27 de junho de 2021

As sete atalaias

 




As sete atalaias

O velho coçava a cabeça sem saber onde largara a ferramenta. No meio daquela oficina, naquele dia, não poderia encontrá-la com facilidade. Todas as encomendas, todos os projetos em que vinha trabalhando estavam ali. Alguns espalhados, outros por começar. Outros mais adiantados. E outros que nunca terminaria.

O seu mira-cosmos. O maquinador de tarefas. O ousado morcego-barco. Estava tudo ali, mas não havia nada ao mesmo tempo. Isso porque parecia uma grande e única bagunça, na qual somente o velho Mestre Agenor conseguia se guiar. Uma bagunça organizada, dizia ele.

Mas ele estava nervoso, com a tarefa que recebera. Bons amigos, pensava. Mas quais bons amigos planejariam metê-lo numa confusão tamanha?

-Sete atalaias! - murmurava ele sem parar.- Sete atalaias. Uma para as profundezas do mundo. Outra para as ilhas distantes. Uma atalaia para o deserto intransponível e uma atalaia para os ares. Uma atalaia para o fogo e uma última atalaia, para a vigília final, quando todas as outras falharem no seu dever.

Um louco pediria isso. Seus inimigos. Sua velha esposa ranzinza. Seus amigos não. Era um trabalho de uma vida e a sua, vinha sentindo, estava mais para perto do fim. Setecentos signos bem vividos, afinal. Quatrocentos e vinte filhos (na última contagem), nove esposas e milhares, e centenas de incontáveis invenções maravilhosas. Mas era sempre a mesma conversa, a guerra, o rei mau, a pobre rainha, o rei honesto. E ele já estava comprometido com uma ideia mirabolante, sem nem mesmo ter dito sim. Nesse mundo de hoje abusa-se dos velhos, pensava.

Estava magro, muito magro. As pernas tortas, muito tortas, e a cada signo mais baixo. Ou seria sua bancada trabalhando a madeira?

Então um estalo. E batidas ritmadas vieram aos seus ouvidos. Os pelos saltavam das orelhas, fartos e grisalhos. O barulho! Certamente vinha do acelerador de pensamentos. Estava baqueando novamente. Encostou a cabeça ao lado do aparelho, mas definitivamente o som não vinha dali. Não, não, pensou. Seria o ferreiro autômato? Onde ele estaria… Ah, só pode ser o coça-pansas! E as batidas continuavam. Girou a manivela do aparelho e deu uma bela coçada nas costas. Era muito relaxante! Mas não era ali o barulho, definitivamente.

Foi quando a Senhora Arlinda gritou lá do fundo da oficina: “Atende a porta, Agenor!”

Eram visitas, afinal. Sim, um velho amigo.

Saltou de um banco e foi balançando, de um lado para outro, para atender a porta. E o fez ele mesmo, a despeito das cinquenta invenções que havia construído, somente para atender a porta. Fê-lo pessoalmente, afinal aos amigos, recebemos nós mesmos, com o prazer do reencontro.

Abriu a porta e abraçou com muita alegria o seu mentor, o velho Decano, Mestre Egídio.

-Entre, entre, temos muito o quê conversar. Afinal, alguma coisa acontece em duzentos signos, não é mesmo? Este é o tempo que não nos vemos. Anotei isso no meu memorador, pois coisas muito antigas já não consigo lembrar com tanta facilidade. Mas recebi seu recado, Mestre e amigo. Os planos andam bem. Mas entre, vou preparar uma xícara de chá.

Mestre Egídio foi passando pela estreita clareira que se abria entre os milhares de objetos e peças, sucatas e quinquilharias. Para ele era sempre mágico estar ali, visitando aquele que fora seu aprendiz há 500 signos.



Um chá entre amigos

O chá estava tão quente, que a boca da xícara fumegava como uma cratera de vulcão. Mestre Agenor tentou pegá-la, mas queimou a ponta dos dedos. Ficou soprando com um bico pronunciado. Tentou beber um tantinho pela beirola e queimou os lábios: “Au!”, esfregou a mão na boca, tentando fazer passar a dor.

Puxou um braço articulado da parede, com um leque de plumas esvoaçantes na ponta. O direcionou para dentro da xícara e ficou girando uma manivela. A manivela impulsionava uma engrenagem na ponta do braço articulado, essa, através de um cabo, movia o leque para trás e para frente. Em breve estará na temperatura ideal, dizia Agenor, sem perceber que as plumas chapinhavam na superfície do chá.

-Como eu dizia, -retomou o Decano, Mestre Egídio-, ele era um homem de seu tempo, esse Seth. Um tanto esnobe desde de o início. Mas certamente que tinha as qualidades necessárias para ser reconhecido por aqueles que lhe eram contemporâneos, reconhecido como um líder. E fora de fato. Mas o que me intriga, sempre me intrigou, é que mesmo lhe sendo o tempo vivo tão curto, se dedicou à batalhas intermináveis. E morreu de forma trágica, como se fosse ontem. A humanidade faz isso o tempo todo: começam a guerra e então a terminam. Ficam todos com a alma quebrada. Mas se esquecem tão facilmente de tudo que em seguida, recomeçam a batalhar. Sempre falei para o Senhor, e todos os demais artífices, que deveríamos nos unir no ímpeto de construir um dispositivo. Um que fosse capaz de lembrar aos homens exatamente tudo o que ocorreu no passado. Giovani pensa o mesmo,mas livros não bastam, não os lêem. A finalidade é de que não fiquem insistindo nos mesmos erros. Eu me sento aqui, como em minha oficina e no escritório, e fico refletindo sobre quantas vezes eu já vi esse ciclo se repetir. E sei que até o final de meus dias, ainda verei muitas guerras, enquanto nos tornamos meros espectadores de toda essa perda de tempo.

