31 de julho de 2021

Fortaleza Invicta - Imperador de Jade 2

 

CONTINUAÇÃO DO CONTO “IMPERADOR DE JADE”



Parte 2
FORTALEZA INVICTA 


Um presente para o rei

Estava calor. O Rei nu sobre a bancada de mármore, aguardava que o Alto Sacerdote tratasse o seu ferimento. Sentiu uma pressão fria, e depois um fogo consumir a ferida, mas não era quente. Suportar aquela dor o fazia sentir poderoso. Sentir os nervos retesando e depois, com o coração batendo forte, subia uma agonia em forma de frêmito, que ele abafava. E depois de novo e de novo. Abrindo e fechando a boca enquanto revirava os olhos. Abrindo e fechando o punho. Ele se sentia capaz de aguentar qualquer coisa.

-O que há com a Rainha de Harpis que não envelhece? -Perguntou o Rei apertando os lábios e os olhos. Essa dúvida era daqueles ensinamentos antigos os quais ignorara na infância.

-Bom, - disse, o Alto Sacerdote, enquanto limpava as bordas do ferimento - Podem ser muitas coisas. E talvez eu desconheça a razão. - E riu de soslaio.

-É um truque? - Continuou Tantalus.m desconfiado.

-Ela não é uma ilusionista de taverna, Nosso Senhor! É uma Sacerdotisa tal como eu. Os Sacerdotes são canalizadores do poder de D'us e das forças da natureza. Somente a Primeira Consciência, ou D'us, como preferir, pode prover a cura, o controle das circunstâncias e das forças naturais. O povo da Rainha Susana é sabedor desse Mistério que cerca a sua condição - retorquiu Edir, enquanto a memória antiga do pingente pulsante, brilhando pela primeira vez sobre o colo ensanguentado da Sacerdotisa lhe voltou à mente.

-Você pode fazê-lo? - Perguntou, sentindo um espasmo revigorante, mas sabendo ser o seu limite.

Gramateus ficou em silêncio por um longo tempo, sem que se soubesse ao certo se pensava no que dizer ou se pretendia deixar a pergunta do Rei sem uma resposta.

-Talvez.- disse o Sacerdote, depois de algum tempo, ainda sorrindo.

-Então faça! - levantou Tantalus, numa explosão, arremessando a vasilha do Sacerdote com um soco.

O sorriso de Edir secou de imediato enquanto recuava, evitando ser atingido pelo acesso de raiva do Rei.

-Quase fui morto por conspiradores! Se és um Sacerdote então faça. Nós somente somos algo quando fazemos o que de nós é esperado! Se não o fazemos somos nada. Sacerdote de nada, curador de nada. Ou Vossa Santidade é um ilusionista, afinal?- disse e ficou em silêncio em seguida. Depois bateu na bancada, e soltou um bramido meio preso, contínuo e grave, que fez os veios da face e do pescoço saltarem verdes. Depois debruçou-se sobre a mesa, com o rosto entre os braços, coberto pelos finos e leves cabelos loiros. Em seguida soltou outro urro, e ficou esmurrando a pedra. Com todos os sentimentos no topo e aquele estampido nos ouvidos.

O Sacerdote conhecia os acessos de raiva de Vossa Majestade, que os tinha desde muito pequeno e via-se que sofria lutando contra aquilo. Era comum que o pai o trancasse por longos períodos em um quarto, cujos objetos ele destruía. Ficava lá por dias. Batia nas coisas, esmurrava paredes, chutava mesas e cadeiras, mordia e feria a si mesmo. Os ataques iniciaram-se após a morte da mãe. Mas pareciam mais intensos agora, depois que retornara dos Salões de Jade.

E vinham piorando.

Ninguém tinha coragem de interrompê-lo para abrandar as crises, para ajudá-lo a sufocar o ímpeto. O deixavam, simplesmente e saíam de seu caminho.

Sua pele clara ficava muito vermelha, rapidamente seus olhos verdes vibrantes pareciam afundar dentro das órbitas escurecidas.

Desde a coroação tivera dois ataques intensos, um no gabinete real, onde destruiu todos os pertences, passando a despachar no aposento pessoal. O segundo presenciado por uma criada, que teve a carótida esmagada com as mãos. Edir o encantou para que voltasse a si, como fazia nos campos de batalha na sua juventude, retirando a força e o vigor de seus inimigos. Mas o encanto, depois disso, nunca mais surtiu efeito.

Uma onda recorrente de preocupação vinha o atormentando. Uma suspeita profunda que ele ignorava, de que talvez os delírios do auge da loucura de sua mãe pudessem ter um fundo de verdade.

Edir juntou seus pertences do chão para ir-se, ali persistia uma animosidade tangível entre ambos, o fazia enquanto se recordava da carta que lera secretamente há muito tempo, Dágoras a deixara para queimar, mas o fogo estirpara-se precocemente. A carta escrita por Fineas e recebida pelo Rei no dia do retorno do filho, meses antes de sua morte e que trazia notícias surpreendentes e reveladoras sobre o herdeiro.

-Vou tomar Saigão! Vou tomar e colocar o Vau na minha mão!- Edir escutava o Rei esbravejar enquanto esmurrava as paredes, nem o que não era dito escapava ao pensamento auspícioso do Sacerdote.


Voltando para casa

Fineas digeria no caminho de volta para casa aquela derrota amarga. A segunda perante o conselho.

Primeiro foi a deliberação pela corrente majoritária em matéria de propriedade, que deu Origem à Lei de Propriedades. Sim, sua primeira grande derrota. Agora a revogação do Tratado da Última Cidade Mais ou Menos ao Norte para Ações de Paz. Uma moção com a assinatura de seis Senhores dos Povos, dois Reis, da Liga de Mercadores de Saigão, Três Torres de Alta Magia (Malditos Magos!, pensou), cujo único fundamento era uma crescente ameaça aos povos. Que diversos reinos estavam sendo atacados, e precisavam de autorização do conselho para contra-atacar. Mas a única coisa de concreta que tinham, eram as pilhagens em Evreskaya. Por essa razão, colocaram o velho Edron para falar, em meio ao pânico semeado entre os presentes.

Logo Edron, cuja esposa teve a família destroçada pelas mãos da guerra.

Então Edron falou confiante que vivia em constante guerra, sofrendo com ataques habituais de rebeldes vindos de Evreskaya. Que a peste os afugentava do seu território. E que lá ainda era forte o ressentimento pelo fim do Império Kaisar, terra de origem da Rainha de Kaisar, antiga princesa de Evreskaya. Sempre fora. Mas Evreskaya caíra em desgraça, “para nossa sorte”, nas palavras de Edron, repudiadas por Fineas. E disse que Kaisar lhe batia às portas sempre que chegavam caravanas de mendigos, ladrões, quadrilhas e quadrilhas de Egirões. E que há muito ele pedia ajuda para a antiga Aliança, porém ninguém lhes mandava soldados ou suporte de qualquer natureza. Mas que Ágoras vinha alcançando reforço militar, para ajudar-lhe, contudo não poderiam eliminar os focos de rebeldes tendo em vista o Tratado de Paz.

Pior foi quando Varr Reykjavik Bar, se pronunciou. Ele mesmo, que teve o pai, Varr Jötun Bar, friamente assassinado por Tantalus Ágoras nos Jardins de Pedra. Disse que a Ilha vinha sendo atacada, e seus negócios iam de mal à pior. Que os ataques eram desconhecidos.

Então muitos dos Senhores que não haviam assinado a moção, começaram a relatar pequenos ataques isolados em seus territórios, com razão aparentemente desconhecida, mas que apresentavam uma coisa em comum: Bandeiras Sombrias de Ankset.

Uma bandeira que não era vista há muito. Ankset fora destruída pelo próprio Kaisar, que passou a reinar sobre os escombros. Sua bandeira, totalmente tenebrosa, Tenebrae, a chamavam, sombrio em em Bo, representado a noite que precede o Havdalá.

Tal afirmação provocou uma convulsão geral. “Guerra está chegando, novamente”, muitos afirmavam desconsolados.

Não havia provas, apenas evidências que precisariam de investigação. pensava Fineas. Mas muitos pediram pela revogação imediata do Tratado de Paz, querendo com isso iniciarem medidas urgentes de proteção.

Fineas observava incrédulo tudo o que estava acontecendo. A maior vitória para os povos jamais vista, que era a lei de paz, fora vergastada por “rumores”, “homens possivelmente pertencentes a um império morto”, “sussurros de ataques isolados”, todos argumentos muito frágeis. Fineas levantou-se, ao que todos pararam de imediato para escutá-lo. E fez essas observações. Afirmou que com a medida, iniciariam-se uma série de atos de guerra, e que tais atos fomentariam o uso das mesmas (e antigas) estratégias militares para defender interesses escusos de cada povo e seu governante. Usariam seus recursos militares para prática de comércio, saques deixariam de ser alvo de controle (e de sofrerem as devidas punições a que eram submetidos atualmente), as coercitivas regras atuais às intolerâncias sofridas pelos povos dos continentes seriam relativizadas, o tão eficaz e ainda jovem, sistema de repatriação de espólios ilegítimos de guerra (que vinham devolvendo aos seus povos de origem, objetos de valor inestimável às culturas assaltadas pelos Kaisar) cairia por terra e a destruição, principalmente da ação recém iniciada para redução das desigualdades e realocação dos usos das riquezas naturais comuns encontraria seu fim.

Fineas falou brilhantemente contra a aprovação da moção. Mas havia um veneno disseminado, que ardia no coração dos presentes, o próprio medo da guerra e a necessidade de defender-se dela:

-Lembrem-se,- falou exaltado, salivando, com o dedo em riste- todos os sentimentos elevados que estão sob a tutela desta Lei serão aniquilados, por um fantasma da guerra que vocês mesmos não conseguem exorcizar de seus corações. E cuja sombra, que os Senhores mesmos alimentam o crescimento, arrastará suas asas de forma devastadora sobre todas as conquistas até aqui alcançadas. E então todos os seus temores terão se tornado uma realidade, construída unicamente por si mesmos.

Mas a longa e tortuosa votação teve início e quebrou o coração de Fineas. Uma maioria esmagadora seguiu a moção. “Sim, pelo povo de Vaudeferro e pelos sonhos de aço”, falou Edmundo. “Pelos tão sofridos Kolbis em suas tocas nos pântanos, Sim.”, falou a Matriarca Kolbi. “Pela glória intocada das Montanhas de Gelo, Sim.”, disse o Senhor de Picoalvo do Leste. “Pela opulência dos antigos princípios. Sim.”, disse Zor, Senhor dos Abismos de Zarmund, um dos maiores escravagistas do continente e constantemente censurado pelo conselho por não combater com eficácia as ainda presentes práticas de escravidão e comércio de vivos em seu domínio.

E cada “sim”, enterrava mais aquela faca afiada na paz dos povos. Até que ao final da reunião, rastejando pelo salão, ela teve a cabeça esmagada por Tantalus Ágoras, que se dispôs a enviar tropas para os territórios que necessitassem de ajuda. O Senhor de Solar das Laranjeiras foi primeiro a requisitá-las.

