliu a seco uma promessa. Que ela cumpriu durante muito tempo e a duras penas, a de que jamais voltaria a verter uma lágrima sequer em sua vida.



Os espinhos no caminho

“Quem bate?” Disse uma voz abafada do outro lado do portão.

Lis tentou falar, mas não sabia se ainda podia fazê-lo. Um tempo de silêncio veio até a próxima pergunta. “Quem é e o que quer?”, perguntou a voz novamente, de forma rude, exigindo uma resposta. E mais silêncio se seguiu.

Então um pequeno postigo foi movido e dois olhos semicerrados e apreensivos caíram sobre uma pequena e incomum jovem. Esfarrapada, descalça e com profundos olhos brancos que miravam o nada.

O rosto na porta se apertou e fechando o postigo com força não mais mirou a rua.

De fato era mais um pedinte faminto. Como aqueles que batem à porta da Fortaleza todos os dias. Como aqueles que dormem ao abrigo dos burgos. Que matam por uma migalha. Mas aquela parecia delicada. E tinha feições adequadas e boas de se ver.

O postigo abriu novamente.

“O que você quer, escória?”, disse a voz. Meio que engasgando a moça disse, com a voz que há muito não lhe subia pela boca: “Sou quem bate.”. “Logo vejo!”, disse o alguém. “A que vens?”, lhe devolveu. “Eu venho ao que quiseres, Senhor.”.

Então o postigo se fechou.

E Liz permaneceu ali.

Na terceira noite, sem que o portão abrisse novamente, a madeira finalmente tremeu e bateu com força para trás. O homem se pôs de frente, e aquela moça era pequena e frágil. Então uma voz forte e cheia de pensamentos lhe dirigiu: “É você que dorme nesses muros já há dias? Veja, eu tenho pão. - e lhe estendeu um pedaço de pão duro e mofado.- Porém não será de graça.”

Ele a levou para trás da guarita, longe dos olhos de aldeões e nobres. Liz cerrou o punho, protegeu a sua alma no local onde cultivava a vingança. Se cobriu da raiva que a alimentava, enquanto pagava o preço do pão. Aquele ódio a preservava da loucura. A levava para um lugar seguro onde bebia e se reconfortava no sonho de retaliação a seus inimigos.

“Dê-lhe pão em troca de diversão”, disse o guarda para o colega do turno seguinte, e apontou para o portão do muro: “É uma novinha muito bem comportada. Fique certo que não come muito, só um pouco de pão velho lhe fará feliz.” E gargalhou. Antes de sair ainda puxou uma gamela, onde alimentavam os cães, deu duas batidinhas e sem abaixar-se jogou água ali. “Dê-lhe de beber antes de usá-la. Está tão seca como carne de sol.”.

Ela viveu assim até a próxima lua, quando conseguiu cruzar o portão, e correu tropeçando nas pedras, sumindo por entre as ruas estreitas e entrecruzadas da velha Cidade do Sol.

Pedro, Izar, Altanar, Baltazar, Apolineu, Eger, Izac, Rosart, Endrio. Nunca esqueceria esses nomes.

Ela caminhou, gravando-os na mente, por entre as vielas da Cidade, até chegar numa nova porta, cheia de música e risadas femininas. Onde sentia um bafo quente, carregado do perfume forte do fumo, do polkum e de narciso.

Ela bateu na porta sem muita convicção.

De súbito, uma voz feminina despontou: “Que quer?”. Dava para sentir a porta abrindo, com todo o som de música e gargalhadas aumentando, um vento morno batendo nas pernas. “O que eu posso conseguir?”, Lis perguntou. Imediatamente sentiu algo se aproximando, e uma mão delicada pegando na sua, a puxando para dentro, “Qualquer coisa, minha querida. Qualquer coisa.”. E a porta se fechou às suas costas.




















O Sangue desconhecido

“Tu não és sangue do meu sangue”, ressoava a fatídica última frase de Dágoras na cabeça do seu filho. Fora cuspida de seus lábios, num misto de escárnio e último suspiro, enquanto a adaga de ouro e aço, que jamais havia fendido nenhuma carne, lhe deslizava com força no meio do bucho. Porém, por mais surpreendido que tenha ficado com a traição de Tantalus, o rei morto não fora sem lutar. Forçou o tição incandescente no rosto do assassino, deixando-lhe o cenho desfigurado.

Tantalus Ágoras ficava irritado com essa memória, e mais ainda com a possibilidade de que tais palavras fossem verdade, ou ainda, sendo uma verdade, alguém mais soubesse do fato.

A luz do fogo refletia sobre a máscara de trama fina de couro, pintada com filigranas de ouro. Escondia do mundo a pele retorcida, cortada e sulcada. Lembrança eterna do preço que lhe custou o poder. Mandara moldar diversas máscaras, mas na solidão dos seus aposentos, era essa a que preferia. Gostava do cheiro do couro e do toque áspero sobre a cicatriz.

Emergiu daqueles pensamentos, cerrando os olhos para livrá-los. Atrás de si, a criada aguardava pelas ordens de seu Senhor, tremendo e suando num canto mal iluminado. Seu rosto brilhava com o orvalho de sal da pele , muito embora aquela fosse uma noite atipicamente fria.

Traga-me vinho. Disse à copeira.

Ela se aproximou com o jarro, para servir a taça que estava na mesa, ao lado de Rei.

Ele fitava o fogo, como vislumbrando algo que não estava ali. A jovem deitou a bebida devagar, e antes que pudesse largar o jarro, Ágoras, num movimento rápido a segurou pelo pulso. A copeira estremeceu, e começou a tremer o fino jarro de cobre entre as mãos, salpicando vinho sobre a mesa.

O Rei, ainda mirando o fogo, falou como se dirigisse palavras a si mesmo: “O fogo não é bom, nem mau. Ele é o que é, e queima. Essa é a sua natureza. E pela sua natureza, ele é o que é, faz o que faz. Ele fere porque é forte e avança sobre a carne que é fraca. -e apertou ainda mais o pulso da criada- Por ser quente ele espanta o frio, derrete o gelo, esquenta o corpo e cozinha o alimento. Mas ele queima, acima de tudo. Aquilo que pode lhe ferir deve ser respeitado. Mas somente a ponto de você poder dominá-lo. Eu digo que o fogo é poder. E quem tem fogo deve ser temido.” Então, com a outra mão ele removeu lentamente a máscara do rosto, e girou o tronco, ainda sentado, na direção da copeira. “Eu controlo o fogo na minha casa, na minha lareira.” E, segurando com mais força ainda o braço da moça sobre a bancada, tomou o atiçador de ferro, repousando-o sobre as chamas.

“Olha para mim. Olha para o meu rosto.”, ordenou o Rei com tom severo. A copeira olhou para Tantalus Ágoras, no fundo do seus olhos. Sua expressão mudou completamente, de uma menina acuada no canto do quarto, para uma mulher com tom sério e desafiador.

“Eu conheço passos de criadas, sempre miúdos e ligeiros. Conheço os gestos vacilantes de criadas. E há muito que lhe observo. Seu pisar firme, sempre observando no cantos. Planejando seus movimentos. Você não é quem diz ser. E esse seu olhar… Você não teme, me desafia e não baixa os olhos, esconde a lua escarificada sob o cabelo que lhe cobre a testa. O que tem nas mãos? “ E torceu-lhe o punho para revelar um pequeno frasco que a copeira segurava firmemente, com tanta força que seus dedos ficaram brancos. “ Busca vingança? Tenta verter morte no meu cálice, não é?”