Mestre Egídio voltou-se para Agenor, mas ele parecia não ter ouvido o que dissera, estava rindo com as cócegas que as plumas faziam no seu rosto, com o vai e vem do abanador.

Então ele ficou desconcertado:

-Quer experimentar?, - indagou, fugindo das pelúcias.

O Decano sorriu, e lembrou de achar esse comportamento de Agenor sempre tão elevado, mesmo quando as ocasiões traziam o interesse dos assuntos sérios e sombrios.

Mestre Agenor finalmente tomou o chá. Mas ficou cuspindo os muitos fiapos que sorveu. E viu, eram muitos dançando na xícara. Ele ficou insatisfeito com a eficiência do aparelho.

- Não importa…- abandonou aquilo resignado.

Nunca tive dúvidas de que ele seria o vivo perfeito para a tarefa”, pensou o Decano observando a adequada ignorância do antigo aprendiz.

-Bom, vejamos. -Disse Agenor, descendo o óculos e abrindo o esboço gigantesco de uma invenção. Desenhado à tinta em papel fino e semi fosco. Veja:

-“Atalaia do Pescoço Longo”.

O desenho era rico em detalhes, e a concepção verossímil e arrebatadora.

Uma longa estrutura vertical, elevando-se acima das nuvens. Encravada nas montanhas dos Ermos do Norte, uma maravilha da engenharia de alta precisão. Não empena, não quebra e não é facilmente abatida pela intempérie. Garantia de dois mil signos na magia de preservação. Paredes, piso e teto, portas, caibros e dutos, tudo do mais puro cristal de velum da Fundição Caldeiraquente F/P (filhos e primos). Veja, é para ser Cristalina. Portanto, tão invisível quanto os ventos. Portas de travamento mágico, toda automatizada com cabos e arranjos. Possui autonomia energética de seis mil signos, alimentada pelo grão de Uranina 30 ton. Uma cortesia, é claro, da Guilda de Cientistas de Vaudesílica.

Mestre Egídio ficou maravilhado, com aquilo. Todos os detalhes e tanta excelência.

-Está em fase final de acabamento, meu caro amigo. As outras seis estão a caminho. Umas mais adiantadas que outras. E se for do seu interesse conferir tudo, nós podemos visitar os canteiros de obras onde centenas de ananicos trabalham incansavelmente dia e noite, com verbas e adicionais de insalubridade devidamente pagos.

Então, ainda mergulhado em toda aquela expressão máxima da engenharia de artifícios, Mestre Egídio, se viu sem palavras. Logo ele. E só conseguiu dizer: 

-Sim, meu amigo, com certeza eu gostaria. E sorveu o seu chá, que já estava na temperatura perfeita.


Continua no conto “o sentinela da primeira Atalaia” 

18 de junho de 2021

Coração de Ferro






Coração de Ferro


Forja do Deserto

-Vá mulher, desça o martelo! Senhora Coração de Ferro- troçava o novato na frente do seu deck, rindo para os demais, às costas de Tila. A Ferreira encarregada correu o olho nos aprendizes e logo pressentiu que o deboche era sobre ela. Enquanto riam, no silêncio da cabeça de Tila, passava o mesmo de sempre, ter que ensinar uma lição para mais um idiota que chega nos salões e não sabe onde é seu lugar. No meio da agitação, Tila deu uma cusparada que era de seu costume, pegou um pedaço de ferro e caminhou serena entre as bancadas arremessando aquilo na fornalha do iniciado. O lingote estourou no fogo fazendo o caldeirão cuspir pedra líquida o suficiente para deixar o novato gritando por muito tempo. 

Tila não ouviu, ou se importou, voltando a bater sua lâmina e deitá-la na água pura, água para espadas, não para gente. Para ser um ferreiro de obras primas é preciso que você seja alguém obstinado, não se vai aos salões querendo uma vida boa, tampouco diversão, você chega ali com um ideal, uma missão, um desejo de construir um legado quase eterno. Imortalizar sua marca e quem você é para sempre nas linhas do ferro e do aço batidos, nas tranças de metal que logo vão se misturando em mínimas partes, até chegar àquilo que chamam maestria. Agora ela era o Coração de Ferro, o mestre da forja de Sabo.