Aquilo foi o fato que mais partiu o coração de Fineas, e foi irremediável. O filho do seu amigo e pacificador, Tantalus Dágoras do Sol, estava conspirando para a guerra com os mesmos homens que se submeteram à vontade de seu pai,que unificou o continente sob uma só bandeira: a de defender a Liberdade dos Povos e instituir um sistema de proteção à paz como jamais ninguém fizera.

E Ágoras acabara ardilosamente e irreversivelmente com tudo.

Fineas bateu na janela da cabina, como tivesse uma revolução de ideias em sua mente. Fazia sinal chamando a atenção do condutor.

“Está tudo perdido”, foi com pesar que essa ideia caiu como uma realidade em Fineas, ainda mais quando lembrou de avistar tropas de Tantalus espalhadas ao longo das margens do Rio do Ausar “algo maior está acontecendo”, pensou rápido. Deveria encontrar Joyce o mais rápido possível e contar-lhe tudo o que sabia. Deveria prosseguir com suas andanças e cumprir o que prometera ao amigo falecido, encontrar a resposta que faltava à certeza de tudo. Dissera à Susana que esperasse o seu sinal para então agir contra Ágoras, ele deveria encontrar aquela resposta, cuja busca fora adiada pelos compromissos no Alto Conselho.

O caminho se desenhara em sua mente. Primeiro a biblioteca da Torre de Marfim, deveria procurar nos livros algo que comprovasse a sua presunção, já que tinha indícios suficientes para algo maior que uma mera suspeita. Depois da Torre, quem sabe, a Fortaleza.

O coche parou. O Alto Sacerdote, Sumidade Ocidental, desceu no barro e arremessou a toga sobre os ombros. Se dirigiu ao General na comitiva, que estava em sua montaria: 

-Me dê três homens e seu cavalo, sigam com a comitiva para o templo. Tenho assuntos para resolver em Mataguda.

Assim que montou, bateu os calcanhares no lombo do animal. Dispararam  com pressa, embrenhando-se entre as rochas de Penhascoforte, porque ele corria em direção a um conselho fiel. Ao conforto do abraço de uma grande amiga.


A antonímia de Vaudeferro

Miguel estava cabisbaixo, olhando repetidas vezes a carta de Edmundo, Senhor de Vaudeferro. Levou sua companhia, que ficara do outro lado do Rio, e foi sozinho bater às portas do governante.

Uma simples correspondência requerendo informações acerca do aumento sobre o preço do ferro, do cobre e das matrizes de armas.

Quando os portões foram abertos, para que entrasse o estandarte da Fortaleza, Miguel foi conduzido de imediato por inúmeros soldados. Como se estivesse sobre custódia. O clima não condizia com a política de cooperação estabelecida para a revogação do tratado de paz, e quando interpelou pela conduta em sua recepção, o diplomata e general recebeu em resposta, que diante dos diversos relatos de ataques de Egirões, esse era o procedimento geral de recebimento dos estrangeiros no momento.

Tomando por bem evitar atritos, Miguel quedou-se silente.

Sua resignação foi provocada somente quando, ao ser recebido pessoalmente pelo Senhor de Vaudeferro, e obrigado a ler em voz própria a interpelação oficial, foi dito que retornasse dando notícias “Ao seu Mestre, Rei de pouco” (como Edmundo mesmo disse, nessas palavras), de que o preço era esse. E que  caso persistisse a indignação, Ágoras viesse reclamar por si mesmo, sem mandar homem sozinho entregar seus recados.

Miguel ficou assustado, disse a Edmundo que a resposta não era adequada, e que por uma questão de diplomacia, não poderia entregá-la em voz ao seu Rei.

Edmundo chamou o escriba e ordenou que suas palavras fossem desenhadas. Levantou do trono e baixou as calças, pedindo que o escriba passasse a cena para o papel. Depois, enrolou o pergaminho e entregou para Miguel, mandando-o de volta para casa “obedecer seu Rei valentão”.

E lá estava Miguel, olhando a cena do documento que fora ordenado se chamasse “Antonímia de Edmundo, o Varãodeferro”.

Sua decisão, porque conhecia muito bem o seu Rei e amigo, foi ficar por ali e ver um lugar adequado para instalar as tropas, perto da margem do rio, enquanto um homem da sua companhia viajava até a Fortaleza, para entregar em mãos, o recado de Edmundo de Vaudeferro.

No entanto, o fato de ter permanecido ali, orquestrou um acontecimento inesperado.

A companhia militar comandada por Miguel ficara instalada do lado oriental do Rio Mãe. E após o General partir de Vaudeferro, não abandonou a localidade. Edmundo mandou três batedores até as margens, para que averiguassem a movimentação de homens de Ágoras no local.

Miguel, percebendo a movimentação, escondeu-se entre às árvores, na margem ocidental, enquanto aguardava a balsa. Inicialmente pensou em não atacá-los. Porém, pensando na investida de Tantalus contra Vaudeferro, concluiu que seria melhor interceptar os homens, para que informações sobre as tropas e sua localização não chegassem ao Senhor das terras. Assim, acabou assaltando aos batedores de Edmundo.

Eram três homens e um cão. Miguel cruzou espadas com os homens, brevemente, os derrubando com a morte. O que lhe deu trabalho mesmo, foi o cachorro. Correu atrás dele montado no cavalo de um dos batedores por uma longa distância, conseguindo encontrá-lo na altura do Rio próximo a Inkaar. Porém, ao alcançá-lo o animal estava muito cansado e acuado. Ofereceu-lhe um pedaço de carne seca, o que conquistou a confiança do cão. E quando retornou para a margem da balsa o bicho foi o acompanhando.

Vendo aquilo, pensou que seria oportuno devolver a piada. Cortou a genitália de um dos batedores, o de cabelos loiros, e a atou ao pescoço do cão. Amarrou o cachorro a uma corda no  freio do cavalo e tocou ambos na direção do vilarejo.

O que Miguel não sabia era que os batedores eram o filho menor, o irmão e o sobrinho de Edmundo.


A Batalha de Vaudeferro

Talvez um ou dois homens observadores tenham notado a máscara de Tantalus se mover com o sorriso irônico que deu ao ler o “recado” enviado por Edmundo. Mas todos os Generais e Tenentes que estavam sentados à mesa no salão principal, discutindo estratégias de organização militar, sabiam qual seria a reação de seu Rei diante da resposta infame que recebera e que passara de mão em mão. Risos se espalharam pelo salão.

Depois do burburinho, Tantalus bateu na mesa, pedindo silêncio. As taças e os pratos de ferro estremeceram sobre a madeira: 

-Senhores, acho que devemos ensiná-lo uma boa educação. Estão de acordo?.

Os homens passaram a bater na mesa, juntos, levantaram  suas armas concordando com o Rei.

O perdigueiro ficou frenético. Seu Rei os convocava. “Guerra! Guerra!”- pensava, com um sorriso no rosto, o coração batendo na garganta. Um ritmo de frenesi e absoluta ignorância do que vinha a seguir. Mas ele via a convicção do seu Rei, iria seguir aquele homem, onde quer que fosse. “Tan-ta-lus! Tan-ta-lus! Tan-ta-lus!’, começou. Em seguida todos o acompanharam, vibrando o nome do Rei e batendo no peito.



Os Tordos de Pedra

Era manhã alta e os homens desciam madeira no rio desde o fim da tarde anterior, abrindo uma clareira para as lonas amarelas e os mastros do acampamento de Ágoras, o aninhamento das patrulhas nas margens lamacentas para trincheiras e valas de espetos. Era para aquilo que estavam preparados, guerra.

Miguel coordenava a atividade dos seus setenta homens, a companhia dos Tordos de Pedra, Primeiro Regimento do Comando Real, combate especializado corpo a corpo. Ele mesmo os selecionava pessoalmente, pensava que um bom soldado de combate de proximidade deveria ter como característica, além do domínio das técnicas de combate, como a luta, espada e escudo, um pensamento rápido capaz de tomar decisões ousadas de forma sagaz. Sempre dizia aos seus homens: “Ao cruzar espadas, vence aquele que evita o prolongamento da luta de maneira eficaz. Matando, imobilizando ou falando”.

Deixara um homem no lado ocidental, pronto para atravessar um aviso pelo cordame estendido sobre o rio. Cada fita azul, indicava aproximação de um homem. Uma fita vermelha para cada dez. No lado oriental estava Marco, outro batedor e seu cavalo, atentos a qualquer sinal.

Miguel orientava um soldado para cortar as árvores mais adentro na mata, juntamente com alguns de seus homens que compartilhavam a execução das tarefas distribuídas, quando Marco, o batedor no rio, irrompeu veloz com seu cavalo, arrancando grama e areia da terra fofa e úmida. O animal relinchou e se ergueu com a parada brusca do soldado. Em suas mãos havia trinta longas fitas vermelhas pingando água.

O General entrou na barraca e soou o corno de guerra. Em pouco tempo seus homens começaram a correr pelo acampamento, indo aos seus lugares e arrumando-se para batalhar. A armadura lamelar entrou no corpo, um capacete de metal que emoldurava o rosto, projetando o centro sobre o nariz. Uma mão segurava o escudo de bronze, ornado com o sol dourado da Fortaleza. Tão polido que refletia a luz do dia de forma pungente nos olhos dos oponentes. Uma lança, chamada Banidora, toda de metal, com a ponteira em forma de uma pena canular e bordas afiadíssimas, ela ia nas mãos das duas primeiras fileiras de dez homens.

As duas próximas fileiras eram compostas de  soldados com suas espadas de aço, cuja lâmina fora dobrada duas mil vezes sobre o calor da forja de Sabo.

Atrás vinham as clavas de corrente. E Por último as dez longas e pesadas espadas de duas mãos, comandadas de perto pelo General.

Estava com seu elmo debaixo do braço, à frente do Regimento. “A guerra veio até nós hoje. Mas nós ansiamos por ela, todo dia. Somos duros e nosso voo é certeiro. Somos Tordos de Pedra, somos homens preparados para morrer. Guerra e glória!”, “ Guerra e glória!” respondeu o regimento em coro, com o lema da companhia.

Miguel assobiou com os dedos entre os lábios e os homens já sabiam que era hora da batalha. Então começaram a marchar até a margem do rio. Onde uma rede havia sido jogada para segurar as toras de madeira cortadas e arremessadas na água. Então correram sobre os paus flutuantes cada fileira de uma vez. E quando foram vistos chegando na margem um homem de Vaudeferro saiu disparando no cavalo em direção a colina. Quando desapareceu no baixio, uma corneta soou entre o matagal que cercava a clareira do passo da balsa, no Veio de Ouro, o Rio Mãe.

Assim que as duas primeiras fileiras de Tordos chegaram na margem oriental, uma saraivada de flechas veio do alto, da direção da mata baixa que seguia em direção à colina.

Os homens levantaram seus escudos, formando uma grande bola dourada, que refletia o sol a pino. Impossível de se olhar por muito tempo. Quando as duas fileiras seguintes atravessaram, escutaram os piados e assovios de dois Tordos no sentido da mata, e correram cada fileira para um lado.

Os homens no matagal, não conseguiam mirar suas flechas e nem olhar na direção da claridade ofuscante. Quando as fileiras surgiram na mata os arqueiros foram atravessados de assalto pelos homens de Miguel.