Tantalus, levantou rapidamente da cadeira, e a segurou pelo maxilar  a forçando nos seus seus olhos inflamados e brilhantes: “EU sou aquele que comanda! Vou provar-lhe... Sou o fogo.” E apanhou o atiçador incandescente. O calor do atiçador não afugentava o rosto do Rei, preferia chegar perto da carne da jovem escorrendo sob a pressão do fogo quente, do ferro incandescente afundando lentamente na face macia, cujo cenho finalmente revelava a lua de Harpis.


Sussurros

Ele disse que o Senhor seria o homem ideal para descobrir tais segredos. E disse que ninguém permanece calado diante da sua, digamos, força de convencimento. Essa foi a expressão que O Senhor Lokar utilizou, Ivan da Torre Verde. Disse que era conhecido como Mestre dos Segredos, com procedimentos diferenciados.- explicou Edir, experimentando uma chave , dentre todas as demais, que estavam penduradas na velha e grande argola de ferro que trazia na cintura. Sua boca fumegava, por debaixo do capuz grosso de caxemira. Estava frio, muito frio. E ali, nas masmorras da fortaleza, tudo era mais gelado e desconfortável.

O Senhor me foi muito bem recomendado, e tenho certeza de suas qualificações, pois sua reputação o precede. A mim não me importam seus métodos, desde que obtenha dela as informações necessárias. O que sabemos sobre o caso até o momento é o que dizem os sussurros nos corredores. Que é uma assassina. Mercenária, fanática, rebelde? Não sabemos. Mas chegou onde chegou, muito perto do Rei.

O homem de capa verde entrou na sala da masmorra. Deixe-nos. Ele disse. A porta foi chaveada novamente e ouviram-se os passos do Alto Sacerdote da Fortaleza do Sol arrastando o corpo resfriado, corredor à fora.

O rosto do homem permaneceu encoberto. Do estalar de seus dedos surgiu uma luz verde, fraca e farfalhante, na palma da sua mão. Ele a transferiu para uma esfera de vidro, retirada de dentro do manto.

No canto da cela, encolhida no chão, iluminada por aquela luz débil, estava a copeira. O cheiro de excrementos era forte, porém parecia não incomodar o homem encapuzado.

Ela não levantou o rosto. Só encolheu-se ainda mais, ao sentir a presença de outro alguém no recinto.

Eu estou aqui para lhe oferecer misericória. Disse o homem com uma voz sussurrada, que ecoou pela cela. A misericórida dos homens, não a dos Deuses.

A mulher levantou o rosto, que estava marcado por múltiplas feridas de queimaduras. Ela estava há muito tempo na escuridão, para voltar a enxergar de uma hora para outra. Sob aquela luz misteriosa revelou-se no cenho da mulher, a imagem de uma meia lua pulsante. Cintilando azul, em meio às sombras que dançavam na cela. Seu olhar para aquele homem era de espanto. De incredulidade.

E esse mesmo olhar foi capturado pelos olhos do encapuzado misterioso, que desvelando o semblante, repousou suas fitas verdes, no fundo da alma da prisioneira. E esses olhos brilharam sob a luz esmeralda, como duas velas incandescendo no entardecer. Sua pele era pálida e esverdeada e possuía dentes salientes como presas de cobra.

E então, a mulher não pôde desviar seus olhos dos dele, e um pânico congelou o seu corpo.

Ele permaneceu bebendo do seu olhar por muito tempo. Quando sentiu-se satisfeito cerrou as vistas e desceu o capuz. Deu algumas batidas na porta e aguardou o Alto Sacerdote retornar.

Porém, antes, colocou no centro da sala um pequeno frasco.

Assim que a porta foi aberta, Ivan abandonou o recinto.

Edir ficou curioso quando ao abrir a cela, deparou-se com a Jovem se debatendo no chão, enquanto uma espuma grossa saía pela sua boca, e seus olhos, como duas bolas de leite, saltavam das órbitas encoleiradas por sangue. ‘NUX VOMICA?’ pensou.


A caravana dos porcos

Lis sentiu o toque macio da linda peça de seda de Vauparaíso, que fora estendida sobre a mesa central. Dedilhou as sandálias de plumas e saltos do Saigão, finamente arrematadas, que se espalhavam dentro dos baús. Rolos de texturas diversas de lãs nobres, de carneiro-de-caxemira. Frascos de diversos formatos, guardando os misteriosos cheiros austrais, preservados nas essências de madrijos e caxarréis, que amontoavam-se nas malas do Mercador. Mas o que lhe chamou a atenção, ao tatear todas aquelas coisas, foi um pequeno volume. Um livro.

Veja, Edir Gramateus- disse Edmina entre sorrisos- como é promissora a nossa pequena. No lugar de atiçar os olhos do nosso Senhor com todo o material que trazes aqui, deixá-lo inebriado com esses odores orientais, ela quer ser sábia. E tomou o livro das mãos de Lis. Edmina sentou-se na cama e colocou o livro no colo, e todas as meninas que estavam na sala deram pequenas gargalhadas e sorrisos envergonhados. Puxando Lis pela mão, a sentou ao seu lado e fez com que tocasse a capa do livro, um relevo em couro. Com tom de deboche, disse: Aposto que você sabe o que é isso. Afinal, sabe muito bem, só de tocar.

Chega, chega, disse Edir afastando as mãos de Edmina e Lis do livro. Não estou aqui para perder um tempo precioso que não possuo. Senhoritas, o que me traz aqui, nesse estabelecimento que desaprovo, é um afazer relevante. Como sabem receberão a visita de um preletor. Esse homem irá escolher dentre as meninas que aqui se encontram, vinte companheiras com potencial para entreter a corte e servir ao novo Rei, Tantalus Ágoras. Tornem-se apresentáveis e sairão dessa espelunca para uma vida que jamais sonharam ter.

Edmina, dona do estabelecimento, queria ela mesma ter ído com as demais. Gostaria de ter muitos signos a menos do que possuía, e muito menos do que aqueles que sua aparência dizia que tinha. Signos a fio trabalhando naquela vida cruel lhe ensinaram que tal ofício era dificil de se manter com a idade. Hoje explorava meninas mais novas, como Lis, que batera à sua porta há algumas luas atrás. Estava prenha, bem se sabia, e desde que sua barriga crescera, não conseguia mais nenhum cliente. Servia à casa como uma empregada, limpando e arrumando o estabelecimento.

Nem Liz, nem Edmina foram escolhidas pelo Preletor. Ele apontou seu dedo severo na direção das meninas novas, belas e delicadas.

O preço ajustado foi entregue, e era uma quantia farta. Eis o pagamento pelas mulheres. E arremessou um saco de moedas ao chão. O preço que pago por elas vai lhe custar mais caro, a cada dia, quando teu bordel estiver vazio e tuas carnes moles não te puderem sustentar. Edmina ficou atônita, porém retorquiu insegura de sua afirmação: O preço que minhas carnes moles recebem e receberão pelo serviço que eu fizer, será pago por homens que tem a carne mole como a tua, no meio das pernas. Que mal usam aquilo que compram, porque não conseguem. O Preletor sorriu com desdém. E se agachou na direção do saco de moeda. Edmina colocou o pé sobre o pagamento e puxou na sua direção. O catou e colocou dentro da blusa.

Edir segurou o Preletor pelo braço, fazendo uma mesura de complacência. Dirigiu-se à Edmina pedindo desculpas, porém dizendo que precisaria ainda de um favor. “Não se esqueça também das facas afiadas dos Preletores. Muito boas para línguas igualmente afiadas. Tome. - jogou uma moeda para Edmina- Por uma moeda de prata levo a criada grávida e cega, tendo em vista que necessito de uma nova copeira. Em breve haverá mais uma boca para comer, e uma mulher a menos para trabalhar, se acaso morrer no parto. Ela nos servirá até ganhar o filho. Se sobreviver e for uma menina, eu trago a criança para a Senhora. Se for um homem, eu o levarei para os estábulos. Que me diz?”