O suor vertia e deslizava na pele ardida e recozida no calor da forja, dura como fosse o próprio aço temperado, morena como a tisna que lambia as duras barras empilhadas ao lado da fornalha. Mas este suor, antes mesmo de escorrer, evaporava, restando o sal incrustado nos poros, como jóias minúsculas depositadas no ornamento da testa recurva de tanto espremer os olhos. Viver nesses salões era um ato de resistência: resistia-se à penosidade da profissão e das condições de tabalho, resistia-se para permanecer vivo, quase que por teimosia. A mãe lhe dizia desde pequena, quando quis aventurar-se nas forjas de Sabo: “daquele lado do mar as espadas são feitas de luz, os filhos do deserto sopram suas virtudes nos punhos e nas lâminas, não há o que possas tu fazer lá, és do ocidente, quem há de querer um mestre de forja que só bate no lingote?.”. Mas não havia filhos do deserto do outro lado do mar, ninguém conseguia ter filhos, não havia nada, só túneis e mais intermináveis túneis sob a rocha dura, cujos caminhos da superfície eram mortais para qualquer vivo, o ar que dissolve tudo, era assim chamada a bruma verde que se espalhava além das sete quedas de Sabo, os desertos intransponíveis.

Tila nunca ouviu a mãe, e depois, nos dois primeiros anos como aprendiz nos salões de artesanias da escola de mistérios de VaudeFerro, perdeu a audição, o bleng bleng ensurdecedor das marretas no aço gritando a feriu tanto que passou a ouvir muito pouco, até as duras marteladas foram sumindo, até aquelas que faziam os dentes tremerem, o que em parte aumentou sua concentração, mas também sua desconexão com os outros.

Logo, foi mais fácil descer na escuridão, aprender a se submeter aos infernos vermelhos onde se escorria o ferro líquido, onde as formas eram cheias do verdadeiro sangue das profundezas de Kroom, para dar à luz à joias, barras de metais cunhadas para o Nosso Senhor da Fortaleza do Sol, espadas, escudos, lingotes dos mais variados metais que vinham sendo trazido dos veios e lavras espalhados debaixo do VaudeFerro, onde não chega luz, ar ou qualquer esperança de descanso.

-ei, levante e tempere! - ela grunhiu para o aprendiz ferido, falando do seu jeito, como quem perdeu a habilidade de verbalizar as palavras corretamente, e foi enxugando o suor que brotava na testa.

Em instantes, o salão foi tomado por um silêncio retumbante, isso porque não havia vozes, mas somente o tilintar do ferro forte e fundido a marretadas, o pesado bater incessante contra os lingotes nas bancadas de forjadura. Tila sabia pois fora sua primeira lição, antes de aprender a trazer uma espada à vida é necessário que o aprendiz se coloque no lugar do metal: deve ser duro, mas não em excesso, para poder ser vergastado e moldado, então deve se recurvar àquilo que é necessário, e aprender na dureza, para se tornar um ferreiro nos salões de Sabo. É preciso atravessar as nuvens que derretem tudo, mas que estão lá embaixo, no vapor do ferro quente caindo dentro da água, nas imagens distorcidas pelo calor, nos rostos atormentados pelo fogo, nos olhos quase cegos de quem trabalha nas profundezas. Com o tempo os ferreiros dali não veem muito mais à distância do que ouvem, conseguem manter a atenção da sua vista e da sua mente deitadas sobre as incontáveis barras de minérios que chegam à sua frente para se tornarem punhais, espadas, escudos, toda sorte das mais primorosas lâminas de Kroom, as das forjas do deserto.

Enquanto as ligas eram espremidas contra a bigorna lá no âmago das minas, um outro mundo entrava em convulsão, um distante, cheio de criaturas em conflito: os vivos entravam em guerra. Absolutamente alheia a esse fato, Tila continuava batendo sua marreta, mas mal sabia ela que enquanto trabalhava na forja, Kroom era banhada por um oceano de sangue dos Kaisar e dos Povos livres. No entanto, as águas andam e procuram sempre os baixios, principalmente os recônditos mais abissos, onde deslizam sem piedade e afogam suas criaturas.


— Corram! Corram! Escravistas! Escravistas entraram na mina! — Gritava o novato sem saber pra onde correr dentro do salão quente e apertado. Pegou uma espada deitada do lado da forjadura, ainda inacabada e a empunhou tremendo e olhando para a única saída.

— Tila..— E balbuciava, porque a voz mal lhe saía da boca enquanto um dente batia no outro.  Ninguém ali era um guerreiro, eram forjadores, logo trabalhavam para eles - os soldados estão vindo...

Tila não podia ouvir o que era dito, tampouco pode ouvir os gritos que se espalhavam pelos túneis, o tilintar de espadas batendo contra escudos, batendo contra carne e ossos, as rebatidas contra a parede rochosa nos corredores apertados, era a chacina  gritando e ela derramava sangue nas profundezas dos salões da forja. E muito embora não pudesse ouvir tudo isso, Tila sabia que o perigo estava próximo porque o rosto do seus companheiros se contorcia de medo e angústia pelo que estava por vir, a morte se anunciava em cada expressão daqueles homens servis, dos lábios se movimentando na meia luz, todos ao mesmo tempo, abrindo e fechando exaustivamente, enquanto seus olhos se arregalaram, seus braços se esticavam indicando direções, seus estômagos se revoltavam colocando pra fora a última refeição. 

“É assim antes de morrer.”, ela pensou, enquanto empunhou a espada que forjava, uma lâmina a meio pau ainda com a empunhadura por fazer, aquela iria para a Fortaleza do sol, provavelmente para acabar no bucho de algum soldado kaisar.

