27 de junho de 2021

As sete atalaias

 




As sete atalaias

O velho coçava a cabeça sem saber onde largara a ferramenta. No meio daquela oficina, naquele dia, não poderia encontrá-la com facilidade. Todas as encomendas, todos os projetos em que vinha trabalhando estavam ali. Alguns espalhados, outros por começar. Outros mais adiantados. E outros que nunca terminaria.

O seu mira-cosmos. O maquinador de tarefas. O ousado morcego-barco. Estava tudo ali, mas não havia nada ao mesmo tempo. Isso porque parecia uma grande e única bagunça, na qual somente o velho Mestre Agenor conseguia se guiar. Uma bagunça organizada, dizia ele.

Mas ele estava nervoso, com a tarefa que recebera. Bons amigos, pensava. Mas quais bons amigos planejariam metê-lo numa confusão tamanha?

-Sete atalaias! - murmurava ele sem parar.- Sete atalaias. Uma para as profundezas do mundo. Outra para as ilhas distantes. Uma atalaia para o deserto intransponível e uma atalaia para os ares. Uma atalaia para o fogo e uma última atalaia, para a vigília final, quando todas as outras falharem no seu dever.

Um louco pediria isso. Seus inimigos. Sua velha esposa ranzinza. Seus amigos não. Era um trabalho de uma vida e a sua, vinha sentindo, estava mais para perto do fim. Setecentos signos bem vividos, afinal. Quatrocentos e vinte filhos (na última contagem), nove esposas e milhares, e centenas de incontáveis invenções maravilhosas. Mas era sempre a mesma conversa, a guerra, o rei mau, a pobre rainha, o rei honesto. E ele já estava comprometido com uma ideia mirabolante, sem nem mesmo ter dito sim. Nesse mundo de hoje abusa-se dos velhos, pensava.

Estava magro, muito magro. As pernas tortas, muito tortas, e a cada signo mais baixo. Ou seria sua bancada trabalhando a madeira?

Então um estalo. E batidas ritmadas vieram aos seus ouvidos. Os pelos saltavam das orelhas, fartos e grisalhos. O barulho! Certamente vinha do acelerador de pensamentos. Estava baqueando novamente. Encostou a cabeça ao lado do aparelho, mas definitivamente o som não vinha dali. Não, não, pensou. Seria o ferreiro autômato? Onde ele estaria… Ah, só pode ser o coça-pansas! E as batidas continuavam. Girou a manivela do aparelho e deu uma bela coçada nas costas. Era muito relaxante! Mas não era ali o barulho, definitivamente.

Foi quando a Senhora Arlinda gritou lá do fundo da oficina: “Atende a porta, Agenor!”

Eram visitas, afinal. Sim, um velho amigo.

Saltou de um banco e foi balançando, de um lado para outro, para atender a porta. E o fez ele mesmo, a despeito das cinquenta invenções que havia construído, somente para atender a porta. Fê-lo pessoalmente, afinal aos amigos, recebemos nós mesmos, com o prazer do reencontro.

Abriu a porta e abraçou com muita alegria o seu mentor, o velho Decano, Mestre Egídio.

-Entre, entre, temos muito o quê conversar. Afinal, alguma coisa acontece em duzentos signos, não é mesmo? Este é o tempo que não nos vemos. Anotei isso no meu memorador, pois coisas muito antigas já não consigo lembrar com tanta facilidade. Mas recebi seu recado, Mestre e amigo. Os planos andam bem. Mas entre, vou preparar uma xícara de chá.

Mestre Egídio foi passando pela estreita clareira que se abria entre os milhares de objetos e peças, sucatas e quinquilharias. Para ele era sempre mágico estar ali, visitando aquele que fora seu aprendiz há 500 signos.



Um chá entre amigos

O chá estava tão quente, que a boca da xícara fumegava como uma cratera de vulcão. Mestre Agenor tentou pegá-la, mas queimou a ponta dos dedos. Ficou soprando com um bico pronunciado. Tentou beber um tantinho pela beirola e queimou os lábios: “Au!”, esfregou a mão na boca, tentando fazer passar a dor.