Edmina concordou com relutância. E pensou se não seria melhor resistir, manter Lis consigo. Mas uma outra moeda caiu aos seus pés, e ela então a agarrou, e em silêncio deu as costas. Muito embora no seu íntimo temesse pela pequena e seu porvir, aquilo não passou de um assombro, ao qual ela pode resistir. Acompanhou a pequena ser carregada pelo braço, com uma certa indiferença pela sua condição. A puseram numa carroça, separada das demais, uma dentre as dez carrocerias cheias de porcos que serviriam o banquete da noite seguinte. 


Os olhos leitosos na Noite Mais Escura

Os guardas se encolhiam e falavam baixo. O silêncio parecia sempre maior no dia mais escuro. As pessoas sentiam-se sendo comprimidas contra o chão. Tendo que resistir incessantemente, à uma presença intangível, invisível e intimidadora.

Mas não havia nada e havia tudo. O medo, a vontade de ficar parado, a necessidade de acender os candeeiros, as lamparinas cuja luz sempre ficava mais fraca nesse dia. As velas resistiam em serem acesas. As pilastras altas e as candeias minguavam até o fim. Nada podia contra a escuridão desse dia.

A porta se abrira e o Rei saiu do quarto espiando para o corredor: “Não me trarão a criada?” -perguntou aos guardas enquanto amarrava o camisão por dentro da calça.

Eles se entreolharam, porém não sabiam de nada. Um deles saiu corredor afora, sem saber ao certo onde ir. Mas cruzou as galerias  longas, úmidas e escuras. Desceu as escadas crivadas de archotes farfalhantes. Atravessou o salão principal iluminado minimamente. Subiu a escadaria da ala leste e foi bater às portas de Edir.

Esfregou os braços enquanto aguardava ser atendido: “Bom dia, Senhor Sacerdote. O Rei, ele pediu por uma criada…”.

Edir revirou os olhos e fechou a porta. O Guarda permaneceu ali, olhando para os lados, para os corredores que continuavam dentro do breu, além do qual nada se via.

A porta abriu novamente e Edir de Gramateus colocou um manto de lã sobre os ombros. Saíram com a respiração fumegante através dos corredores.

“Uma criada..” - pensou ele. Sabia de muitas amas na cozinha, todas com a língua afiada. “Fofoqueiras não… Está desconfiado com suas copeiras, e não quer permanecer com nenhuma no quarto por mais de um dia. Precisa de uma prestante. Uma mulher que lhe sirva sem perguntar, que estando presente não lhe possa trair. E vendo e ouvindo não lhe traga incomodações.”- falava alto para si mesmo.

Então pararam de súbito.

Edir enrolou o manto de lã muito próximo do corpo e mudou o seu caminho, indo na direção da pocilga.

“Emir! Emir! “- Gritou Edir na entrada das porteiras. Quando pôs os pés no barro cheio de dejetos de porco, voltou para as pedras safas do calçamento. Pegou uma tocha que estava na parede.

Um homem enrolado em um cobertor de lã de marrom veio correndo sobre a lama. O fedor de tudo ali era insuportável, os porcos roncavam tão alto que se ouvia uma sinfonia vinda de todas as direções na escuridão.

Quando viu o Sacerdote tirou o chapéu e o escorregou sobre o peito. Edir não lhe deixou falar e ordenou que trouxesse a cega que alimentava os porcos.

Ele a queria para copeira desde o início. Mas quando foi servir ao rei, ficou nervosa e derrubou vinho no chão. Tantalus ordenou que saísse, que fosse dar comida aos porcos, que era para isso que servia uma copeira que lhe destruía o tapete.

Se falara literalmente, ninguém sabia. Mas trataram de enfiar a jovem na pocilga, porque não tiveram coragem de perguntar se era realmente ali que deveria estar. E ficou servindo comida aos porcos, limpando as fezes dos animais e tocando as varas de chiqueiro em chiqueiro. Enterrava as canelas no barro para encher cochos de água quando foi agarrada e trazida até às portas da estrebaria.

Edir de Gramateus mandou que lhe esfregassem com sabão na tina do pátio, onde os cavalos eram banhados. Enfiaram uma roupa de criada na jovem e depois a levaram para a Torre.

A mulher não tropeçava mais, foi caminhando com cuidado e contando em silêncio as viradas, os lances, as passarelas. Os corredores atapetados e os móveis de aparo que estavam pelas galerias. Foi cheirando aquela umidade característica.

O soldado que acompanhava Edir tropeçava nas forrações, batia a espada nas decorações, caminhando desajeitado entre os espaços. Até o próprio Sacerdote não escapava das topadas  de quando em quando.

“Eles não enxergam -  pensou a mulher -e  me sinto prensada e esticada... É o dia mais escuro.” - Concluiu.

Edir abriu as portas do quarto, e colocou a mulher lá dentro: “Aqui está a sua criada, Nosso Senhor.”

Tantalus estava debruçado sobre a mesa de madeira, com um candelabro de velas lançando uma luz sobre sobre seus documentos. Ele emergiu de dentro do quarto, olhando intrigado para a mulher que fora trazida.

“Eu lembro dela. Virou vinho no meu tapete.-  ele parou e estalou os dedos entrelaçados, os forçando para baixo - Veja, - ela ouviu os passos do Rei se aproximando- seus olhos são a coisa mais clara no dia hoje. - Tantalus, estava sem a máscara, e embora pensasse que não poderia ser lido por ela, a copeira sentiu a curiosidade na voz de Ágoras - Mostre-lhe onde está o serviço. Hoje ela vê melhor que qualquer um de nós.”




Um serviço eficiente

Eu pedi há um tempo que viessem a mim mulheres jovens e capazes de agradar generais. Comprei duas hostes mercenárias e essas mulheres foram parte do pagamento. Mas, os homens relatam que choram. Disse Tantalus Ágoras ao Preletor, num tom de insatisfação.

A copeira estava aguardando ao lado da porta. No balançar do sineta ela veio até a mesa, de forma lenta, porém precisa. Uma batida na taça de bronze era para servir vinho ao pedido de sua Majestade. Aquela brincadeira agradava Tantalus. Ela colocou o dedo na borda da taça, parando de servir quando sentiu o líquido.

Senhor, respondeu o rapaz, evidentemente nervoso e desorientado, eu diria que as moças estão assustadas, Vossa Majestade. Estão muito apreensivas, de forma negativa, desde que a primeira jovem retornou naquele estado… E então aconteceu novamente. E a terceira moça... Bem, essa não retornou para o Harãm… É difícil fazê-las se comportarem de maneira adequada. Algumas fugiram, Senhor. Foram punidas, logicamente. Eu peço minhas sinceras desculpas pelas ocorrências. Não posso compreender o que tenha sido para Vossa Alteza tamanha falta diligência no cumprimento de minha tarefa. Mas prometo ao Senhor, diante de minha própria vida, que tentarei retratar meus atos falhos, de forma a proporcionar a satisfação das vicissitudes pessoais de quem for do seu agrado.

Não será necessário, interpelou o Rei, enquanto observava um pergaminho aberto sobre a mesa.

E ficou em silêncio por algum tempo enquanto analisava as informações contidas no documento. Ele sorveu um pouco de vinho. O Preletor sentiu um nós na garganta. Como se o ar não pudesse passar para seus pulmões.

O rei moveu uma pedra para uma das pontas do papel, que insistia em enrolar-se. Ele então apoiou as mãos sobre a mesa, refletindo sobre as informações que nele estavam contidas.