E não é que quando se vê a morte a espinha gela?! A pele fica dura e tudo ao redor desperta temor, os pelos se arrepiam e toda uma vida passa pela cabeça, principalmente aquilo que não foi feito, mas que deveria. A morte é a hora do arrependimento, é por isso que uma coragem absolutamente irrefreável surge, um instinto de sobrevivência para manter vivo o corpo e alma, querendo prosseguir e dar cabo daquilo que ficou pra traz no esquecimento.

E quando os homens começaram a surgir sob o umbral parcialmente destruído pelo tempo, parcamente esculpido na pedra, suas túnicas pretas foram iluminadas. A imagem das chamas se espalhou sobre os escudos que se amontoavam na escuridão, os olhos refletiram o vermelho e o laranja do fogo remexendo com seu calor nas vistas parcialmente encobertas pelo elmo dos bandeiras sombria. E a luz rebrilhava mais ainda sobre suas vestes quando encontrava o sangue salpicado e ainda quente de todas as vidas coletadas dentro da mina.


— resistir! — Era uma ordem de Tila, uma ordem para se manterem dentro da existência, mas que compreendia o significado de tudo aquilo como algo absolutamente irreversível.

Ao ouvir o grito de Tila os soldados avançaram sobre forjadores.

Num ímpeto, a Ferreira tomou a frente, segurando a espada do primeiro guerreiro que se lançou sobre eles, seus músculos tesos contiveram o avanço da lâmina, impedindo que ela descesse com violência sobre o seu crânio. Embora não tivesse a Habilidade da luta, Tila era muito mais forte do que seu oponente, os braços musculosos, as marteladas precisas, os movimentos repetitivos de todo dia a levaram até aquele momento onde ela arremessou o soldado e a espada para longe, contra seus companheiros. Por um momento os aprendizes se encheram de coragem e foram na direção dos algozes. Mas nem tudo saiu exatamente como se planejado ou como ela esperava, o infortúnio é tão competente quanto a sorte. A coragem de Tila, que inflou o coração daqueles homens, foi uma grande maldição, pois aqueles que ousaram investir contra as espadas foram por elas atravessados, destrinchados, aniquilados. Logo a resistência de Tila não tinha mais sentido, embora não conseguisse ouvir os gritos da morte se espalhando pelo curto salão, enquanto tentava se livrar de seus oponentes, foi por isso que virou rosto e observou por entre os respingos e rescaldos de sangue na sua face, um a um cair. Até que, enquanto mantinha suspenso seu braço, forcejando contra o escudo do guardião para impedir que arrancasse sua cabeça, um breve pensamento tomou conta da sua mente até se transformar em uma ordem na sua boca: 

— rendemos! — Aos poucos o som da batalha foi diminuindo, dando lugar aos gemidos daqueles que se encontravam ao chão entre a vida e a morte, os urros últimos daqueles que passavam para a primeira consciência, para um lugar uno de onde tudo vem e para onde tudo volta, o descanso eterno. Mas aqueles que lá estavam vivos obedeceram a encarregada e não resistiram, deitaram suas lâminas em construção, seguiram a ordem daquela mulher, entregando-se a um destino absolutamente desconhecido.



Caravana dos acorrentados 

Quando abriu os olhos foi obrigada a fechá-los, a luz do sol era tão forte e não lembrava de um dia tê-la sentido assim. Até que tentando desvencilhar daquele incômodo, percebeu que estava sendo cutucada, o Novato estava ao seu lado movendo a boca sem parar. Os olhos logo se espremeram para compreender o que era dito, mas não era fácil assim com tanta luz. Ao redor grades de madeira a circundavam, estava detida num carroção gaiola com muitos de seus companheiros, lá fora uma fila imensa de todos os tipos de vivos de Kroom se fazia, seres em todas as condições: alguns tropeçando, outros quase mortos, mas ainda vivos, vivos de todos os povos ali escravizados. Onde se encontravam?

Ela bateu os ombros para o aprendiz perguntando onde estaria, depois estalou o bico e apertou as mãos à frente da fale, ela pedia:

-Eu não sei!, Estamos em algum lugar do deserto antes das quedas ácidas, creio que não muito distante da mina, mas longe o suficiente para morrer se tentarmos fugir sem água e comida!

Tila deu de ombros irritada e gesticulou com a mão na frente da boca franzindo as sobrancelhas pedindo que o novato movesse os lados mais devagar. Porém viu soslaio um pé cutucar a canela do aprendiz. Virou rosto na direção do homem, estava machucado e coberto de tisna de carvão, você conhece as topeiras da carvoaria quando vê uma, embora nunca tenha visto uma na vida toda. Dentro das minas existe um mundo nas profundezas, você não precisa visitar todos os lugares para saber que eles existem e quais as criaturas que trabalham e vivem lá, você só sabe como tudo funciona e o que tem que fazer para concluir seu trabalho. Ninguém vai voluntariamente para os subterrâneos se não está disposto a ficar no seu posto e fazer o que deve ser feito. Os carvoeiros transformavam a pedra mole e farta de combustível em pequenas pedras, essas alimentavam todas as fornalhas do outro lado nas minas, as forjas de calor lendário e incomparável de Kroom, cujo fogo, único, proporcionava a criação das armas mais perfeitas de todos os continentes. Era lá que  Tila trabalhava.