Então os lanceiros desceram o Vau, na direção da mata que circundava a colina.

Nesse momento os demais soldados da Fortaleza terminaram de atravessar o rio, todos que estavam na sexta fileira recolheram as duas grandes redes.

Os Lanceiros adentraram na mata espetando os soldados do Vau, que usavam todos espadas curtas de aço. Suas formas de armas eram conhecidas por Miguel. Ele sabia que os lanceiros deveriam ir primeiro, porque tinham vantagem na batalha corpo a corpo contra as armas de proximidade de Vaudeferro.

Os Tordos alcançaram o pé da colina em pouco tempo, saindo de dentro da mata baixa e se reuniram aos poucos sob o comando do General. Oito soldados seus não atravessaram a mata, ou talvez estivessem lutando entre as árvores. Haviam sessenta e dois ali.

-Além da colina - esbravejou Miguel, cuspindo sangue e apresentando um ferimento no abdômen- está a glória. Vamos buscá-la!

Todos os homens avançaram sobre grama da Colina, mole e pisoteada, que descia Vaudeferro. Quando chegaram no alto, viram que havia muitos homens ali, duas ou três vezes mais. Então puseram seus escudos sobre a cabeça, os que estavam nas últimas fileiras. Os intermediários na formação, elevaram seus escudos na altura do rosto. Os lanceiros puseram o escudo à sua frente, levemente inclinado. O que se via no campo de batalha de Vaudeferro foi uma grande parede de luz descendo a colina, a qual não se podia mirar sem ofender a vista. Muitos arqueiros lançaram flechas e poucos acertaram na direção do paredão. E quando a luz cessou, os lanceiros já estavam enfiando suas lâminas no estômago dos Soldados de Ferro.

Desceram arrastando as primeiras fileiras diante da Fortaleza do Vau, abrindo espaço para as espadas afiadas. Logo um tapete vermelho se formou sobre o pasto e a lama, os homens do General avançaram com suas longas espadas de aço inquebrantável sobre as hordas do inimigo. Eles não esperavam um ataque tão cedo, ainda estavam se organizando para atravessar a margem e encontrar a companhia de Miguel.

Edmundo vinha montado no cavalo quando uma lança foi arremessada na sua direção, mas não atingiu o alvo. Porém uma clava de corrente bateu no seu escudo, derrubando-o do cavalo. O escudo resistiu à investida do soldado, e novamente ele lançou a clava sobre o Senhor de Vaudeferro.

Então uma trompa soou. Um som metálico, baixo e contínuo veio derrubando as árvores e estremecendo os tímpanos dos soldados.

E soou de novo. Na segunda vez estava mais alta e próxima.

Os Tordos gritaram no campo de batalha, com um frêmito incendiado de energia. Miguel sabia que seu Rei havia chegado, então ele brandiu sua espada com muito mais força.

“Mais duro que o aço.”- ele gritou.


O velho oráculo

Estavam todos no salão de Ferro do Castelo do Vau. Festejando a vitória esmagadora sobre o exército de Edmundo. O Senhor de Vaudeferro estava sentado, com um ferimento de espada no abdômen. Da ferida brotava uma sangria inestancável, vertendo o ferro líquido e morno pelas pernas do homem, debaixo da peitoral de aço escovado, fendido e retorcido pela pancadas em batalha.

De fato era um ferimento mortal, Tantalus enfrentara Edmundo, um homem de idade avançada, porém de constituição forte e experiente em batalhas. O que não foi suficiente para conter a fúria de fogo do Rei de Jade. Tantalus largou sua espada e partiu de punhos nus na direção de Edmundo, e após trocarem ferimentos, Ágoras com muita força, urrando sobre o rosto do Varãodeferro, atravessou Edmundo com a própria espada. Não teve piedade, mas o deixou ferido suficientemente para presenciar a festa que daria nos Salões de Ferro após a vitória.

Ordenou que pusessem o Senhor numa carroça puxada por dois porcos, que o foi carregando até o interior da cidade.

Edmundo viu tudo, moribundo. Deixaram-no sentar no trono até seus últimos momentos. Giom tomou a filha de Edmundo, diante de seus olhos. Fizeram-lhe um vestido de noiva com a toalha de mesa. Casaram-na com José, o batedor do rio que avistou as tropas de ferro.

Os ânimos estavam exaltados.

Irene de Vaudeferro, a mulher de Edmundo, foi obrigada a servir um banquete para os Tordos de Pedra e os generais do Rei que estavam ali, enquanto as barracas dos Regimentos da Fortaleza do Sol eram montadas no pátio do castelo.

Trouxeram um menestrel para cantar. E Tantalus mandou descer cerveja. Muitos risos bateram contra as paredes do salão e o canto frouxo e engraçado que desdenhava o Edmudndo ecoava nos estertores de ferro, enquanto o condestável morria ouvindo a tudo.

Então foi ordenado que viessem os Lordes de Ferro que se renderam em batalha. O Primeiro foi o Senhor de Passo da Balsa, Edgard Minarica. O olho azul safira brilhava desconfiado sob os archotes. Mas veio e foi convidado a se juntar à mesa, muito embora se mantivesse temerário.

Tantalus aproximou-se de Edgard e lhe perguntou porque decidira se juntar à Fortaleza, mudando de lado durante a batalha. O Homem com o  bigode sujo de sangue engasgou, mas por fim se explicou: “Eu vejo que os fortes devem ser seguidos, cometi um erro ao apoiar um fraco.”.

O saguão ficou em silêncio aguardando o julgamento daquelas palavras. Tantalus o mirou com os olhos verdes brilhantes por trás da máscara que reluzia ao fulgor das chamas no salão, ergueu o braço do homem nas alturas, como se pedisse a reverência dos presentes. Porém catou uma faca na mesa e atravessou o peito de Edgard, diversas vezes:

-Traidores são sempre traidores.- ele falou para seus homens- Fortaleza, lealdade, respeito. Misericórdia jamais.

E todos repetiram as palavras de Ágoras.

Depois um perdigueiro veio, cochichou ao ouvido do Rei, que assentiu com a cabeça. Logo o emissário trouxe uma mulher enquanto o Rei procurava assento confortável. Ela vinha de cenho duro, cabelo e olhos pretos, da cor do ferro, e estava vestida com roupas finas, e seu andar era cauto e pisava com altivez, erguia a cabeça como uma nobre. O homem que a trouxe se dirigiu à audiência: 

-Ela quer falar, diz que é bastarda de Edmundo.

Tantalus pôs os pés sobre a mesa, afim de escutar confortavelmente o que a mulher tinha a dizer. Fazendo uma mesura, sinalizou para que ela falasse. O soldado a empurrou para o centro do salão de ferro, ao redor do qual todos estão estavam sentados banqueteando.

Ela girou sobre os pés, antes de iniciar sua fala.

-Meu nome é Irena, primogênita e bastarda de Edmundo.- então todos os soldados bateram, nas mesas dizendo o nome da mulher, zombando.

Ágoras pediu pelo silêncio de todos, fazendo shi.

Ao que ela continuou: 

-Sou Patronesa do Escola de Mistérios de Vaudeferro, mulher de Isnard, que caiu em batalha. Venho diante de todos pedir que as mulheres e crianças que estão sob a proteção dos muros da cidade, bem como os velhos e jovens que não foram à luta, sejam deixados em paz. Não queremos ser violados. Os Senhores demandam respeito, eu ouvi. Peço o mesmo enquanto choramos a morte dos pais, filhos, irmãos e maridos.’

O Rei levantou-se, caminhando na direção da Patronesa. Ele chegou muito próximo de seu rosto, e segurou a borda de filigranas de ouro de sua Toga Candida. Deixou que os longos brincos de esmeraldas escorregassem entre seus dedos. Mirou com curiosidade no fundo daqueles olhos negros e desafiadores. Então afastou-se.

A sua máscara sempre evitava que tivesse o rosto lido. Ele girou no salão, erguendo os braços para os seus, e gesticulou para que ela o seguisse até a mesa. Puxou uma cadeira para que sentasse ao seu lado.

“Mande a próxima atração”- disse Tantalus para o perdigueiro.

Enquanto traziam o próximo entretenimento, virou o rosto na direção de Irena e sussurrou ao seu ouvido: Sei que tem um punhal dentro da manga, o vi brilhando enquanto falava . Se tentar usá-lo terei que mostrar a meus homens que não tenho piedade. Fique quieta e sorria ao meus lado. Se o fizer, deixarei que permaneça na Escola, que viva no Templo junto com um Preletor Racionalista indicado por Edir Gramateus. Se quiser continuar com o plano da adaga, fique à vontade. Vou me divertir da mesma maneira, porque eu não me importo com você. - recostou-se na cadeira e cruzou os pés sobre a mesa novamente, e ficou observando enquanto o perdigueiro trazia a nova atração. Um velho cego, de olhos leitosos, vestindo uma burca preta, carregando uma ânfora de ferro.

-Ele diz que é um profeta, Nosso Senhor. - falou o perdigueiro.

Irena se aconchegou na cadeira com ar de satisfação.

-Diga.- Ágoras pediu para que o velho se aproximasse- O que vês com seus olhos  de cego?

Alguns riram no salão, mas a maioria permaneceu em silêncio, curiosos e intrigados com a figura enigmática da qual estavam diante.

-Eu vejo o futuro que vai acontecer ou que poderá acontecer e como evitar os infortúnios. Eu vejo aquele homem segurando um cálice dourado, a mulher a seu lado sorvendo uma bebida doce. Com esses olhos brancos eu vejo o que não pode ser visto e o que deveria ser evitado. As sombras que se movem ocultas nos covis de conspiração. Os punhais e as gotas fatais escorregando na escuridão, adormecendo precocemente os homens de coragem. - O velho olhava para o lado contrário no qual se encontrava o Rei.

-Necessito da sua seiva, Nosso Senhor , para tanto.

Tantalus ficou curioso e aproximou-se com uma faca na mão. O velho se voltou rapidamente na direção de Ágoras, o mirando com as fitas leitosas: 

-Com a faca não. - o Rei deu um salto para trás, desconfiado de que ele tinha a vista boa.- Faça com isso.

Ao retirar o tampo da ânfora, uma cobra negra, de escamas brilhosas deslizou sobre o bocal, serpenteando seu corpo fino e brilhante sobre o manto negro do velho. A cobra sibilou e ao encontrar os olhos de Ágoras se lançou sobre o Rei. Com um disparo de reflexo passou a faca na cobra que se erguia. O corpo dela ficou mole e a sua cabeça caiu no chão.

Todos riram daquilo.

Mas em seguida a serpente de pele negra e brilhante se reergueu e uma nova cabeça brotou no lugar daquela que fora extirpada. E avançou sobre Tantalus lhe picando com longas presas tão finas como agulhas. A cobra enrolou-se no braço do velho e entrou pela manga. Desaparecendo sob suas vestes.

Ágoras deu alguns passos para trás, com a mão no ferimento da picada.