Por fim, o Rei emergiu daquela leitura, e retornou sua atenção para a conversa com o Preletor. Após uma pausa prolongada, continuou, Trate de prover meu Harãm. Alcance o necessário para a satisfação das vontades dessas mulheres. E não lhes poupe exigências. Prometo um banquete para meus homens, quando voltarmos da longa viagem para qual me preparo. Que elas estejam prontas.

Toda a musculatura do encarregado soltou-se naquele instante. E o aceno de dispensa lhe caiu tão bem, como se o fio da espada houvesse sido retirado da sua nuca. E o Preletor se retirou com uma mesura.

A sineta tocou novamente, e a taça tilintou.

Porém, ao colocar o dedo sobre a borda, a copeira sentiu uma mão vacilante quase tocar a sua, mas afastou-se, fazendo o ar dançar ao redor da taça. A copeira escutou o barulho do metal rolando, enquanto o vinho molhava os papéis de Tantalus.






A comitiva de Saigão e os quebradores de contratos.

Tantalus Ágoras vestiu as luvas e deixou sua tenda, Herminedes de Saigão ficara lá, perplexo e desconsolado, depois que o Rei lhe contara seus planos para Saigão. Seus olhos grandes e encoleirados de profundas dobras, abriram-se como há muito não faziam. E enquanto o vento frio do deserto lhe batia dentro da boca aberta, murmurou palavras requerendo piedade para a cidade entreposto das areias do sul.

Hermínedes ficou impedido de deixar o local, até que tudo estivesse resolvido.

Tantalus, cumprimentou os guardas do lado de fora. Fazia finalmente, depois de vários dias de chuva, uma manhã de sol. O acampamento estava enlameado, e as carroças deveriam começar a serem deslocadas, para evitar atolamento. Gesticulou ordenando isso ao General Boris, da Companhia Varonil do Primeiro Regimento do Comando Real de Treinamento Militar Básico, e pediu que destacasse uma unidade do terceiro regimento para o serviço. Dispensou a ceia posta e  quis somente uma xícara de Leite de Amêndoas fumegante, que lhe foi alcançada enquanto atravessava o grupamento.

O Rei foi cruzando o acampamento, cumprimentando seus soldados, vistoriando os regimentos que levara consigo para Saigão. Chegaram em duas Fragatas, desembarcando tudo no meio da chuva fina e persistente. Cavalos, carroças, alimentos. Madeiras, lonas, tarros d’água e cerveja. Pão, muito pão.

Pedira a um batedor, General Miguel, que com muita antecedência providenciasse anunciá-lo, o que fez sete dias precedentes ao desembarque, requerendo autorização do Senhor de Saigão para ficar em suas terras, antes de seguirem rumo aos desertos mais ao sul, para treinamento militar preventivo.

Mas quando chegou, em meio à intempérie e com ânimo determinado, embora já houvesse começado a desembarcar, a recepção não foi a esperada. O batedor estava lá, mas falou-lhe que o Senhor de Saigão estava ofendido com o trânsito das tropas por suas terras. E ficou muito insatisfeito, considerando repreensível e inadequada a conduta do Rei, de ter chegado sem aguardar uma confirmação de Saigão.

Mas Tantalus pisou firme, porque sua vontade de pedra era dura e irresistível. Estava firmemente disposto a controlar Saigão, tinha homens e inteligência suficientes. Nem o barro, o frio do deserto naqueles dias, nem a resistência do entreposto, seja lá como viesse a se apresentar, seria suficiente para impedí-lo. O certo é que Tantalus estava servido de homens estrategistas, sagazes. Miguel era o mais inteligente deles.

Já estava tudo meio amarrado, desde o momento em que o General Miguel vira quem eram os Protetores em fino contrato, da Cidade de Saigão. Nem a palavra escrita, a lealdade dos homens de contrato iriam contra uma promessa antiga de um homem de pedra.

Saigão em sua origem fora um amontoado de dunas, e depois tornou-se um entreposto no Delta no deserto do sul, este, chamado pelo Beduínos, de Terra de Areia. Todos os povos do deserto sempre fabricaram maravilhas. Tecidos de linho de palmeiras, linho fino de brodejão-do-mar-seco, lã de carneiros-de-caxemira, bordados, tapeçaria e armas exóticas polidas nas areias do deserto. Mas foi Rajan de Saigão, um reles criador de camelos, nascido como visionário, que lançou-se nas areias quentes e perigosas de Terra de Areia, levando as maravilhas do interior do deserto até um local estratégico. Ali levantou um império do comércio, entre o tempo contado na areia fina, ora escaldante, ora gélida. No Delta do Veio de Ouro, caminho obrigatório de navegação para atravessar o continente em direção ao mar, passando pelas ricas cidades do Norte, pelas Cidades Gêmeas, Vaudeferro, Penhascoforte, na despedida do Veio de ouro ele construiu um entreposto. Fundou uma liga e começou a comprar e vender coisas de todos os barcos que paravam por ali. A poesia da tapeçaria do deserto, os finos brocados e todas as tecelagens coloridas, reluzindo suas nuances intensas aos pés do rio castanho. Em pouco tempo, aquele pequeno quinhão de duna, virara um Oásis do Luxo, e a humilde tenda de Saigão tornara-se um suntuoso palácio, cheio de riquezas. Todos que vieram depois dele, trabalharam para ampliar e diversificar os produtos ofertados. E a opulência de Saigão ficou conhecida, muito rapidamente, em todos os lugares do continente. “A pérola do deserto” a chamavam.

Apesar das riquezas que mantinha, Saigão nunca desenvolveu vocação militar para protegê-las. E isso era um problema, pois muitos povos de dentro e fora do deserto começaram a saquear a cidade, apesar dela ter se tornado o pequeno pulmão de areia que empurrava as mercadorias para fora e trazia o ouro dos barcos para a terra seca.

No entanto, o Raj havia dinheiro viu que poderia comprar proteção militar. E pensou que isso era bom. Ouro, pedras, a riqueza comprava coisas, inclusive a segurança.

Foi então que o condestável Mohamed de Saigão, Raj à época, passou a utilizar proteção militar mercenária. O primeiro contrato foi com a Companhia das Cimitarras. Um bando dos próprios beduínos que os saqueavam, lançando mão do título de maiores Egirões das areias, viram que poderiam obter mais lucro com menos risco,e passaram que outros larápios organizados do deserto, provocassem perdas para os negócios de Saigão. Eles empunharam suas lâminas por muito tempo durante os ventos frios e quentes.

Depois caíram na desídia, e passaram a extorquir os Senhores do entreposto. Os condestáveis e administradores, os presidentes das Ligas, as Corporações de Ofícios. Todos eram intimidados Pelos Homens das Cimitarras.

Foi então que uma forte organização militar chegou, com poder de expulsar os Beduínos Egirões em seu próprio território. Chamavam-se de Lanceiros de Jade do Poente. Homens de Pedra batendo contra areia fina do deserto.

E a companhia ali se instalou e trabalhou duro com Saigão através dos tempos, numa relação mútua, calçada na linha fina da pena e do papel. Atualmente o comandante era Azimov, um jovem nortenho muito empertigado e de sangue quente. Muito famoso por sofrer de uma paixão arrebatadora por sua companhia.

Um Homem de Pedra é um homem de honra. Ele é o que ele faz. Ele faz o que promete.

E foi isso que Azimov fez, há alguns signos atrás, quando ainda treinava nas profundezas da montanha. E durante um exercício, ferira de morte um grande amigo, seu nome era Miguel. Sofreu de um pesar arrebatador, ainda quando tinha carne no coração, e não era um Homem de Pedra, mas apenas um menino.

E no seu medo, enfrentando aquele mundo bruto a duras penas, se deparou com a dor da perda, que marcou seu âmago, como outra coisa jamais fizera. E quando seu peito endureceu como jade, aquele sentimento ficou cristalizado, protegido num pequeno bolsão.