O carvoeiro falava a língua dos martelos, era assim que chamavam-se os sinais e sons que Tila fazia, um idioma usado por quem morria para a vida na superfície para se tornar um mestre forjador na escuridão, abraçando o fardo de perder a audição e prejudicar a visão, um preço que ela aceitou pagar muito cedo na vida.

-Dédalos, me chamo- disse esticando os dedos sobre a testa, era seu sinal. - sou engenheiro da carvoaria, é por isso que não estou com os demais- disse apontando para a fila longa fora do carroção, onde os demais encontravam-se amarrados a uma mesma corda, como flores murchas presas a um mesmo galho, mas prestes a despencar.

Tila levantou as sobrancelhas compreendendo o que era dito, já que não esperava vir a entender o movimento dos lábios dos Kaisar, eram como um puma se movendo rápido na escuridão, outro idioma, ela tinha certeza.


Enquanto balançavam de um lado para outro, ficaram observando o que os circundava, até seus olhos se habituarem a claridade dali.

Os soldados se dividiam em uma guarnição na linha de frente do comboio, seguidos de três ou quatro linhas de arqueiros, todos cobertos pelas capas sombrias e o pavilhão tenebroso flamulava sobre as cabeças em fila: roto, tenebroso, simbolizando a ausência de qualquer identidade. A identidade era o nada, onde tudo é igual.

Depois, em movimentos constantes, os batedores montados em chacais gigantes, como jamais Tila havia mirado, rosnando e gritando uns para os outros, enquanto saltavam com seus senhores sobre pedras, morretes de areia e a terras mole das praias sem água que compunham o terreno daquele lugar em Sabo. Seus mestres, ao perceberem que deixavam a breve tranquilidade, jogavam pequenos pedaços de carniça para entretê-los, ainda que provocasse pequenas disputas, logo o chicote pesado descia-lhes sobre os lombos para mostrar o dever da ordem e obediência.

Depois vinha o comboio dos escravos, primeiro os carroções, depois os acorrentados, todos a pé, por fim os feridos, depois os idosos com as crianças. 

Para onde iam, ninguém sabia, exceto que se viessem a se desgarrar a morte era tão certa quando o sofrimento nesse futuro estranho que se desenhava.


Uma criança ia chorando e segurando a mão da mãe, embora pudesse parecer tão estranha para Tila aquela cena, que a criança pudesse procurar consolo em uma mãe cativa, fez com que lembrasse do passado e de quando a sua própria a levava para passear nos vales verdes de Vaudeferro, bem assim, a segurando pela mão, enquanto as pessoas iam com seus afazeres das tardes, quando era levada até a boca da mina para encontrar seu pai, brincar com ele e receber pequenos esculturas que lhe fazia na pedra friável que extraiam de lá. Mas não foi por muito tempo que ficou admirando a cena, de repente tudo parou e um alvoroço tomou conta de tudo, se Tila pudesse ouvir, teria entendido quando o batedor vinha da direção de um vagalhão que se formava no deserto, bem assim, girando um apito de madeira segurado por um fio metálico no alto da cabeça: “recolher! Recolher! Nuvem verde! Nuvem verde!”.


Um dos carroções se abriu, uma longa lona foi estendida sobre todos, que foram amontoados e espremidos na ponta das lâminas, enquanto três ou quatro homens se posicionaram do lado de fora. Cânticos nasceram nos ouvidos de todos, até nos de Tila, fazendo seus dentes ficarem dormentes e um gosto doce tomar conta da boca. 


O aprendiz, tinha um sorriso nos lábios:

-já vi isso antes, fazem nos rebanhos ao sul de Sabo para que os vagalhões de ácido não devorem as vacas nos campos, que emocionante! É magia!


Logo Dédalos repassou a informação para Tila, que ficou cuspindo sabe-se lá o que no ar, como era seu costume desdenhar. -Estamos nos movendo cada vez mais para o sudeste, essas nuvens serão mais frequentes. Não sei onde querem nos levar.- ele complementou, espremendo os ombros em um gesto longo e acompanhado do franzido da boca. 

Tila respondeu batendo a mão no ar, “vamos morrer onde quer que cheguemos”, ela dizia enquanto desciam do carroção, dando de ombros com a tranquilidade de quem sabe que vai morrer um dia. Era hora do alívio. 

-Vá urinar pra lá! -disse Dédalos ao novato, evitando aproximarem-se muito, ao que o aprendiz respondeu com uma cusparada, o de costume dos ferreiros que põe a tisna pra fora a todo momento, logo foi repreendido severamente por um dos Kaisar, isso parecia uma grande ofensa para eles.


E assim andaram por várias quedas de ampulheta enquanto as luas Sorda e Chacal se arrastavam por detrás das nuvens esverdeadas daquele céu, avançaram sobre as areias moles e através das rochas e das estradas de pedras disformes, além das quedas de ácido, que jamais pensou que um dia veria, embora tenham vislumbrado somente a grande nuvem verde de vapor que circundava a tudo por lá. As águas ácidas caiam entre duas montanhas não muito grandes e se jogavam na escuridão abissal que cavaram não terra, enquanto o tempo devorava o que estava abaixo.

Foram primeiros sozinhos, depois parando em acampamentos, alguns quase como assentamentos ao longo da jornada, onde deixavam escravos, diminuindo a caravana, assim foram até chegar a noite mais escura e ela se ir, devendo estar próxima de engolir Kroom novamente.