Puxou um braço articulado da parede, com um leque de plumas esvoaçantes na ponta. O direcionou para dentro da xícara e ficou girando uma manivela. A manivela impulsionava uma engrenagem na ponta do braço articulado, essa, através de um cabo, movia o leque para trás e para frente. Em breve estará na temperatura ideal, dizia Agenor, sem perceber que as plumas chapinhavam na superfície do chá.

-Como eu dizia, -retomou o Decano, Mestre Egídio-, ele era um homem de seu tempo, esse Seth. Um tanto esnobe desde de o início. Mas certamente que tinha as qualidades necessárias para ser reconhecido por aqueles que lhe eram contemporâneos, reconhecido como um líder. E fora de fato. Mas o que me intriga, sempre me intrigou, é que mesmo lhe sendo o tempo vivo tão curto, se dedicou à batalhas intermináveis. E morreu de forma trágica, como se fosse ontem. A humanidade faz isso o tempo todo: começam a guerra e então a terminam. Ficam todos com a alma quebrada. Mas se esquecem tão facilmente de tudo que em seguida, recomeçam a batalhar. Sempre falei para o Senhor, e todos os demais artífices, que deveríamos nos unir no ímpeto de construir um dispositivo. Um que fosse capaz de lembrar aos homens exatamente tudo o que ocorreu no passado. Giovani pensa o mesmo,mas livros não bastam, não os lêem. A finalidade é de que não fiquem insistindo nos mesmos erros. Eu me sento aqui, como em minha oficina e no escritório, e fico refletindo sobre quantas vezes eu já vi esse ciclo se repetir. E sei que até o final de meus dias, ainda verei muitas guerras, enquanto nos tornamos meros espectadores de toda essa perda de tempo.

Mestre Egídio voltou-se para Agenor, mas ele parecia não ter ouvido o que dissera, estava rindo com as cócegas que as plumas faziam no seu rosto, com o vai e vem do abanador.

Então ele ficou desconcertado:

-Quer experimentar?, - indagou, fugindo das pelúcias.

O Decano sorriu, e lembrou de achar esse comportamento de Agenor sempre tão elevado, mesmo quando as ocasiões traziam o interesse dos assuntos sérios e sombrios.

Mestre Agenor finalmente tomou o chá. Mas ficou cuspindo os muitos fiapos que sorveu. E viu, eram muitos dançando na xícara. Ele ficou insatisfeito com a eficiência do aparelho.

- Não importa…- abandonou aquilo resignado.

Nunca tive dúvidas de que ele seria o vivo perfeito para a tarefa”, pensou o Decano observando a adequada ignorância do antigo aprendiz.

-Bom, vejamos. -Disse Agenor, descendo o óculos e abrindo o esboço gigantesco de uma invenção. Desenhado à tinta em papel fino e semi fosco. Veja:

-“Atalaia do Pescoço Longo”.

O desenho era rico em detalhes, e a concepção verossímil e arrebatadora.

Uma longa estrutura vertical, elevando-se acima das nuvens. Encravada nas montanhas dos Ermos do Norte, uma maravilha da engenharia de alta precisão. Não empena, não quebra e não é facilmente abatida pela intempérie. Garantia de dois mil signos na magia de preservação. Paredes, piso e teto, portas, caibros e dutos, tudo do mais puro cristal de velum da Fundição Caldeiraquente F/P (filhos e primos). Veja, é para ser Cristalina. Portanto, tão invisível quanto os ventos. Portas de travamento mágico, toda automatizada com cabos e arranjos. Possui autonomia energética de seis mil signos, alimentada pelo grão de Uranina 30 ton. Uma cortesia, é claro, da Guilda de Cientistas de Vaudesílica.

Mestre Egídio ficou maravilhado, com aquilo. Todos os detalhes e tanta excelência.

-Está em fase final de acabamento, meu caro amigo. As outras seis estão a caminho. Umas mais adiantadas que outras. E se for do seu interesse conferir tudo, nós podemos visitar os canteiros de obras onde centenas de ananicos trabalham incansavelmente dia e noite, com verbas e adicionais de insalubridade devidamente pagos.

Então, ainda mergulhado em toda aquela expressão máxima da engenharia de artifícios, Mestre Egídio, se viu sem palavras. Logo ele. E só conseguiu dizer: 

-Sim, meu amigo, com certeza eu gostaria. E sorveu o seu chá, que já estava na temperatura perfeita.


Continua no conto “o sentinela da primeira Atalaia” 

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