Ele prometeu à Miguel que daria sua vida pela dele.

Miguel suportou a chaga. E os dois, saindo das entranhas da montanha, como Homens de Pedra que se tornaram, seguiram cada qual o seu caminho.

Mas as circunstâncias do destino são intrigantes. Ali no deserto, à frente dos Lanceiros de Jade do Poente, Azimov viu aquele homem, cujo rosto conhecera bem, se aproximar.

Coberto por uma túnica amarelo mostarda, trazendo o estandarte Da Fortaleza do Sol

Era um batedor, anunciando a vinda do Rei Tantalus, que também fora menino convertido no coração de pedra do mundo.

E eles se reencontraram, e secretamente, Azimov foi chamado a cumprir sua promessa.

Então, quando Ágoras vestiu as luvas e entrou pelos portões do Palácio de Saigão, embarrando a fina tapeçaria, o Administrador Geral repreendeu a invasão ao seu domínio, dizendo que não havia autorizado o desembarque das tropas de Tantalus. Pediu que se retirasse imediatamente.

Tantalus, avançou às escadarias. O Administrador protegeu-se atrás dos seus homens de Pedra. Pensou que estava seguro, mas conforme o Rei avançou, os guardas abriram passagem, e o Raj de Saigão ficou sem reação, sem entender o que estava acontecendo Tirem-no, tirem-no! Quebradores de Contratos! O Mercador cuspiu no chão, assustado, porém desafiador.

Então os Lanceiros de Jade do Poentes entraram no Palácio e abriram caminho para seu Comandante, Azimov. Que ajoelhou-se, depositando sua lança, na soleira das escadas, perante o Homem de Pedra, duro, que reconhecia como Rei. E cumpriu a promessa que fizera à Miguel, no seu valor de lealdade, e não o valor pago em dinheiro.

E o Rei o recebeu, batendo com a mão no ombro, naquele antigo ferimento. E desceu, pegou a lança do chão, a colocando nas mãos do seu amigo. Mais duro que o aço! Disse, olhando bem nos olhos daquele homem. Mais duro que o aço! - ele respondeu.



O Preço

Raj Arik, o governo do Reino funciona tal qual uma corrente de elos. Se um elo está fraco, você o remove. A corrente fica menor, porém sólida. Eu não pretendo perder elos, nem removê-los, até que isso se faça necessário. Mas é natural, que quando esse elo quando parte da corrente, ele deve forcejar com os demais, a fim de evitar dar causa a um rompimento.

O Administrador ficou em silêncio após a fala de Tantalus, que estava sentando numa cadeira junto à mesa, como os demais. Pediu vinho para o seu Prestante. E ficou esperando por uma resposta.

Falar com ele era algo difícil de fazer. Pois sabia-se que era bom com as palavras. E sabia posicioná-las e escolhê-las de forma ameaçadora, porém nunca direta. E não costumava carrregar a fala de ironia. Ia sempre direito ao ponto e sem deixar dúvidas. Mas o que tornava tudo difícil, é que Tantalus usava uma máscara, e diferentemente de todas as outras pessoas, não se podia ler a sua expressão, para conduzir um diálogo.

Ficava sempre uma dúvida quando dito algo à Tantalus, que necessitasse de aprovação. E sabia que isso incomodava, porque costumava fazer longas pausas e muito silêncio após ouvir o que lhe era dito. E, na grande maioria das vezes, sequer respondia.

O Raj estava perplexo. Roçava o dedo na borda da mesa, como uma criança de castigo que ignora o apelo do pai.

Tantalus coçou a cabeça, e remexeu-se inquieto na cadeira.

Por fim, rompeu o silêncio, para estimular o Mercador.

Podemos discutir isso em outra ocasião, se o Senhor preferir. Vou lhe convidar para o café da manhã nos Jardins de Pedra. Varr Jötunn Bar, foi, e por muito menos eu o matei. Ele não quis assinar a moção para revogação do Tratado de Paz, mas o filho dele assinou. Ninguém é insubstituível, Senhor Arik. Haverá um Raj após o Senhor. Nossos termos não são discutíveis. Eu gostaria muito que os aceitasse, porque o Senhor é bem relacionado e influente. Isso é bom, mas não é precípuo.

O Administrador estava chorando. Saigão, pensava ele, estava quebrado. Mas puxou o documento para si e começou a ler em voz alta:

“É devido pela administração de Saigão, na figura da Liga de Mercadores do Oriente, à Coroa Real da Fortaleza do Sol, já observados os devidos descontos legais dos impostos instituídos pela Bula Tantalus Regnus, os percentuais de: trinta partes da arrecadação presumida na venda das mercadorias em estoque na data corrente, a serem pagas todo o Havdalá...”

Raj Arik, sacudiu a cabeça inconformado. E mais uma vez argumentou: “Eu não posso pagar imposto todo o Havdalá sobre uma mercadoria que não vendi, e que posso nunca vir a vender. Se assinar isso, estarei decretando o fim de Saigão”

Tantalus levantou, empurrando a cadeira para trás, arranhando o chão de madeira.

O Raj deu um salto. Muito bem. Mesmo que eu tenha lhe ofertado proteção das rotas de comércio, oferecido suporte irrestrito para transporte de mercadorias, tenha dito que vou comprar os seus insumos para alimentar os meus exércitos. Que vou construir um império consumindo os seus produtos para fazê-lo, o Senhor me diz não. Eu só posso concluir que o Senhor não é um bom administrador. Em sendo um mau administrador, o Senhor deverá ser substituído. Quem é o seu sucessor?

Arik ficou em silêncio. Tantalus Ágoras socou a mesa e o administrador piscando assustado falou que o próximo é eleito pelo conselho.

Pois então o Senhor vai convocá-lo, e eu vou ficar aqui como seu hóspede, até que o Novo Raj seja eleito. E sentou, cruzando os pés sobre a mesa.

Porque não me mata de uma vez?- disse o mercador sendo segurado na cadeira pelos guardas de Tantalus.

Eu não o mato agora, Raj Arik, - e engoliu o vinho da taça, de uma só vez- porque EU POSSO matá-lo depois. Assim, desde o momento em que eu entrei nesse Palácio, o Senhor já era um homem morto.

O vinho ficara entalado na garganta, lutando contra a raiva que subia rasgando.

Tantalus deixou a mesa e voltou para o acampamento.

Mas foi direto, cruzou por entre as barracas como se traçasse uma linha reta, evitando todos que vinham na sua direção, empurrando e gritando para que saíssem da frente.

Puxou o pano grosso da entrada com força, colocando-o nas alturas. Arrancou a pequena adaga que carregava na cintura e se pôs a esfaquear a mesa descontroladamente.

E respirou fundo muitas vezes, mas ele sentia aquele tremor e fogo intenso subindo e apertando o peito. E então sentiu uma movimentação atrás de si. Uma pessoa havia entrado na barraca.

Uma mulher, com o corpo completamente encoberto por um longo traje preto. O formato dos olhos amendoados denunciava que era uma mulher.

Ele pegou a adaga e foi na direção dela. Mas aquela fitas verdes vibrantes o fizeram parar. Ele não podia ver-lhe o rosto, mas somente seus olhos através de um fino e quase transparente véu preto. Ela estendeu o braço. Um documento.

Tantalus olhou para as mãos da mulher, enluvadas, e desconfiado, puxou a folha enrolada. O  mesmo contrato que o raj não quis assinar, assinado por ele.

Como? O Rei perguntou, colocando rapidamente a faca no pescoço dela. Foi um olhar direto para os olhos de Tantalus, e era forte, e desafiador. E entrava, ia fundo, na direção do peito, rasgando. Tantalus apertou a boca, com raiva e devolveu o olhar para a mulher.