Em seguida o velho estremeceu e ergueu os braços para cima, seus olhos ficaram vermelhos como poças de sangue e ele começou a falar em copta: 

-Um sangue de antigos Reis vem à mim porque quer saber o futuro. Eu vos dou o meu sangue, a seiva do filho esquecido, como pagamento desta magia poderosa. Um tesouro procurado se esconde sob mil folhas de lótus. Um couro de lobo na noite escura para o assassino titereiro de sangue. Um menino à beira da morte, no grande castelo no Havdalá. A Princesa da Bandeira Sombria. A Gema... a Gema na escuridão brilha, para construir o maior império de todos. O Rei de Jade quebrado. Uma Rainha Sombria de Olhos brancos. Uma guerra terrível. A montaria sagrada para o imperador de tudo… - Tantalus ficou transtornado com as palavras, acenou para o perdigueiro. Um soldado com uma banidora saltou de trás da mesa e atravessou o Oráculo, até que o cabo trancasse nas costas.

Um brilho ondulou na pele do velho, como se ela fosse feita de milhares de pequenas escamas metalizadas, depois seus olhos voltaram a ficar brancos e então se fecharam.

O salão permaneceu em silêncio, digerindo aquele evento inesperado. E muito embora tivessem procurado exaustivamente, jamais encontraram a serpente da ânfora.

Irena acompanhou todo o desfecho com um grande ar de satisfação, como se já conhecesse o espetáculo, usou a adaga da manga para puxar uma maçã para si enquanto observava toda aquela circunstância curiosa.



Continua no dia 6/08…


24 de julho de 2021

Imperador de Jade 1

 

Ato I- HOMENS DE PEDRA



Mar de Carabeus


As vagas douradas brilhavam no horizonte quebrando lentamente, como fosse um mar de ouro derretido, denso e impenetrável, escorregando sobre o leito do mundo, cheio de tesouros de tudo que fora devorado e agora dormia nas suas profundezas sob o soturno tapete amarelo de Carabeus.

Os marujos subiam as mestras para empurrá-los nos ventos favorecidos do Mar, que se preparava para enfunar as lonas nas alturas.

Fineas tinha o olhar fixo naquele cenário enquanto escorregava a não até o fundo de sua sacola, segurando o cristal preto entre os dedos. Fazia esse movimento com frequência somente para saber que Joyce estava viva, sentia a pedra receptáculo quente e pulsando tal qual as batidas do coração daquela mulher. A garganta apertava de angústia algumas vezes ao dia e sentia saudades da Patronesa de Mataguda sempre, mesmo depois de tanto tempo separados. Ainda tentava esquecer o nunca que fora o para sempre de ambos, aquela decisão que tomaram quando viajavam juntos durante a guerra. E doía lembrar, porque decidiu não insistir na idéia egoísta de permanecerem juntos, porque concluíram que os povos precisavam mais que estivessem a serviço da paz, nos terrenos longínquos do continente. Por isso não se arrependia da distância quando lembrava que ela era a mulher à frente do Templo de Mataguda. Seu estado de permanente inquietação com injustiças tranquilizava o coração de Fineas, a verdade era que ela iria contra todos para tornar efetivos os princípios com os quais estava comprometida. Uma mulher forte e de sentimentos intensos, realista e ao mesmo tempo inspiradora, uma semente de esperança plantada nos Jardins dos Laranjais na Torre Cevadilha.

Quando o conselho enviou o nome da Patronesa para ocupar o parlatório da escola de mistérios da Torre Cevadilha, Fineas sentiu um aperto, como rasgasse o peito, estilhaçasse uma história que jamais seria contada. Ficou alegre e triste, confuso porque deveria sentir-se feliz por Joyce, porém culpado por desejar que ela recusasse para somente satisfazer uma vontade própria e alheia ao bem comum. Ela já lhe dissera há muito tempo à beira do fogo, na noite que antecedeu a última batalha contra os bandeiras sombrias. Joyce apertou o tecido do manto muito forte enquanto dizia aquele não. O destino não iria lhes reservar essa felicidade, pois muito dependia dos cuidados que deveriam despender para a prosperidade das terras unidas. Foi um não dolorido, e não sobrou muito nos corações desmoronados, tanto quanto sobrou daquela fogueira: somente cinzas e lama na manhã fria.

Pensara com tristeza que aqueles amigos que lutaram tanto pela paz atual encontravam-se hoje separados. Não só pela distância, mas em seus espíritos: Ben Adam de Quran, Susana de Niceia, Atticus de Penhascoforte, Joyce de Mataguda, Edir Gramateus de Shadai, Tantalus Dágoras. Tudo havia mudado, exceto no coração de Fineas, em sua mania constante de nutrir as mais difíceis esperanças.

Agora estava ali, em razão da abssência inescusável do amigo e pai de Ágoras, Tantalus Dágoras, levando-lhe o filho para casa depois de passados tantos signos em terras estranhas. O menino ficara esperando ser buscado, mas não fora mandado nenhum navio, nenhuma comitiva, nenhum perdigueiro para avisar-lhe uma data de regresso. Fineas achou por bem organizar ele mesmo uma viagem, armou um navio e trazia consigo os meninos que foram para os Salões de Jade, hoje três homens completamente desconhecidos de todos.

Foi até a cabina onde o príncipe dormia, diversas vezes, mas não tinha coragem de bater-lhe à porta. Dentre todos os medos que sentia, o da mágoa do pequeno garoto que fora levado a contragosto para longe, era o maior, isso porque estava longe à época e nada fizera para impedir-lhe a ída. Um pânico, uma culpa e um aterrador pensamento de impotência lhe assombravam desde então, deixando a mente cinza em todos os dias que vinham datando aquela partida, mas alcançavam como fundo todos os demais, e ainda mais esse momento, onde ia o rapaz sob as ondas no calvário de madeira que se tornara a embarcação. O Sacerdote foi preletor do menino junto com Bem Adam, e ambos lhe tinham grande afeto, apesar das intervenções violentas e controladoras da Rainha, mas sentiu que tudo se quebrara irremediavelmente quando seus olhos se cruzaram com os de Ágoras nos portes dos Salões, Fineas lhe cobriu com o manto real  e tinha as vistas embaçadas de lágrimas, embora esperasse uma grande indiferença da parte do príncipe, não foi isso o que sentiu vindo dos olhos verdes e brilhantes do jovem que deixava as profundezas duras e frias, mas sim um ódio quase pungente. Uma raiva aguda que vinha o esfaqueando durante toda a viagem de volta.

O capitão tocou no ombro de Fineas, que estava absorto na visão das ondas douradas da Baía de Ouro, distanciando-se no horizonte, enquanto o sal ardia nos olhos amarelados pelo reflexo dos céus:

-Estamos entrando na foz, no Mar de Carabeus, pararemos somente em Inkaar, há sete dias de viagem. - a Sumidade Clerical assentiu com a cabeça, enquanto o cabelo preto se dispersava sobre o cenho ao sabor do vento. Sentiu um aperto pelo porvir nebuloso e relutante tentou afastar os sentimentos sombrios que insistiam em retornar. Aquela velha tentativa de esperança tremia nas cordas largas do peito do Sacerdote fazendo-o tocar mais uma vez na pedra, para ter certeza de que Ela estava viva.

Ele ainda tinha uma promessa a cumprir, sobre a qual sentia uma grande responsabilidade. Apesar da lonjura do tempo, da aflição das emoções, dos augúrios controvertidos, sabia que deveria navegar naquele mesmo navio novamente. Passara tanto tempo atravessando os mares, de cá pra lá, atrás de pistas para as dúvidas que Dágoras levantara no passado.

Assim planejara, a fragata iria até as cidades gêmeas deixar o príncipe, e depois, o empurraria mais uma vez através do Mar de Carabeus para longe, nas areias silenciosas que inconscientemente tentava evitar, talvez porque sabia que uma verdade dura o aguardava lá, cujas consequências não sabia como enfrentar, não sabia muito mais do que sabia como confrontar o ressentimento crescente de Dágoras. A missão de ir à Shaday era mais uma tentativa de restaurar uma amizade, eliminar qualquer que fosse a razão do distanciamento causado pela dúvida do Rei: muito mais do que a dúvida, Fineas era movido por uma culpa latente.

O imperador de jade

Tântalos Ágoras chegara com muitas expectativas, porém encontrara o pai tomado por uma velhice de espírito precoce. Não o recebera nos aposentos, somente o tinha visto por um breve momento na festa de retorno, um banquete do qual Nenhum dos dois desfrutaram, o imperador recolheu-se logo no início, após o discurso do Sumo Sacerdote Oriental, ergueu a taça e bebeu, não comeu ou festejou, arrastou-se para escuridão de seus aposentos sem dirigir a palavra ao filho. O príncipe limitou-se a receber os cumprimentos da corte, sem esboçar muito agradecimento e aparentava achar enfadonho toda aquele protocolo. Decidiu reunir-se aos soldados após o jantar, examinando os equipamentos e o estado de organização da guarda.

A noite mais escura desceu duas vezes sobre a terra antes que tornasse a ver o pai uma vez mais, e na frialdade da alma ressentida do velho imperador encontrou um homem sem expectativas e sem planos para o futuro: “leve o regimento que achar mais adequado e faça incursões na fronteira de Represagorda. Escolte os mestres até a fronteira para que cuidem dos pesteados.”

Ao retornar, fez um relatório sobre a situação na fronteira, tratou de reportar ao mestre de guerra sua insatisfação com os grupos insurgentes: “a fome, a peste, o abandono das terras era insondável”, tudo remetido ao conselho, submetido à burocracia democrática que julgava engessar o poder do imperador. “Fraco, meu pai é um fraco.”, pensava. Tanto poder, sem que possa usufruir não é algo digno de lhe conferir o título de imperador, rei de nada, era essa a expressão que utilizava para referir-se ao pai junto aos homens, soldados e comandantes.

Tântalos sentia-se enojado e irritadiço com tamanho prestígio imputado ao pai, julgava que não era digno das canções sobre a guerra que eram cantadas e tinham Dágoras como um cavaleiro de elevada estima, coragem e justiça. Pensara que talvez a glória teria obliterado o senso de governança e comando do imperador, que aquela carcaça de homem que passava admirando o fogo na escuridão dos aposentos da torre do rei não era nada senão uma sombra de dias passados, nada mais o fazia crer em qualquer respeito para com o velho desleixado que jazia na cadeira de ébano da Fortaleza do Sol.

Tampouco passou a insistir no sentimento de querer agradar ou mostrar-se digno àquele homem, sentia-se imerso na ojeriza a tudo que se referia ao rei, passando a procurar os conselhos do Sacerdote Edir, que mostrava-se interessado no comportamento promissor do jovem príncipe, que angariava cada vez mais a admiração dos militares e da corte.

Passavam momentos jogando tabuleiro real, o passatempo de estratégia favorito daquele lado do rio, muito embora pouco falassem, Edir demonstrava imensa simpatia pelo jovem, ignorando seus impulsos de ódio e sua muito curta paciência.

Naquela tarde fria, enquanto o fogo crepitava na lareira, mantinham-se concentrados na jogatina, bebendo vinho quente de especiarias.

O anel do príncipe batia ritmadamente na taça de cobre, o pé balançava inquieto sobre os joelhos cruzados, enquanto observava o Sacerdote concluir uma jogada.

Rompendo o silêncio, Edir pediu que os homens que observavam o jogo se retirassem, girando o dedo no ar. “Quero ter um tempo a sós com o príncipe”, disse ao mestre de criadagem, que assentiu com a cabeça e foi gesticulando em direção à porta para que os demais se retirassem.