O capataz do Comboio chamava-se Zor, Dedalos era muito atento, descobriu isso, já vinha estudando tudo para conhecer aqueles homens misteriosos. Zor entregava a comida e um pouco de água amarela, tirava a todos da carroça uma vez ao dia para buscar alívio, deixava os pequenos andarem à volta da caravana ao lado dos país, mas também eliminava os doentes e todos aqueles que acabavam por diminuir o ritmo da marcha.

Parecia que não iam a lugar algum, essa era a impressão que Tila tinha, mas no entanto, mover-se no deserto não demandava apenas perspicácia no olhar, era necessário saber andar pelos lugares seguros, e somente os mapas mais secretos é que revelavam esse caminho, e essas eram as relíquias mais importantes para todos os kaisar. Sair de suas terras hostis e ameaçadoras não era tarefa fácil, apenas com a sabedoria atávica de quem cruzou as terras antes deles é que era possível que fizessem essas viagens. 


De onde quer que os Kaisares viessem era para lá que estavam indo, atravessando sorrateiramente as terras mais perigosas, sem que os homens discretos do continente médio de Kroom soubessem como atravessar para seus territórios, algo que parecia uma coisa injusta, já que os invasores alóctones sabiam exatamente como alcançar as terras novas e ali estabelecer moradia.

Parecia que o fato de conseguir se comunicar com Dédalos tornava tudo mais fácil, inclusive para Tila,  que começou a sentir uma afeição pelo rapaz, é claro, era uma afeição de Ferreira dos salões , de quem vem de Vaudeferro, de quem enfrenta a tormenta do ferro líquido e do fogo, sem muito espaço para trivialidades ou delicadezas. Se Tila soubesse o que era paixão, talvez tivesse identificado o que estava sentindo enquanto passavam de noite às cobertas um do outro.

E assim foi até o dia em que alçaram seu destino em um mundo absolutamente desconhecido.



Ferro e alma

Separados. Nos portões daquele quarteirão no meio do nada, de umbrais gigantescos e cobertos de ouro esmorecido, diante da poeira que levantava do chão e da opulência dos muros e das vestes dos senhores ali presentes, cobertos de gemas e perfumes sobre o lombo do seus imensos camelos, homens e mulheres, crianças e velhos, famílias, inimigos, todos foram separados, não importa o quanto resistissem. O novato parecia ter aprendido a fala dos Kaisar, porque falou algo tão insistentemente que o concederam o direito de ficar junto de Tila, e assim, foram conduzidos através dos portões, além das ruas da Cidade Amarela, a capital Kaisar nas terras Intransponíveis.


Dédalos foi levado para outro lugar, desaparecendo no meio das areias, antes mesmo que pudesse sinalizar um adeus.

Telhados e mais telhados cheios de tapeçaria, ricamente florestados, música na rua alegrando o rosto daquelas pessoas de olhos muito finos e bem escuros, assim como suas bocas. A pele clara e os cabelos de todas as cores e volumes possíveis, mas não havia qualquer outra criatura, não havia qualquer outra espécie de vivo de Kroom ali.


A multidão ao final do pavimento se abriu e não foi para que os prisioneiros passassem, foram colocados de joelhos para alguém que se aproximava atrás de um véu. E aquele alguém era um governante, um Senhor Sagrado e proibido aos olhos mortais.


Falou coisas as quais ela não podia ouvir ou compreender e depois disso foram ambos carregados para fora dos muros da cidade, levados pelo deserto, arrastados por outras dimensões de perigos até calhar num conjunto de cisternas subterrâneas, desembocando em túneis desvigiados que os levavam cada vez mais em direção às profundezas.


Até que chegaram a um grande salão, com diversas tinas naturais, goteiras ecoando por todos os espaços, mas um silêncio retumbante assim como aquele de dentro da mente de Tila.

Os soldados se afastaram e Zor tirou o capuz, deixando somente seus olhos tisnados de preto à mostra, abaixando-se diante da Ferreira, retirou suas luvas surradas e ao iluminar fracamente seu indicador com uma luz verde esmeralda, fez ecoar na mente de Tila:

-Chamo-me Zormud, filho de Zarmund, Lugal de Zor. Minha missão aqui é encontrar, replicar e levar comigo a espada que se encontra em alguma dessas tinas nas profundezas. São vários níveis e quanto mais fundo vamos, mais difícil fica retornar, é como se fôssemos engolidos por uma letargia, um feitiço sem resolução.- e prosseguiu em voz alta- A lenda diz que somente o coração de ferro é capaz de encontrar a espada nesses salões. Você é o coração de ferro, não é? É esse o título que recebeu nas profundezas de Sabo…

Tila deu uma cusparada, exatamente como tem que ser e como era de costume. Quando um dos soldados avançou para castigá-la, Zor lhe interrompeu segurando seus corpo com o gesto da mão esquerda.

-ei, ela não fala! É surda! - interpelou o Novato- Ainda não sei ao certo, quer dizer, se ela não fala ou não fala direito. -Zor lhe dirigiu um olhar fulminante, querendo dizer para ficar quieto.


-Agora vá e encontre a espada!