Como? Ele insistiu.

Eu tenho meus meios. Ela disse, projetando ainda a sua pungente fita verde nos olhos igualmente verdes do Jovem Rei que a ameaçava. Mas há um preço. Ela disse, Quero sua semente.

Ele segurou a mulher pelo pescoço, como que fosse enforcá-la. E então a empurrou para longe de si.

Deu uns passos para trás socando o antigo ferimento, e ficou murmurando uma coisa inaudível.

A mulher se aproximou muito devagar de Tantalus, enquanto os músculos dele tremiam. Ela não tinha medo, como os outros, nunca fora desafiado daquela maneira. Nunca fora encurralado em situação tão desconcertante e enfurecedora.

Aquele fogo e frêmito que ele bem conhecia, como quando ele rangia o maxilar e aguentava tudo, tinha poder. E bateu incessantemente no ferimento.

E quando a mulher se aproximou dele, seu rosto queimou. Veio aquela rocha líquida incandescente de um homem de pedra ali dentro. Pulsando sob pressão. Então se virou na direção dela, e ela veio para beijá-lo. O que ele evitou, segurando-a pelo pescoço, mantendo-a distante. E a levou na direção da mesa. A desconhecida levantou a mão contra o rosto de Tantalus, e escorreu seus dedos sobre a máscara de couro, a empurrando para cima. Ágoras estava ofegante, e seu olhos eram como duas chamas alaranjadas, flamejando na escuridão. Então a máscara caiu, e seu rosto ficou à mostra, com aquela longa e profunda cicatriz, que atravessava todo o lado esquerdo. Então seus olhos mudaram de expressão, como se ela o reconhecesse.

Tantalus se deixou ser visto por ela, com o prazer iníquo que lhe era característico.

Ela estava prestes a tocá-lo novamente, ao que foi segurada com muita força no pulso. Ágoras forçou mais o corpo dela contra mesa, mantendo-se distante. Sentia aquela agonia vindo, o compelindo a arrancar-lhe a goela, ou esmurrá-la, tanto, que colocaria seu crânio exposto. Mas não, ele puxou a camisa com a mão, rasgando a flanela, e baixou a calça de montaria, ficando nú. Então seus dedos se fecharam com tanta força em torno do pescoço dela… Um força que ele não sabia que tinha.

Mas ela não morreu.

Ficaram com seus olhares fulminando um ao outro.

Tantalus, digo que conheci grandes Reis. Dos homens antigos e bravos fui mãe, porque meu ventre é antigo e fértil. O homem duro no qual te tornastes no fundo da montanha é capaz de conquistar o mundo e arrebatar os inimigos de seus tronos, mas não pode ser Rei. O Rei é o homem cuja coragem e justiça o fazem assim, por essas mesmas qualidades. O homem que se impõe usando tão somente a bravata e a crueldade é vil tirano. Retorquiu serenamente a mulher, com um riso angustiante na boca, ainda que espremendo as palavras pela garganta esmagada.

Tantalus Ágoras levantou, de qualquer jeito, as vestes dela, e de forma violenta pagou o preço que lhe foi pedido.

Antes de deixar a barraca, ela disse, sem olhar para trás Procure pela Gema, a resposta que você precisa poderá encontrá-la com o feitiço do desconhecido. E quando tiver dúvidas de quem você é, a resposta estará esperando em Shadai.

E foi embora.

Ágoras foi encontrado nu, no chão, ardendo em febre. Com ele estavam os documentos que fizeram daquele momento, um marco de seu reinado, que passou a controlar as maiores rotas de comércio continental..




Uma fratura

O Alto Sacerdote da Fortaleza do Sol estivera escutando o Rei por um longo tempo. Tantalus o procurou lá na Escola, em seus aposentos, tamanha era sua inquietação, ainda no meio da noite alta, na escuridão que precede o Havdalá. Parecia fora de si, transtornado.

O Rei se apresentara a ele com uma fragilidade que só vira na infância. Quando queixava-se que não podia ver a mãe. Ou então, que ela estava sofrendo sozinha e ele nada podia fazer. Achava afinal, que era realmente feito de Jade. Jamais colapsou, apesar dos horrores que viveu ainda menino. Às vezes o Sacerdote se perguntava se Tantalus sabia que sua mãe havia lhe inflingido um ferimento mortal. Se pergunta se sabendo teria ficado o menino em silêncio, carregando aquele fardo sozinho. Aquela cicatriz enorme que carregava abaixo das costelas. Se ele não sabia, seria uma benção. Afinal, que tipo de veneno pode fermentar na alma de um homem, signos a fio, suportando o peso de reservar para si que sua genitora o queria morto.

E ele estava ali, exposto assim, uma última vez.

E depois de ouvir aquele relato verossímil, de um homem que não costuma estar enganado, tomou aquela como uma preocupação genuína.

Sentiu surpresa, mas de certa forma saboreou um sentimento de prazer, por considerar que aquela forma como Ágoras se revelava, era uma fratura para o Homem de Pedra que ali estava. Sua impotência externada diante daquela fala estranha, que o Sacerdote chamou de “um ato de confidência”, era como um fôlego novo para o Alto Clerista. Vinha se sentido ameaçado e desprestigiado pelo Rei.

Ao fim, Edir de Gramateus sentiu a espinha gelar, e esfregou o pingente de pedra sombria, o que sempre fazia quando se lembrava dela.

Aquela figura que lhe fora descrita, era familiar.

E então, tudo ficou claro para Edir, desde os acontecimentos em Saigão, quando o Rei foi encontrado nu na barraca, ardendo em febre. Delirando sobre uma bruxa de preto que levara embora sua semente.

Trouxeram-no às pressas de volta para casa. Tendo saído poucas vezes de seus aposentos. Permitindo, tão somente, a presença da sua copeira e devolvendo os alimentos que recebera, intactos.

Recusara-se a ver o Alto Sacerdote. E mandou que extinguissem o fogo da lareira, que entupiu de roupas e outros objetos.

Ficava na escuridão, sem deixar que acendessem uma vela sequer.

Os soldados de Ágoras deixaram de ver o seu valoroso Rei passar entre as fileiras campais, pelos estábulos, pelos barracões de treinamento. Havia rumores de que fora destemperado, um homem de pedra quebrado.

Muitos se recusaram a acreditar, mas Tantalus não ia à Luz, falar aos seus, dando provas do contrário. E há tanto tempo estava assim, que nem mesmo os Generais conseguiam dar desculpas ou inventar mais histórias sobre o que se passava.

E, de repente, estava ali, esperando uma resposta, no auge da loucura.

De imediato não lhe ocorreu nenhuma resposta capaz dar fim àquela angústia do Jovem Rei. Mas ele escutou atentamente tudo, ficou intrigado e achou até instigante a parte final onde foi dito a Tantalus “Procure pela Gema, a resposta que (...) o feitiço do desconhecido. E quando tiver dúvidas de quem você é, a resposta estará esperando em Shadai.”, Edir, inclusive anotou.

Mas pegou um livro, que tinha lembrança, trazia a lenda de uma “Gema”, dentre as muitas lendas de pedras maravilhosas, de safiras, esmeraldas, lapis-lázuli. Fez isso na intenção de aliviar a angústia daquele homem. Chamava-se O mito do herói na liturgia do Primeiro Filho, por Patrono Parminedes de Niceia. Talvez tenha lido aquele livro uma vez. Folheado mais algumas vezes. Acreditava tratar-se de um trabalho raso, com linguagem pobre e pouca força retórica. 

Esses jusnaturalistas, sempre tentando subverter as grandes reflexões litúrgicas, transformá-las nas suas construções pessoais sem nenhum fundamento doutrinário. Pensou, enquanto puxava as vestes para se acomodar em um banco ao lado do leito. Os joelhos rangiam muito, ultimamente.