Edir levantou o dedo, enquanto torcia o tronco para olhar o mestre:

-É de meu agrado que o Prestante Edgar permaneça. Somos homens de D'us afinal, alguns estão aqui para fazer o trabalho Dele na terra. - disse, enquanto tomava um gole pequeno de vinho temperado e depois coçou as mãos observando o tabuleiro. Era de costume arquear as fartas sobrancelhas, olhando de baixo para cima com suas fitas cinzentas, ao dar ordens aos seus. Tudo permeado por seu sorriso enigmático e distante.

Quebrando o silêncio que se surgiu, o príncipe retorquiu inquieto:

-E alguns aqui estão para não fazê-lo? - sua voz estava carregada de ironia, e foi esboçando um riso no mesmo tom, enquanto movia um peão mercenário na direção do rei para encurralá-lo, tremendo e remexendo-se impaciente- "Rex minati" , disse após mover a peça.

Nenhuma reação vinha da calmaria que descia sobre o cenho do Sumo Sacerdote:

-Uma boa pergunta. No entanto a resposta é que todos fazem o trabalho de D'us na terra, mas somente alguns são escolhidos para as tarefas de propósito elevado. Fomos feitos todos assim, não é mesmo? Diferentes apesar de nossas semelhanças aos olhos de D'us. - e moveu um peão soldado verticalmente o colocando entre o mercenário e o rei, que estava a duas casas do refúgio. Devolveu as mãos ao calor das mangas, onde já estava acostumado a escondê-las.

Tantalus Ágoras deu de ombros. Dentre todos os assuntos que estudara desde que foi ao Salões de Jade fizera questão de ignorar a religião, mas era um homem sem rodeios e entendeu perfeitamente que o assunto não se tratava de religião afinal, assim, decidiu embarcar no jogo de Edir para ver onde queria chegar:

-Nesse caso, Vossa Santidade, o que o servo de D'us desconheceria é o que tem que lhe ser dito, não é? Uma revelação do seu destino divino, o trabalho maior que deveria realizar. E quem lhe dirá isso? Eu apostaria que pensa que o emissário de D'us deveria trazer-lhe as novas sacras: o Sacerdote. - e moveu um peão mercenário na direção do refúgio, impedindo que o Rei chegasse no destino.- E o que foi que D'us lhe disse, Edir Gramateus de Shadai?

-E quem mais diria? - Edir lançou uma sombra sobre os olhos, com suas fartas sobrancelhas enquanto observava o tabuleiro, enrugou o nariz e saiu de dentro de si com um sorriso largo, pondo um soldado atrás do peão mercenário que o flanqueava. - D'us me revelou muito do que está por vir e como faremos cumprir esse destino divino, mas, lembre-se, essa liça do campeão de D'us não será feita sem algum sacrifício.

-Sacrifícios são necessários. - Tantalus foi obrigado a mover o peão mercenário para eliminar o soldado que ameaçava capturar o rei, deixando com isso o caminho para o refúgio livre.

-Sim, sacrifícios em nome de D'us, para colocar o Rei exatamente onde deve chegar. - e levou a peça real até o refúgio - Non Mors Regem (venci). Entenda, meu jovem Senhor, sou um homem de D'us, e muitas vezes ele vem ao meu ouvido e diz para que faça exatamente ao contrário do que pensei que deveria, os sacerdotes são necessários nesse momento de intervenção divina. Sou um homem de objetivos e justo, e leal na medida da recompensa que me cabe, não pertenço às salas de deleite, meus não são os caminhos do prazer vindos dos doces homens e mulheres, tampouco é de meu agrado o estupor que sucede ao abuso da ervas e fermentados em excesso. Sou homem que serve a D'us, com um único propósito do qual jamais fugirei.

Tantalus riu, mas de imediato um impulso lhe tomou as mãos ao que empurrou as peças: o Rei, o Imperador de Jade, saltou para fora da mesa, saiu rolando pelo chão de pedra e rachou-se, encerrando o jogo.

O jovem saiu como vento em direção à porta, deixando Edir na sala de pedra, com os passos do Príncipe ecoando até o estertor além das amplas paredes. Porém, quando chegou à soleira parou, segurou e ficou girando o anel do principado no dedo grosso e calejado da espada, as unhas tortas e levemente acinzentadas dos soldados de jade. Então disse sobre o ombro, com a voz levemente embargada:

-farei o que for preciso.


O Enigma de Shadai

Desde Evreskaya, sentia-se responsável por tudo que aconteceu. E aquela responsabilidade o levou por tantos caminhos, até a proa da fragata bater no solo pedregoso das praias de Shadai. Esteve em tantos lugares procurando por respostas, evitando chegar até ali, mas principalmente após deixar o jovem príncipe na Fortaleza sentia um peso aterrador sobre a consciência. Prometera a si mesmo rumar imediatamente para Shadai, mas passara algumas luas de em Kuin Pur, Inkaar, Xsalanar, retardando ao extremo sua chegada na Ilha Silenciosa.

A bem da verdade procurava respostas, procurava desde a união de Dágoras e Rejane, há dezoito signos, e ainda tinha as mesmas dúvidas... Enigmas.

Porém não podia mais retardar esse encontro, somente uma pista restava ser checada, dada por Jena Represagorda,  justo a que não desejava indicar como verdade, cruel e dura demais. E ele estava ali, pisando novamente nas pedras duras das ilhas silenciosas. Aquele porto cinza onde as urzes morrem, a morada do escapismo inexorável de todas as histórias jamais contadas sobre Shadai.

Somente escorregando a prata nas mãos de um escriba conseguiu a confirmação de que lá estava o homem que procurava. E quando o viu, sentiu pena. Tinha um aspecto muito senil com as costas encurvadas, poucos dentes na boca. E muitas, muitas cicatrizes espalhadas pelo corpo. Os olhos verdes vibrantes, dançavam soltos nas órbitas escuras. E ele ficava lambendo os lábios repetidamente. Olhou para Fineas e não olhou. Estava alheio ao mundo.

-Fez um voto de silêncio, desde que chegou aqui. -Disse o escriba.

Não importava, pois, apesar do silêncio, as fitas daquele homem gritavam sobre todos os acontecimentos. Fineas ficou compadecido dele, na sua miséria. Mas, sentiu um alívio, embora iníquo, por sabê-lo ignorante de seu estado.

-Há uma jovem mulher que veio por ele, umas, duas ou três vezes no ciclo. E fez exatamente o que o Senhor está fazendo agora. Fica aqui, olhando e acariciando o homem. Mas nada diz. E assim como veio, vai. E aqui em Shadai, nós não falamos sobre os visitantes. - Estendeu a mão na direção de Fineas, esperando ser pago.

O Sumo Sacerdote, fez como prometido. E ficou balançando a cabeça, tentando entender os fatos.

O homem doente colocou a sua mão entre as do Sacerdote. Ele não esperava por isso. Seus olhos se encontraram, e se demoraram. Mas era um olhar alienado, além de solitário. Depois fixou a vista na Lua tatuada entre os olhos do Sumo Sacerdote da Escola de Mistérios da Ordem da Lua. E Fineas, no meio do silêncio que só há ali, soube que era culpado de tudo. E acariciou aquelas mãos tortas, de pele fina, e ossos salientes, na tentativa sincera e ineficaz, de expiar seus pecados.

Acenou para seu prestante e ordenou que entregasse uma carta ao Rei Dágoras, escreveu a mais pura verdade, selou o documento e o entregou ao jovem junto com algumas moedas: “Vá com pressa; tome a balsa e rume à Fortaleza, siga pelas terras do norte, procure pelo velho mascate na Última Vila Mais ou Menos ao Norte, ele conhece todos os caminhos e me deve um favor, diga que ordeno que o guie o mais rápido que puder. Ficarei mais duas noites aqui utilizando a biblioteca.”

O prestante bateu em retirada e desapareceu entre os corredores para cumprir as ordens de seu mestre.

Fineas foi ao Torreão procurar informações sobre a linhagem dos Kaisar nos documentos oficiais e quando julgou ter consigo todas as provas de que necessitava decidiu retornar, mas antes ia rever o pobre homem que visitara.

Ainda estava lá, prostrado, do mesmo jeito. Fineas aproximou-se, olhando-o com o mesmo pesar:

-Amigo, como está hoje?- passou a mão untada em óleo de laranja com leveza na testa do proscrito e fez uma oração, ao que os olhos do homem se iluminaram num verde esmeralda intenso, uma espécie de resposta e ele balbuciou alguma coisa - isso vai trazer algum conforto. -sorriu o Sacerdote aproximando, surpreso, o ouvido da boca do homem.

-Serpente… alada... - disse, encontrando as fitas de Fineas com uma espécie de lucidez, mas depois seus olhos se apagaram e voltaram a mirar o infinito.

O Sacerdote, preocupado, colocou a mão na bolsa e entregou uma pedra para o homem. Uma pedra  branca que brilhou ao comando de suas palavras. Ele a pôs na palma do exilado e fez com que a fechasse.

-Se fores cuidadoso com ela, saberei que bem te encontras.- falou com um sorriso e lágrimas. Não só por que aquele que à sua frente se encontrava vivia uma miséria desmedida é que verteu um pranto inesperado, mas porque ao tocar as pedras dentro da sua sacola, a pedra dourada estava fria, havia se apagado. E ele tristemente sabia que deveria voltar, o quanto antes para a Fortaleza do Sol, deveria rever pela última vez um grande amigo.

Porém não teve coragem, postergou ao máximo o retorno, escutou as notícias do funeral magnífico do imperador, sua vergonha era intensa: empurrara tanto a verdade, até onde cria ser o limite, mas o homem que deveria escutá-la se fora. Tarde demais para voltar.

Bebeu até perder os sentidos por muitos noites na cabine da fragata e durante uma tempestade caiu ao mar e foi resgatado pelo imediato: “deixa-me para morrer, quero encontrar os deuses!”, disse ainda ébrio, ensopado. O fiel marujo lhe tirava as roupas encharcadas: “só existe um D'us, meu amo. O senhor mesmo me disse.”

Depois de tudo uma vergonha intensa lhe recorria, sentiu-se compelido a voltar, aproveitaria que neste signo era anunciada a celebração do festival da roda, na Fortaleza do Sol, onde deveria assumir seu lugar como Sumo Sacerdote Ocidental, de cujos deveres do título já vinha se ausentando há muito.

Compelido por uma força inesperada, rezou uma vez mais e decidiu fazer o que deveria ser feito, num voto de hombridade para com seu irmão de guerra, decidira confirmar a verdade, custasse o que fosse preciso.

Quebrara as ondas dos mares da baía e do castanho Ausar com uma dor intensa no peito.

A notícia já havia se espalhado por todos os portos, a A bandeira da Fortaleza estava a meio pau onde quer que chegassem.

No porto amarelo, desembarcou com o coração doído, carregado da verdade. A mais dura descoberta o quebrara por inteiro.

Não parou para comer, tampouco para anunciar sua chegada. Saiu às ocultas da embarcação, o bioco ocultando sua face e foi andando pela cidade como um desconhecido.