O Novato olhou para todos os lados sem saber exatamente o que estava acontecendo, foi rastejando até o canto de uma das centenas de tinas, a mais próxima, e mirando através daquela água brilhante e prateada viu que dentro do lago havia centenas e centenas de espadas afundadas. “Como vou saber Qual delas é a certa?”, ele se perguntou em silêncio, mas quase que imediatamente ouvir uma voz dentro da sua cabeça e era Zor, “não dei a ordem a você, seu parvo".


Naquele momento os olhos de Tila se iluminaram, primeiro fracamente na forma de uma cintilância esverdeada, depois aquela luminosidade foi ficando mais  intensa até que faixas de luz esmeralda irromperam da sua boca, do seus olhos, dos seus ouvidos, e tomaram todos os espaços da caverna, espalhando uma superfície neon por todo o estertor revelando um ideograma ininteligível para o novato, que ficou olhando abismado toda aquela ocorrência inacreditável.

Zor estava igualmente maravilhado admirando a constelação de pontos verdes, linhas e desenhos milimetricamente posicionados, tomando um tempo até se concentrar. Ajoelhou-se diante de Tila e pronunciando algumas palavras em um idioma desconhecido, deu início a um cântico que levou algum tempo até se encerrar, levando consigo o brilho e as luzes, mergulhando todos na mais densa escuridão.


-O salão dos guerreiros recebe a benção do coração de ferro, os escritos ancestrais nos revelam a localização da espada viva. — O comandante apontou na direção de Tila, levantando-se e olhando para os seus asseclas -está aí, dentro dela!

O novato arregalou os olhos, como pudesse entender o que era dito, mas apesar de não compreender inteiramente as palavras, sabia que algo dramático envolvia aquela mulher que admirava, mas que agora estava desfalecida e vulnerável sobre o chão desse templo imemorial.


Zor tocou-lhe na testa, e ficou com os olhos cerrados por um tempo, até voltar a si, incrédulo!

-Não! Não pode ser! Matem-na! Ela carrega uma semente, está impura!- ordenou aos seus homens, que muito rapidamente se moveram na direção da Ferreira.


Porém ela voltou a si, com um salto, um grito, um rugir de vigor e fúria, seu corpo parecia maior, seus olhos assumiram uma coloração caramelada, com finas pupilas rasgaram o todo, seus cabelos tornaram-se como uma grande juba tisnada, e presas enormes se projetavam da sua boca, uma fera, uma criatura aterradora. Os soldados deram passos de alerta para longe dela, enquanto sua mão direita, a do martelo, se moveu na direção de uma bainha inexistente nas costas, mas quando seu punho se fechou, uma Luz verde intensa tomou a forma de um punho, sobre o qual seus dedos se agarraram, foi tirando, como entre a pele e o dorso, de dentro da coluna, em meio a suor, dor e gemidos, uma longa espada espectral, de um verde fantasmagórico, que chorava um fogo líquido e verde intenso como jamais se vira.


Ela rugiu novamente, fazendo o estertor da caverna tremer, deitando areia e pequenas pedras em todos os lugares. O novato tapou os ouvidos, ficou ali, encolhido de medo, sem saber exatamente como se mover.


Zor levantou as mãos e empostando um sigilo no ar, criou uma redoma cristalina sobre si, enquanto o movimento da espada voltejada nas alturas lançou longas linhas ácidas sobre os soldados, derretendo-lhes as carnes instantaneamente.


Ameaçado, o general bateu em retirada, como um raio veloz de escuridão, sumiu sem poder ser visto, enquanto Tila caiu desfalecida uma vez mais.


O Novato a tomou nos braços:

-ei, mestra, vamos sair daqui. Vamos atrás de Dédalos, vamos sumir.


Mas ela não parecia que iria acordar em breve, não até que uma Luz voltar farfalhar na escuridão, mas dessa vez era dourada como a aurora, como o dia rebatendo contra o vermelho infinito:

-os viajantes acordam-me uma vez mais. Revele-se, o portador da espada viva!

O novato arregalou os olhos sem saber como podia se comunicar com a criatura sem que movesse os lábios. Mas apontou, tremendo e vacilante na direção da Ferreira.


Então um gigante espelho d’água se formou à frente, brilhando como os céus e e ouro e a prata:

-Esse é o caminho dos Deuses, a direção de Portalos, da vida que ela carrega, e é lá onde o sagrado deve entrar no mundo. Vá e leve a Leoa, ela está viva uma vez mais, deve retornar ao mundo onde é seu lugar.


Então, com ajuda da guardiã, os dois atravessaram os estertores da existência para retornar mais uma vez a Kroom, onde as sombras se dobram.




9 de junho de 2021

Síncope

 Bagagem



    Voltar para casa é qualquer coisa como chegar ao lugar onde você é o que é. Não há tempo que apague a lembrança quando se está perdido, quando se está doente. Aliás, quando se está perdido a lembrança é como um farol na escuridão, indicando um porto seguro, terra firme. Quando não há o que lembrar nos foge o farol, nos foge a segurança, não há como retroceder. Cada lembrança nos aproxima de casa, e neste sentido “casa” também é uma metáfora para “si mesmo”, aquilo que somos em essência, e que conserva o individual. Aquilo que somos e que devemos resgatar periodicamente para que não mudemos ou nos percamos de nós mesmos. Assim, ao lembrar de um cheiro, lembramos de algo como o lar, o cabelo da mãe, o perfume da namorada, a pele do filho. Mas e quando não lembramos de nada? Resta apenas um cheiro, mas sem sentido.