Então abriu o volume e procurou pela passagem que recordava: “após encontrar a gema na profundeza da montanha o Primeiro Filho não quis compartilhar a jóia com os demais. Quis a sua beleza, a sua luz, para si, e somente para si. Tamanho era o seu desespero em perdê-la, que ao saber das hostes que se moviam contra ele, para resgatar a pedra das profundezas das montanhas, ele a engoliu. E a sombra daquela pedra o envenenou. E ele foi corrompido pela avareza, pela mesquinhez e pelo ódio…” Blá, blá, blá, blá. E há essa outra passagem aqui “… quando tomou a poção do vomitório, arrependeu-se dos seus crimes. E sumiu para sempre, deixando a gema com as ‘parideiras de luz’. Veja-se bem, que o termo empregado se refere às mulheres que o auxiliaram na remoção do seixo. E à partir dessa expressão não pode-se concluir com certeza, o local a que pertenciam essas nobres mulheres. O texto indica que o Primeiro teria caminhado “através das montanhas”, sugerindo que ele tenha atravessado alguma cadeia montanhosa. Ora, ou são as cadeias do corredor dos chacais, pois se fossem as cadeias do ermos do norte, o Primeiro, só teria as terras de Tocaspretas para ir. Então se diz que ele “chegou a uma gruta’, e que ‘depois partiu pelos campos’. Pode-se identicar a região geográfica situada entre o Rio Veio de Ouro e as Terras de Evreskaya, passando por Represagorda, até Porto de Gaivotas.” Essa é a parca informação que possuímos sobre uma pedra, dentre incontáveis lendas de “gemas”. Mas é uma das únicas, senão a única, de que tenho conhecimento, que se refere à “Gema”. Essa gema que jamais foi encontrada. Essa gema que muitos procuram, cujo fragmento está na Ilhadura, com o Senhor Elder de Portopequeno, sob os cuidados do Patrono Esíodo de Portopequeno. Eu mesmo girei a Roda, no último festival. Mas ela, a misteriosa mulher de preto, disse para irmos à Shadai, encontrar uma resposta. Então irei. E trarei a localização da pedra, custe o que custar.

E fechou o livro, puxando os cobertores para cima do Rei, que havia pegado no sono, sobre o catre humilde do Alto Sacerdote.



Mãos que curam

Nos primeiros dias a sineta tocava incessantemente. Água, frio, alívio, abre janela, fecha janela. Vinho, vinho, vinho.

Uma noite ele saiu porta afora, na madrugada. Voltou no outro dia, direito para a cama. Ali ficou deitado e pouco saíra dali, desde então.

De súbito a sineta começou a tocar poucas vezes. Água, pão, alívio.

Na ultima semana, parara de usar a sineta. Ficava murmurando coisas nos cantos do quarto. Então a cama rangia, e rangia, porque estava dormindo e sonhando coisas que o faziam tremer sob os lençóis. Escutava as queixadas dele batendo.

Não comia há dias. Pelo cheiro a copeira presumia que andava se aliviando por ali mesmo. Ela só fazia arrumar algumas coisas, cujo barulho não fosse incomodá-lo. E depois se deitava na enxerga, esperando ser chamada. A barriga estava grande e dura, e já era difícil levantar e deitar no chão.

Um dia escutou a voz rouca. Frio, frio. Ela ficou surpresa, era a primeira vez que o rei falava diretamente com ela.

Então a copeira levantou desajeitada e passou a mão nas cobertas para tapá-lo. Mas ele não estava lá.

E foi tateando até a cadeira, também não estava lá. Não chegava perto da lareira desde que entrou para o quarto. Frio.- de novo. No canto. Não se enganava. Ele estava encolhido e não vinha nenhum calor do seu corpo. Então com dificuldade ela foi o ajudando a levantar, e a deitar na cama.

O silêncio era tão grande, que por horas não sabia ao certo, se ele estava vivo ou morto. Mas vinha um gemido ou uma respiração arfava. E a copeira confirmava que ele ainda estava ali.

Tinha episódios, daquilo que ela acreditava ser um delírio de medo. Uma assombração do passado. Não, não, não, mamãe, por favor. Dói, dói, mamãe, não! Ele gritava. Chamava por pessoas, nomes de homens, de mulheres. O que a copeira fazia, no mais, era tapá-lo e estar ali, pois quando ele sentia qualquer proximidade, encolhia-se para evitar ser tocado.

Mas ela sentiu uma dor na barriga. E gemeu. E o bebê estava se contorcendo muito, já sem espaço, o chão estava muito frio. E eram fisgadas muito fortes, que faziam-na sentir uma quentura no meio das pernas, como se fosse explodir. E o bebê remexeu muito, de um lado para o outro. E ela tentou sentar, mas as dores nas costas estavam muito fortes, aguentou as fisgadas e a dor tortuosa, empurrou muito as mãos na direção do chão, até que sentou.

Então sentiu, ele estava muito próximo, remexeu suas enchergas. Mas não se movia, estava parado.

A copeira continuou fazendo força para levantar. E a barriga estava muito dura, como se fosse rasgar ao meio. O bebê não parava e amontoava-se de um lado para o outro. Mas ela conseguiu  ficar de pé.

Uma sensação nítida, do ar, dos corpos, O homem se movia, talvez se aproximando.

Foi que o peso do chales sobre seus ombros foi diminuindo. A lã grossa foi escorregando lentamente, como se estivesse viva, saindo sozinha. Uma vibração fina entre os espaços anunciava a iminência de um toque gelado sobre a espalda, que forçava sua blusa para baixo. E então o mesmo contato do outro lado. Uma mão gelada e magra puxou os cordões da camisola que ela vestia, pressionando com delicadeza o pano para baixo, fazendo-o escorregar sobre os seios, sentido uma lufada tênue, até chegar ao chão. Movimentos à sua frente traziam-no para mais próximo dela.

O toque frio de uma mão vacilante, foi aos poucos se fazendo sobre a pele da barriga. Então veio um espasmo, o bebê se contraíra num grande movimento. A mão rapidamente se afastou. O ar tocou com rapidez na pela da copeira, anunciando duas mãos muito frias que seguraram sua barriga. E eram tão geladas que pareciam estar lhe sugando o calor do corpo todo por ali, de uma só vez. E aquelas mãos trêmulas se espalharam desajeitadas, sobre a barriga, trazendo consigo a confinidade de uma respiração cada vez mais exasperada, como de alguém tiritante soltando ar pela boca. E veio um abalo, uma tensão estabelecida entre o sim e não, entre tocar e recuar, entre o permitir e o privar. Arrebataram-lhe, por fim, da angústia da mercê os lábios que a tocaram na barriga, lábios frios e imóveis, cobertos de longos pêlos hirsutos.

Então ela aproximou a sua mão daquele que ali estava. E a extremidade dos dedos esquálidos da copeira encostaram no cabelo dele, Era ralo, estava bagunçado. Fino e macio, como de um bebê. E seus dedos foram descendo, estabelecendo timidamente o contorno das orelhas, da testa levemente pronunciada, da pele seca. Sobrancelhas fartas porém não duras, macias como o cabelo. E havia olhos fundos, molhados e pequenos. Deixou o pouco de carne dos indicadores passarem lentamente sobre seus cílios, os levando de um lado para o outro. Eram longos e não eram muitos. E descendo havia uma barba, farta, porém aveludada, que ela apalpou com muita leveza. Depois, moveu as mãos de volta ao rosto, notara algo ali. Algo muito diferente das faces que já conhecera na escuridão.