O  barulho das pessoas na rua era motivo de alegria. Risos, gracejos, e conversas tolas. Muitos estrangeiros lá fora nas vielas apinhadas. O Festival da Roda acontecia, pessoas tinham vindo de todos os lugares para  o funeral do primeiro rei eleito no Oriente, mas ficaram ocupando as quadras até a data da festividade.

Mas assim que Fineas entrou, saindo da convulsão das vielas, logo após a mulher fechar a porta às suas costas, sentiu que aquele lar no qual entrava não partilhava do mesmo sentimento alvoroçado das ruas. Assim como o próprio Sacerdote, que estava esgotado desde que saíra da Terra firme e cruzara inúmeras vezes o Mar de Carabeus, para cima e para baixo esperando encontrar respostas, até sentir que a pedra dourada não mais pulsava.

A mulher tinha o semblante cansado, como alguém que não faz asseio há dias. Estava com um lenço na mão, e uma fita preta de luto amarrada no pescoço.

Fineas desceu o capuz imediatamente. “Meus sentimentos.” - Ele disse.

Ela meneou com a cabeça, e apertou a boca, como quem vai chorar: “Está difícil, muito difícil.” 

Fineas aproximou-se dela, e a puxou em um abraço de consolo, esfregando as suas costas. Enquanto o choro vertia inconsolavelmente.

Seu velho amigo havia partido, também era duro para ele, que sequer conseguira chegar a tempo de uma despedida.

Ainda que o pesar fosse grande, e ainda quisesse chorar a sua morte, deveria afastar esse sentimento, pois sabia que agora, aquele bom e justo homem, estava em um lugar melhor. E ele necessitaria, nessa hora crucial, fazer perguntas a essa mulher chamada Elaia. Perguntas que iriam remexer as feridas recém abertas em seu coração.

-Elaia, eu preciso saber de algumas coisas…- prosseguiu com ressentimento, afastando a mulher e a conduzindo até uma cadeira. Ele mesmo não sentou, ficou ajoelhado, segurando sua mão, a confortando.

Era uma casa humilde, dentro dos muros da Fortaleza, como a maioria das casas de lá. Precisando de pequenos reparos por fora. Mas não era pobre. Lá dentro, havia coisas finas. Bacias de louça, Essência de cacharréis queimando nas lamparinas. Os pés da mulher vestiam sapatos com bordados finos de Saigão. E ela era robusta, e forte, uma mulher tão alta quanto Fineas. De longos cabelos melados, e apesar do estado em que se encontrava, os contornos do seu rosto eram harmoniosos e exóticamente singulares.

-Elaia, eu preciso. -Ele insistiu.

-Não, Fineas. Não faça isso comigo… - a mulher meneava a cabeça. 

-Eu sinto muito, mas preciso saber dessas coisas, Elaia. Eu acredito que tenham conspirado contra ele… Escute, não há ninguém na Fortaleza do Sol em quem eu possa confiar nesse momento. E ele sempre me viu como um amigo, um confidente. Tu bem sabes. Mas isso aconteceu, eu estava longe. Não nos víamos há cerca de seis signos quando ele.. Bem, ele me pediu que procurasse respostas para dúvidas que tínhamos. Então, depois de muito tempo, e depois de andar por muitos lugares, eu as encontrei. E andei muito, Elaia. Eu as encontrei em Shadai. E quando eu finalmente estava retornando, ainda na ilha, recebi a notícia. Foi aí que larguei tudo, vim para cá. Escute, Elaia, eu preciso saber se você deitou algum filho dele, alguma vez, eu vou compreender se me disser que não o quis, eu prometo.”

Então ela chorou lamentando, mas negou com a cabeça.

Ele estava muito nervoso e suas mãos tremiam sobre as dela:

-Elaia, alguma vez ele lhe contou sobre algum filho ilegítimo? Seja honesta. Nesses anos todos, você soube de outra mulher?

-Não, não, não… Ele nunca foi de se abrir. Nunca me falaria se eu não descobrisse sozinha. Não me importaria também se tivesse, afinal era só isso entre nós. Fineas, eu fiquei aqui, eternamente esperando por ele. Então ele vinha com frequência e depois começou a vir cada vez menos. E quando o seu filho voltou, ele não veio mais. Está ali, para que veja. E apontou na direção de um aposento tapado com uma cortina. Desde então eu tenho dormido pela sala. Nunca mais me deitei naquela cama. Só olho para lá, atrás dessa cortina... Mas ele nunca deixou de mandar nada, embora isso me doesse mais que tudo. Me fazia saber que ele ainda lembrava de mim, e no entanto, nunca mais… nem o porquê…- a voz embargou e Elaia ficou silente, soluçando sobre o ombro do Sacerdote.

-Espere! Havia rumores que se deitava com a mulher de um agricultor, cultivava oliveiras na Vila do Córrego. Mas foi há muito, muito tempo, durante o signo do escorpião.

Fineas restou pensativo. E a mulher deitou a cabeça sobre o seu ombro, enquanto ele afagava o cabelo macio dela.



A aposta do Alto Sacerdote

É dito pelos aprendizes das Escolas de Mistérios, que não existem profecias inexoráveis, pois aos vivos é dada a liberdade da autodeterminação. Em verdade é dito que tais premonições inexistem. Os vivos farão as suas escolhas próprias, o que possui reflexos diretos no futuro.

No entanto aquele homem, que tão cedo deixara a ilha de Shadai, com o objetivo de se tornar um cantor dos Mistérios, um Pastor ou até um Sacerdote, tinha uma forte intuição de que aquela profecia iria se cumprir. No silêncio do barco Mercante da marinha de Saigão, que o transportou até Coptset, conheceu uma misteriosa mulher. Ela se dizia Sacerdotisa, mas sua veste era negra, como a das mulheres proibidas.

A despeito de toda a inexperiência que pudesse aparentar, uma gana vil e ingenuidade lutando na fala, nos gestos e no pensamento do jovem, ela o levou até o interior da sua cabine, diversas vezes. Talvez não pudesse perceber que a mulher via tudo que ele tentava ocultar, no comportamento imaturo, porque fora justamente isso que lhe chamara atenção, e enredou o rapaz numa teia sem pretensões terceiras, envolvendo tomar-lhe tudo que ele poderia lhe oferecer durante a viagem.

-Quer ver sua sorte? Perguntou, atrás de um biombo de seda que havia improvisado no estertor da fragata, enquanto desvestia sua burca fina e transparente. Edir Gramateus de Shadai não lhe dissera sim ou não. Ela ajoelhou-se aos pés do leito onde ele estava, e pôs o dedo do jovem na sua boca.

Manteve os olhos amendoados, num verde vibrante, como as água do mar aberto, vidrados nas fitas de Edir.

Nunca antes estivera com uma mulher.

Por um momento pensou ter visto presas enormes entre seus dentes, como uma cobra. E seu olho ficar branco como leite. Mas fora só uma ilusão. A mordida sim fora real. Um pouco de sangue escorria entre seus lábios. Mas ela sorriu, acariciando o dedo do jovem com a língua.

Ela então o soltou, e com ar de satisfação voltou ao biombo. Eu sei o seu futuro, ela disse.

-É uma profecia? Perguntou o jovem, gaguejando e enrolando o dedo furado no camisão.

-Uma profecia, você pergunta. Talvez, eu respondo. Eu aposto que sim, falou com a voz melosa, cheia de um sotaque desconhecido, enquanto o olhava por trás do tecido.

Ainda na luz pouca da cabine, ele via a jovem de pele negra, brilhando através das falhas da seda, com seu corpo cheio de sal.

-Você quer sabê-lo?, ela perguntou, puxando a seda que os separava, que desceu sinuosa no ar.

O jovem sentou na beira do jirau, admirando a mulher: “Quero. - e engoliu a saliva, esperando uma resposta.  A Sacerdotisa caminhava na sua direção: 

-Você tem o sangue doce do Sacerdócio. Eu vi na magia que somente com sangue se paga, que tu terás muito poder. Transformarás um jovem em Rei. Obterás vitória perante muitos poderosos. Sujarás tuas mãos com Sangue de um ente querido. E quando teus cabelos estiverem brancos, e teus lábios azuis, um gume negro atravessará o teu pescoço, de um lado a outro. - Disse a mulher sentando no colo de Edir, e fazendo com a ponta do dedo o movimento da arma no seu pescoço.

Então ele sorriu e depois a abraçou forte, com um beijo no cabelo.

-Quando a verei novamente?- Ele perguntou com um tom de inocência.

-Nunca, mais.- ela respondeu sorrindo, e o empurrando sobre as cobertas.- Isso também vi na profecia.

-Profecias não podem ser feitas se o homem tem livre arbítrio. -interpelou o jovem que acreditava na vontade livre dos homens.

-Me diga - a mulher foi falando enquanto se esgueirava por cima do jovem, com seus olhos verdes brilhantes na penumbra - porque o homem planta uma roseira? EU lhe respondo. Uma roseira é plantada porque logo uma rosa virá, e se quer admirá-la. Está nos fatos do mundo: um roseira florirá. Não se sabe o dia, no entanto o homem que a cultiva, e somente ele, conhece o fato; e em uma época, num dado momento daquela planta, quando os ventos, os astros, quando a luz cair de uma certa forma particular sobre as folhas verdes e prósperas, ele saberá que haverá uma rosa. E essa rosa, bem sabe ele, terá um formato que ele conhece. Não lhe é possível saber, no entanto, quando morrerá, se será grande ou apequenada, se será colhida jovem ou madura. O mundo é certamente assim, e podemos conhecê-lo tal qual o jardineiro à roseira. E da mesma forma que o jardineiro cultiva a planta e é sabedor dos seus melindres, é que sei sobre o mundo. Eu conheço o gosto do sangue e sou o jardineiro dos acontecimentos. Não porquê o homem não tem o livre arbítrio, mas porque o conhecendo através da seiva, consigo saber o que a sua vontade íntima irá escolher afinal. E tal como a natureza não pode escapar daquilo que é, o homem não pode evitar as escolhas que faz, porque seu arbítrio é aquilo que é, o que deseja. Esse é o mundo dos fatos, o mundo que pode ser lido e não pode ser mudado”

Essa lembrança, tão distante, o visitava muito frequentemente nos últimos tempos. Parecia, por fim, que a profecia estava prestes a se realizar. Um jovem Rei.

Acordou dos devaneios do passado de sobressalto, esfregando o pingente singelo de pedra sombria que a mulher lhe dera (tirando-o do próprio peito), porque Hermínedes de Saigão o sacudira, estava na hora de manifestar-se em favor do jovem Príncipe, seu protegido e futuro Rei, ali diante do Conselho. Enquanto ajeitava a toga, antes de se pronunciar, passou a mão na cabeça, seus cabelos ainda estavam bem escuros. Não havia com o que se preocupar, ao menos por enquanto.


O Festival da Roda e o Conselho dos Povos Livres Unidos

O Decano meneava a cabeça, inconformado com o que o Príncipe Tantalus Ágoras do Sol reportava, enquanto as falas descontroladas e desorganizadas de todos os Conselheiros ecoavam pelo salão. Ele balançava a mão, pulando em cima da cadeira, tentando chamar a atenção dos presentes, para requerer o silêncio necessário ao seu pronunciamento.