    Marco arrumava a mala, com um pouco de receio, um pouco de medo dos objetos que ali colocava e suas histórias desconhecidas: uma manta ocre surrada, com um furo. Ele encaixou seu dedo no buraco, balançando pra lá e pra cá. Mas não fazia idéia de como viria a furar o cachecol, nem ao menos de onde viera.

    Assustador.

    Colocou um par de meias ainda embaladas que comprara em uma liquidação, a etiqueta estava pendurada, com uma remarcação por cima da outra. Colocou na mala algumas roupas que ele desconhecia. Pôs a mão no bolso e encontrou um cartão e uma chave: “Hotel Colina do Vento, quarto 10”. Ele não lembrava exatamente nada.


    Como pode um homem caminhar sem que as coisas pelo caminho lhe inundem a mente com lembranças? A todo momento quando caminhamos nosso cérebro não pára de registrar imagens, lugares, rostos, pessoas, sensações, cheiros, movimentos. Como pode um homem caminhar e não lembrar onde foi seu último passo? Como pode um homem, viver, sem saber onde foi seu último passo?

   

    Alguém que não sabe estas coisas não sabe nada. Não sabe se está vivo ou se está morto. Vive de um futuro já despedaçado, um passado que borra como aquarela no álcool e desaparece.


Marco

    Marco tocava a chave no bolso mas não lembrava que aquela era a única coisa certa: um baú onde suas lembranças estavam guardadas, que deveria ser aberto, em tempo, para que talvez ele soubesse e não esquecesse, seu próximo passo.

   

    Antes de colocar a bolsa nas costas Marco ainda atendeu o telefonema de um médico que lhe recomendou ficar em casa, primeiro disse que era alguém, depois chamou a si mesmo de Doutor. Nada fazia sentido. Este era o médico que tentava fazer com que desistisse de sair, o médico que ligou e um telefone tocou e Marco atendeu. Mas logo desligou o telefone e abriu novamente a sacola, colocou mais alguns objetos, olhou para dentro dela por um tempo. Colocou mais algumas coisas. Pôs a mão no bolso e tomou a chave novamente “É para lá que tenho de ir”, sentiu. Ele sabia, outra vez.


    Ao passar pela porta pensou ver outro homem se mover tal qual ele próprio, e se não fosse a moldura até acharia realmente que era outro homem, pois não reconhecia aquele estranho no espelho, aquele cabelo grisalho, como qualquer outro, aquele olho castanho de fitas perdidas. Tocou o rosto e viu o reflexo fazer o mesmo: a pele morena, o maxilar pronunciado, mas achava que o homem estava magro. Muito magro. Meio encurvado, as sobrancelhas também grisalhas, uma cicatriz muito grande percorria sua testa. Ele a tocou, protuberante e avermelhada, talvez antiga.


    Marco morava dentro daquele homem desconhecido, que perambulava por todos os lugares com bastante dinheiro no bolso, um cartão e uma chave, de barba mal feita, cabelos sem corte e olhar disparado, imediatamente triste, imediatamente nada. Não queria olhar para si e se foi. Tinha vergonha de ver alguém que não conhecia, ou não queria conhecer, tinha vergonha do olhar desconhecido daquele alguém do espelho.


    Destrancou a porta e saiu.



    Trem

    O barulho do trem incomodava, mas não mais que o olhar das pessoas que embarcam nas estações. São olhares desconfiados, que temem aos outros e que fogem aos olhares alheios correndo inibidos para os cantos dos vagões. Os olhares fogem para as janelas onde não se pode vislumbrar nada além de borrões. Os olhares fogem para os bancos rabiscados e para o chão inerte. Para as portas fechadas, que se abrem apenas para alguns olhares saírem e outros olhares entrarem. Nos olhos é proíbido olhar. Dói. Fere. Arranca qualquer coisa de alguém sem lhe pedir permissão, olhar é falta de bom senso. Olhar outra pessoa nos olhos é falta de discernimento e continuar olhando para ela é falta de educação. Olhe no máximo o tempo permitido para saber posicionar-se antipodamente a ela e evitar que se esbarrem. Saiba que ela também vai fazer o mesmo. Ambos evitarão um encontrão. O olhar quer dizer muito sobre o pudor, mas se alguém olha para um homem com má aparência é um olhar de qualquer coisa julgadora, um olhar sem pudor. É um olhar de execramento.


    O barulho do trem incomodava tanto quanto os olhares lhe execrando. Mas felizmente ele sabia que ao descer do trem esqueceria todos aqueles olhares, todo aquele trem.


    A plataforma estava fria, soprando um vento sem força e pesadamente ausente de algo, deixando-o frio. Talvez o vento não devesse ser cheio de coisas naquele momento em que tudo tinha terminado. Não havia ninguém na plataforma a quem pudesse soprar morno e acalentar. O vento tornara-se frio na dimensão vazia da plataforma. Nos ares ocultos d'outras paradas onde habitava uma impressão humana o vento soprava bom, ali não. E se Marco pudesse ter entendido, escutado ou até mesmo compreendido aquele alguém lhe chamando no fim da plataforma ele teria voltado. Mas ele correu cabisbaixo para fora da bilheteria e tomou as escadas. Como se estivesse atrasado.