Com candidez deslizou o pomo do dedo desenhando o sulco profundo, cujo interior ela experimentou muito lentamente. E aquele ferimento possuía as bordas altas, levemente grumosas e esponjosas. E era longo, pois iniciava pouco acima da sobrancelha esquerda e descia, livrando o olho, mas continuava no seio da face, e depois se perdia entre a barba. Seus dedos subiram delidacamente até a boca. Lábios grossos, com as bordas firmes, no formato de um coração, mas estavam ressequidos e com muitas rachaduras. E depois ficaram molhados, seus dedos foram ficando umidos, assim como aquele rosto todo. Úmido e levemente quente. Então as mãos dela estavam se afastando, enquanto a copeira permanecia imóvel. O homem levantara. Era muito mais alto que ela, porque quando estendeu os braços para tocá-lo, alcançou os seus quadris.

Então duas mãos encontraram as suas, aquelas mãos frias, de dedos longos e duros. E a conduziram para cima, através do tronco. Os músculos pelos quais ela deslizava, se contraíam, como se não nunca tivessem experimentado o toque. E uma plumagem rala cobria o peito eriçado, que aos poucos deu lugar a uma carne de pele dura. E havia um declive, uma cavidade no ombro, onde a pele convergia para o centro, um ferimento. Tinha textura de ranhuras, como uma lâmina dágua, que ao colapsar congelou. E era grande e seus dedos se demoraram no centro, naquela pele lisa e dura. Até serem levados, lentamente, para baixo, através das costelas, magras e salientes. E abaixo delas, do lado esquerdo. Havia algo ali.

Era outra cicatriz, porém mais profunda, Fina, com bordas lisas e pouco altas, e levemente protuberante. O homem estremeceu. Mas se deixou ser tocados, e os pequenos dedos magros e finos, porém duros se demoraram ali, resguardadas pelas mãos frias e trêmulas, que até então conduziam as suas.

Até que, subitamente, a copeira teve as mãos abandonadas, aquela presença gélida foi a deixando aos poucos. E sumiu, entre as paredes frias, entre os espaços escuros. Entre as vagas de ar que cruzavam todas as frestas daquele quarto. Sumiu nas profundezas de um silêncio tão pungente, que só as fitas brancas de Liz eram capazes de compreender.

Ela escutou o estalido das madeiras da cama e um suspiro cansado.

Olhou para onde estariam posicionadas as suas mãos, voltadas para o rosto. Mas continuava cega. Sua escuridão branca, eterna e solitária.

No entanto havia algo nas suas mãos, algo como uma poeira, feita de pequenos grãos. E eles, ainda que finos e muitos pequenos, eram pontudos e ásperos, como pequenos cristais. No entanto eram duros, muito duros. Duros como jade.




Fofocas na cozinha

Meus dedos doem e estão com calos. E ainda tenho todo aquele cerro de batatas para cortar! -Disse Ailin, contrariada.

Ora, cale a matraca, e continue cortando essas batatas. Porque não é apenas um cerro de batatas, há repolhos, maçãs, cenouras e muito alho para descascar. E devemos preparar carneiro frio em lascas, que é o favorito do Rei. Seis porcos, para tostar em fogo brando com mel de laranja, cortados ao meio. Setenta pojos 1 destrinchados que estão chegando pelo Rio, que queira D’us, não se atrase. Uma carroça de aveia para o pão. Nove quilos de amêndoas para esmagar na pedra e depois cozer seu leite. E ainda decorar o bolo, que virá da Casa Doce, na Vila Oeste. -Retrucou Marlene, chefe da cozinha, enquanto trazia para dentro, no muque, duas caixas de madeira repletas de beterrabas.

Mal saiu daquela pocilga que virou o aposento real, já nos ordenou trabalho! - retrucou, Ailin.

Já lhe mandei calar a boca!- ralhou Marlene, lhe jogando uma beterraba. Por fim acabou-se a agonia de ver o pobre menino naquele sofrimento lá em cima. Já veio ordens de que façam a limpeza lá, esfreguem tudo. Deveriam colocar um piso de madeira por cima daquelas pedras horríveis e escorregadias. Aquele é ainda um dos únicos quartos que possuem cara de caverna nesse lugar!

É! -e continuou Ameli, destrinchando um quarto de carneiro,- E parece que já foi enviado um perdigueiro à Shadai, para que avise o Alto Sacerdote que o Rei saiu do claustro. E quando chegar aqui, vai nos forçar a cozinhar outro banquete novamente. Vai precisar comer muito, nosso Reizinho, dizem que está tão magro como um mendigo. -E ficou pensando, parada, Mas depois continuou cortando a carne.- Se bem que os magros são mais bonitos e charmosos. Não tão magros assim, é claro! Na Vila Oeste são todos muito magros, bem assim. E quando não, são gordos e mal podem subir nas carroças sem ajuda. E lá na Vila Sul, Ailin, como são?- interpelou, chupando a ponta do dedo que cortara com o cutelo.

Ah.. São meio que homens. Como.. - Gaguejou Ameli.- São iguais, todos iguais. E não prefiro nenhum deles, falam de guerra, te deixam com todo o trabalho de casa e depois ainda te chamam de louca quando se reclama da letargia deles. Criamos os filhos, limpamos a casa e trabalhamos fora. E ainda assim não podemos opinar quando pensamos, sobre o que pensamos e se discordamos ou não do que pensam.

Ameli!- Aillin ficou chocada, virando-se com o dedo na boca.

É verdade! A mais pura verdade! Eu queria ser uma Patronesa... Como Miriam de Tocaspretas. Ela é muito boa. Eu já a ouvi falar no Parlatório do Templo. E sabe, ela diz isso. Que nós mulheres temos tanto direito quanto os homens, que devemos erguer nossas vozes. E ela disse que há uma passagem no Livro dos Mistérios que fala bem disso. O Quarto filho foi uma mulher. Uma Leoa Guerreira. Que só era tocada quando permitia, que libertava mulheres escravas e as ensinava a lutar contra a opressão, lá no meio do deserto. Que elas destruíram e lideravam exércitos e só tinham filhos quando queriam, não sendo obrigadas a isso por nenhum homem. - Explicou Ameli, levanto-se para pegar mais batatas.

Que conversa estranha. - replicou Ailin e depois ficou em silêncio.

Estranho é ser espancada no meio da noite quando seu pai chega bêbado em casa, e sua mãe está com tanto medo que não pode te defender. Ou quando riem na sua cara por dizer que quer ser soldado, mas que mulher não é feita para a guerra. Ou ainda quando te fazem descascar batatas na cozinha, e você queriam estar lá fora, pondo arreios nos cavalos. Isso é estranho! E estranho também é achar que tudo que critiquei é normal e certo. - Ameli foi firme e não se importava em ser desabonada pelas caretas de Ailin.

Marlene arrancava as ramas das beterrabas com um facão. E também fez a sua fala na conversa: “Ameli tem razão. E se um homem vier pra cima de mim, eu arranco o pinto dele.”- E passou o facão com força na rama.

Todas riram muito.

Mas, no canto, ouvindo tudo, estava Massara. Quieta, escaldando os panos da cozinha. Desde que trabalhava nas cozinhas de Harpis conhecia a lida de uma casa real. E quando Susana pediu que ela ficasse na Fortaleza, para que se tornasse seus ouvidos ali, ela sempre soube que a cozinha seria o melhor lugar para isso. E desde então ouvira tudo que se dizia no castelo. Desde Selena, sua amiga e cúmplice, que fora pega tentando envenenar o Rei, do comboio dos guardas que destruíram o vilarejo do córrego atrás de uma coisa mágica que não foi encontrada, que estava sendo organizado um grande torneio militar, cujo banquete estavam cozinhando, de como pretendiam se opor a Vaudeferro e da estranha insistência do Rei em fazer ser atendido por uma copeira grávida e cega.


Continua em 03/09…