Era o momento de definir a sucessão de Dágoras, o único rei eleito. E fora dito por ele ao conselho, que definiu que a sucessão ao trono viria de um filho ou filha seu, a começar pelo mais velho. Nascendo um segundo filho, esse teria preferência à Ágoras. No entanto, um segundo nunca veio e o Rei deixou a todos, e um único homem estava apto a herdar o trono. E estava ali diante do Conselho.

Estava incrédulo de que um ladrão, um reles larápio, tenha entrado, sem que ninguém o visse, e tenha não apenas tentado roubar a coroa que estava na cabeça do Rei, mas também entrado numa luta corporal que custou a vida de Tantalus Dágoras. O que tornava a situação mais difícil de ser creditada, era o fato de que o suposto ladino estaria vestido como um homem da guarda. Fazendo supor que premeditara o assassinato do guarda pessoal do Rei, trocara de vestes com ele, em silêncio. E adentrando os aposentos de Nosso Senhor da Fortaleza do Sol, que era um hábil espadachim, não tenha sido por ele reconhecido e colocado morto. Tampouco tenha despertado a prontidão do Rei, ainda que pego em desvantagem, acabando inacreditavelmente assassinado. Isso sem falar nos diversos guardas e toda a segurança de que gozava o governante, no seio do seu Reino. E, para tornar a situação ainda mais obtusa, o príncipe fora ferido, quando, ao ouvir os sons da luta, antes de qualquer outro guarda, adentrou nos aposentos reais, e teve o rosto atingido pelo atiçador em brasa.

O larápio estava enforcado e decapitado no pátio público da Fortaleza. E o guarda assassinado jazia no sepulcro, velado com as honrarias militares das quais era digno.

Mas Tantalus Ágoras insistiu nessa versão e quando chamado, Edir Gramateus de Shadai a confirmou, pedindo pela palavra em defesa do jovem. E o salão se encheu de murmúrios.  Afim de sepultar qualquer desconfiança de perjúrio o Sacerdote demandou pelo elixir dos honestos, arrancando muito espanto da audiência. E todo o Conselho, que estava inclinado pela hipótese de Parricídio e Conspiração do Herdeiro, demonstrou satisfação na escolha do Alto Sacerdote.

Tudo foi providenciado para o testemunho.

Ainda que um quase imperceptível suor rebrilhasse na fontanela, o Príncipe contou a versão detalhadamente, tal qual expusera perante todo o conselho. O Mestre das Verdades, da Torre Laranja de Magia da Última Vila ao Norte, em pessoa, aplicara o elixir e acompanhou o desenrolar do procedimento, auscultando o coração do Príncipe e contando as batidas calmas em seu peito. Passou o Mel de Esteno em seus lábios, de forma que qualquer palavra mentirosa que lhe saísse da boca, transformaria imediata e temporariamente a rigidez de seus músculos, paralisando-o. Ao final do testemunho ele levantou dizendo “Juro”. O Mestre das Verdades inclinou a cabeça, entortando a boca, com uma expressão de aprovação. Não havia nenhum sinal de mentiras. O que foi seguido de uma agitação entre todos os Anciãos, todos os líderes e Sacerdotes. Reis e Rainhas presentes.

Mais uma vez o Decano pediu silêncio para deliberar.

Após leu a sentença para todos, dizendo que o rei Tantalus Dágoras do Sol fora morto por um ladrão, ao ter sua coroa subtraída dentro do domínio Real; que seu filho sofrera injúria durante o evento; que os responsáveis já haviam sido sentenciados e punidos; que era inocente diante as acusações que a ele era imputadas. Que estava livre para Governar sucedendo seu pai.

E todos foram obrigados a votar pelo reconhecimento da sentença e pela legitimação do governo do sucessor de Tantalus Dágoras do Sol, pois não havia provas que incriminassem o Príncipe, pois fora submetido ao probatório máximo e inquestionável do Mestre das Verdades. Esse que era o único filho de Dágoras, trazido ao mundo por Rejane, no dia de Havdalá. Ela, que morreu queimada, sob circunstâncias incertas e que tinha fama de louca.

Então Tantalus Ágoras foi Sagrado o novo Rei e governante da Cidade do Sol. E mesmo não felizes ou crentes dos acontecimentos, todos os Senhores que ali estavam, comemoraram a festa tradicional da banda oriental das cidades gêmeas, o Festival da Roda.

O Conselho Clerical, órgão deliberativo máximo da União dos Povos Livres fora reunido nessa oportunidade, em razão de que todos os membros estariam presentes, incluindo o Decano, cuja idade já avançada o impedia de efetuar longas viagens atualmente. E isso seria necessário à investigação das circunstâncias da morte do Rei e à possível elevação de seu filho único ao trono.

Quando a roda girou já era noite, estavam todos fatigados com o prolongado julgamento. A Gema brilhante dentro do grande globo azul flutuante fora trazida para dentro do salão. A delegação de Nicéia vinha paramentada, à frente o Hierofante com o estandarte da Escola de Mistérios da Ordem das Águas. O salão iluminou-se com as raias azuis celestiais, enquanto a área mais famosa da Sinfonia dos Deuses era executada pelo bardo Ícaros da Praia Verde.

Quando a roda parou no glifo da Ilhadura muitos não puderam esconder a decepção, inclusive Tantalus.

O Sacerdote de Ilhadura, Marcus de Nautilus, subiu no parlatório e recebeu o comando do orbe, inclinando o corpo para a audiência, enquanto seu vestido índigo e brilhante, como as escamas de um peixe refletindo a luz submarina, flamulava sobre as calças baixeiras bufantes. Seus cabelos púrpura foram atados num coque, coroado de conchas, pérolas e estrelas-do-mar, os olhos profundamente pretos e pintados de escura tisna, rebrilhavam a luz da magnífica gema.

O evento se repetiria dentro de vinte signos, quando todos retornariam à Fortaleza da Cidade do Sol. Então a roda voltaria a girar nas mãos do Decano do Conselho e a cidade que receberia o fragmento da Gema pelos próximos vinte signos seria conhecida.

Agora não era a hora da Fortaleza, mas seria, muito em breve. Era a vez de Tantalus Ágoras do Sol diminuir, já tinha feito a sua jogada. Ele sabia como obter poder. Aquele fragmento não seria nada, perto do que estava arquitetando. Um visionário, chamava a si mesmo. Apresentando seu rosto escarificado para o Conselho com uma certa dose de prazer.


O Parlatório da Propriedade

Aos ânimos foi dado tempo de acalmaram-se desde a noite anterior, houve o desfile das delegações na rua principal, saindo a gema em seu orbe à frente das autoridades de Ilhadura e sua flâmula com a rocha e a onda. Depois seguiram as festividades na cave da Escola de Mistérios do Sol onde uma patronagem inaugural foi ministrada por Edir Gramateus.

Os convivas beberam, comeram, divertiram-se ao som das baladas e riram com as trupes famosas da banda Ocidental. Depois recolheram-se aos poucos para dormir.

Na manhã seguinte, após os badalos da Torre do Sol sacudirem os Mestres na cama e depois do desjejum matinal é que foi iniciado o Parlatório Vintenal.

Os conselheiros sentaram em seus lugares, cujas cadeiras e mesas estavam dispostas em círculo. No meio da arena entre homens e mulheres, entre os sábios e todos os titulados para estarem ali, repousava o púlpito levadiço.

Muito bem organizado estava o evento, que era parte tradicional do Festival da Roda. O tema do Parlatório do signo era a Propriedade. Um tema muito polêmico para os conselheiros, cada um no seu entendimento. Naquele signo o Parlatório iria apontar a corrente majoritária de entendimento sobre a propriedade. Até que fosse votada a necessidade de um novo parlatório para rever o tema.

Depois que todos estavam acomodados, diante de seus documentos, papéis, tinteiros e gizes, o Decano entrou no salão, e foi recebido de pé por todos, que em sinal de reverência batiam seus punhos nas mesas. O Decano vestia a Toga Trabea, uma toga densa de lã de Caxemira lilás, ornamentada com riscas horizontais de cor púrpura. Era usada pelos áugures e sacerdotes decanos durante os atos rituais. Ele estava atrapalhado com todas aquelas vestes, pois o peso da indumentária já não servia para alguém tão velho como ele. Novecentos signos. Trezentos no Decanato, tinha Mestre Egídio da Guilda dos Artífices e Cientistas. Sua estatura correspondia à meio corpo de um homem e seus pés pendiam e balançavam quando tomava seu assento. Sua cabeça ficara abaixo da linha da mesa e por essa razão costumava ficar de pé, numa banqueta durante a audiência. Ele ajeitou o monóculo no rosto, abaixo das sobrancelhas felpudas e brancas. Coçou os fartos pêlos das orelhas, e em seguida fez uma mesura para a plateia, e se juntou ao Parlatório, dizendo:

-No signo da Serpente, do siglo dez mil após a escuridão, iniciamos o quarto Parlatório deste siglo. Inicialmente peço licença aos presentes para referir que na data de hoje comemoramos vinte signos da assinatura do Tratado da Aliança Libertadora, tema do último Parlatório, incluindo a moção do Sumo Sacerdote Fineas de Penhascoforte, para aditá-lo, três signos depois, na reunião Extraordinária do Conselho Clerical de Anciões na Última Vila ou Menos ao Norte, incluindo o texto da bula de ações para paz. Tal aditamento instituiu a necessidade, de que seja decretado por este Conselho o estado de Guerra Geral, para que possa ser exercida qualquer prática legítima de ato guerra. Foi engendrado este inédito e louvável requisito indispensável para legitimação de qualquer ato de guerra, barbárie e expropriação arbitrária de qualquer povo. A Aliança Libertadora foi bem sucedida, e pôs fim à implacável guerra que devastou tanto Ocidente, quanto Oriente. Extirpando a ameaça dos Kaisar do continente inteiro, trazendo paz e possibilitando a retomada do crescimento e da prosperidade de todos os povos. Tal instrumento de lei é um marco para toda a civilização dos vivos, jamais na história tinham os povos se reunido para defender e discutir o bem comum. Naquela oportunidade, se bem me lembro, ficou estipulada uma agenda, para os próximos três séculos, que eu espero poder cumprir juntamente com os Senhores, se a idade permitir.- E deu uma risadinha, retribuída pela audiência.- Hoje, vinte signos depois, inauguramos a pauta que irá tratar da propriedade, digo a todos aqui presentes que não podemos esquecer, diante do gozo das boas condições que se estabeleceram nesses vinte signos, dessa ferida tão recente, e que ainda nos dói tanto, que deve ser relembrada para ser evitada. Não podemos nos esquecer dessa dor, e do tanto que ela dói, Senhores e Senhoras, para que não retornemos nunca mais àquele estado de miséria espiritual. Não foi à toa que na última reunião do Conselho tenhamos deliberado por uma moção de honra àquele homem que nos liderou tão brilhantemente para a paz dos povos, mas, que no entanto, por uma brutalidade do destino não pode recebê-la hoje, pois já não está mais entre os vivos, tendo retornado para o lugar de onde tudo vem. Meu mais sincero pesar pelo passamento do rei Tantalus Dágoras do Sol, O Justo, O Pacificador, um homem de muito valor. Faço menção aqui também ao eminente Sacerdote Áticus de Penhascoforte, que faleceu há duas noites. Ele foi um dos fundadores deste Conselho e também da nova ordem das Escolas de Mistérios no domínio da Aliança Libertadora e da União dos Povos. Meus sentimentos aos amigos e familiares, que perda lastimável para todos os vivos! -o Decano pigarreou e desculpou-se, voltando à sua fala inicial.- Respeitáveis Senhores e Senhoras, Eminências Clericais, Nossos Senhores de todos os Povos, Conselheiros e Conselheiras que representam os seus consectários, Autoridades Seculares das Guildas, Mestres das Torres de Magia e Representantes das Ligas de Mercadores, Senhores e Senhoras das Tribos, Autoridades Militares e Acadêmicas, o tema do Parlatório, que aqui tem início, é a Propriedade. Um assunto de tão relevante importância para o desenvolvimento de todas as esferas do conhecimento. E hoje nos reunimos para ouvir as falas dos Conhecedores mais renomados sobre o assunto e ao final deliberar um entendimento comum sobre o que venha a ser  a propriedade, como devemos inclinar nosso comportamento e de todos aqueles que nos são subordinados, com o objetivo de conciliarmos nossas ações de forma harmoniosa, visando o bem e o interesse comum, num alinhamento. O legado de nossa existência pressupõe que tenhamos nascido, após vivido e então morrido. E ao viver, erigimos aquilo que será deixado para os demais, aos que aqui permanecerão: nosso entendimento, nossas façanhas, nossas projeções na construção de um mundo melhor. Tudo isso encerra a esperança de um mundo possível, para todos aqueles que virão depois de nós. Nessa constante, a propriedade assume um papel tão indissociável da construção do legado, que nem ao menos podemos cogitar deixar de discutí-la. É, no entendimento de alguns, razão e origem da Riqueza dos Povos, para outros a semente da guerra e das desigualdades. Para alguns ainda é possível admitir que ela possa coexistir harmoniosamente com a igualdade entre os vivos, se lhe forem atribuídos limites. Há aqueles que acreditam que ela não deva existir em nenhuma circunstância, de modo que a natureza não pode ser apropriada pelos vivos, o que lhes cabe é tão somente a remuneração a ser atribuída pelo resultado do seu trabalho. Conselheiros e Conselheiras aqui presentes, duas teses, dois Eminentes sábios, sumidades em suas áreas do entendimento foram escolhidos para defender as duas correntes que serão debatidas nesse Parlatório. Cada Sapiência terá uma queda de ampulheta para defender a sua corrente, em seguida os Senhores terão um tempo para discutir internamente e deliberar. Mas somente ouviremos o voto dos Conselheiros, precedido de uma justificativa de no máximo duzentas palavras no vernáculo copta, contadas pelo Maquinador de Fala, cortesia da Guilda dos Cientistas. Lembro que somente os Conselheiros terão palavra e voto. Caso todos os membros de sua casa tenham votado com o conselheiro, o voto será com unanimidade. Caso queiram acolher uma tese na sua maioria, porém com divergência interna, apreciem o voto da Sapiência, apontando o membro, ou membros, divergentes. Declaro iniciado o Parlatório, passo a palavra para o primeiro Adido: nosso anfitrião, Vossa Autoridade Clerical, Vossa Sumidade Oriental, o Alto Sacerdote da Fortaleza da Sol Edir Gramateus de Shadai.

O Sacerdote fez uma mesura, inclinando-se para o Decano, e novamente para a audiência. Vestido com a toga Candida, subiu ao púlpito e iniciou a defesa de sua tese, intitulada A Propriedade como Direito Intrínseco da Existência, Concedido aos Vivos Pelo Próprio D’us.

A areia ainda não havia terminado de cair quando fez suas considerações finais. E encerrou concluindo que a propriedade era um direito natural previsto no Livro dos Mistérios, que D’us fez os vivos para gozarem de sua livre consciência, e que nisso não havia bem ou mal, e portanto a propriedade não é boa nem má, por ser criação dos vivos. Ela é o reflexo daquilo que vivo que faz com ela o que quer, e que faz dela um desdobramento das suas ações. Se o homem é ganancioso, logo fará mau uso da propriedade. Se for bom, fará uso digno da propriedade. E por ela não possuir existência senão pelas ações dos vivos, ela não pode ser classificada como boa ou má. Mas sim os vivos que fazem com que ela exista, esses sim são bons ou maus, dentro das acepções epistemológicas desses termos, na cultura de cada povo. Encerrou com uma citação do próprio Decano, e logo foi ovacionado de Pé por todo o conselho. Foram poucos os que puseram à venda preta sobre seus olhos e permaneceram sentados. Ben Adam e Susana, entre eles.

As Eminências Clericais e os Nossos Senhores de todos os Povos, bradavam, Bravo! Bravíssimo! Os Conselheiros e Conselheiras que representavam seus povos entenderam que essa era a tese que explicava porque continuariam mantendo seus bens e suas posses. Autoridades Seculares das Guildas, ficaram divididas. As Guildas Científicas e Dos Artistas Unidos optaram por vendar os olhos. Já as Guildas dos Artífices, em sua maioria, aplaudiram, sem muito entender o teor dos fundamentos, mas concordaram que o problema residia no homem, e não na propriedade. Os Mestres das Torres e Representantes das Ligas de Mercadores, Autoridades Militares e Acadêmicas enalteceram os aplausos com acenos e arremessos de pétalas. Os Senhores e Senhoras das Tribos vendaram os olhos e permaneceram em silêncio.

Edir Gramateus de Shadai, ao descer do púlpito, foi recebido pelo seu novo Rei com um aperto de mãos e um beijo reverencial sobre o seu anel de Alto Sacerdote. E muitos levantaram-se para parabenizá-lo pela belíssima defesa.

Após os ânimos se acalmarem, foi chamado ao púlpito pelo Decano, Finéias, Sumidade Sacerdotal das Escolas de Mistérios do Ocidente, autoridade Sacerdotal à qual respondia a Escola de Mistérios da Cidade da Lua, em Harpis.

Finéias vestia igualmente a Toga Cândida, e antes de iniciar sua defesa, prestou uma homenagem, requerendo instantes de silêncio em memória do Rei Tantalus Dágoras do Sol, O Justo, seu grande amigo. Olhando para todos os presentes, com o rosto severo que era sua marca, Fineas começou sua defesa. Os cabelos negros e desalinhados, os olhos escuros e profundos. A barba farta e a voz grave, todos característicos àquele homem, o Patrono e Sacerdote mais importante da banda oriental.

Sua tese era intitulada “O Vivo como agente da corrupção pela natureza da propriedade, uma releitura do Livro dos Mistérios sob o enfoque da Teoria do Mundo Natural”. Fineas iniciou uma pausa dramática e prosseguiu:

 -Eu venho com uma tarefa que nasceu morta. É árdua. Pois vejo em seus rostos uma querela de insatisfação. As pessoas querem ter. São egoístas. -E então um burburinho tomou conta do salão. “Insulto”, alguém gritou. Fineas fez uma pausa, olhando para todos e continuou em voz alta. - Mas a minha fala aqui, ainda que eu saiba que as vendas descerão sobre os olhos dessa audiência, é uma fala para a reflexão. E tenho certeza que, ainda que não os faça mudar de opinião nesse momento, sairão com uma semente plantada no peito. E amanhã ou depois, quando a guerra bater à porta dos Senhores, essa minha fala será recordada. E muitos hão de querer voltar atrás, compreendendo plenamente o reflexo futuro dos votos de seus conselheiros hoje. E nesse momento já estarão mudados, e meu objetivo terá sido alcançado. Quero aqui, à partir de agora, tentar convertê-los ao entendimento de que a propriedade é um fato social que causará o colapso da civilização. Partindo do pressuposto de que os vivos passaram à existência, tal qual tudo que possui volume, matéria e age no tempo, e por isso estão em igualdade no Mundo Natural com as demais coisas, é que o ato de apropriar-se fica vinculado à sentimentos hedonistas, de autossatisfação. E apropriar-se de algo, é arrebatar-lhe a vontade e a autonomia. Assim sendo, vêm os vivos e se apropriam do que querem. E se os próprios vivos estão em patamar de igualdade pela Teoria do Mundo Natural com as demais coisas, logo o ser humano como obra do mundo natural também pode ser apropriado pela lógica dos vivos. Pensamento esse que legitima a existência da própria escravidão, que foi abolida recentemente, numa votação apertada no Primeiro Parlatório deste Século. A teoria da Propriedade defendida pelo Alto Sacerdote que falou anteriormente, diz que o vivo pode apropriar-se daquilo que lhe aprouver, porque a propriedade não possui valor senão aquele que lhe é atribuído pelo próprio vivo. E eu concordo com meu convivas nesse sentido. Tanto é verdade, que a prova maior disso é a própria escravidão. E quando uma coisa que não tendo valor em si, somente aquele que lhe é atribuído pelo vivo, é ser considerada inofensiva, mesmo existindo a possibilidade de dar margem a uma coisa tão execrável quanto o confinamento humano e de todos os outros povos, abre-se excepto para legitimar a iniquidade. Senhores, referendar a livre propriedade é deliberar sobre o fim da autonomia dos povos, é legitimar a desigualdade entre os homens, a fome, a guerra, a própria escravidão. Porque se a propriedade não é boa nem má, porque o homem não é bom nem mau, não é que se deva referendá-la porque dela não se extrai coisa ruim em seu estado natural. Mas, esse parlatório é porque deve-se proibí-la, em razão de que na gênese de sua concepção ela nasce com a possibilidade de que em seu nome sejam feitas as maiores atrocidades que os vivos são capazes. Senhores todos nós, que dividimos a existência nessas circunstâncias que nos colocam em par de igualdade ideológica, temos o mesmo direito de gozar a existência. E quando percebemos isso, se torna nossa obrigação moral diminuir as diferença, fazendo da propriedade um bem possível a todos em pé de igualdade. E ainda, se quisermos todos, exercer nosso direito de propriedade, iremos extinguir nossos recursos vitais, levando ao colapso da vida e da própria civilização. Iremos lutar entre nós pelo domínio dos recursos, depois pelos mercados e por fim, pelo lucro. Devemos substituir a propriedade pelo bem comum. Remunerando o vivo pelo seu trabalho, que é o fruto natural daquilo que dele vem. Não podemos mais consumir esse mundo, devemos dar a ele o nosso labor. Trabalhar a terra, estender a existência, como nos foi dito por inúmeros sábios, desde o tempo da escuridão. Não há obrigação moral outra senão a de perpetuarmos o mundo e o nosso próprio legado, o que só pode ser alcançado através da propriedade como bem comum dos vivos, atribuindo à propriedade não um sentido individual, mas coletivo e de colaboração entre os povos. Agradeço a atenção de todos os que pacientemente me ouviram.

Poucas palmas surgiram de seus interlocutores, que se ergueram para manifestar apoio ao Sumo Sacerdote. Uma maré de rostos vendados se espalhou pelo salão, quebrando o coração de Fineas, muito embora o resultado já fosse sabido.

No máximo vinte rostos, dentre as duas centenas que ali estavam, olharam nos olhos do adido, concordando no seu íntimo com as palavras ditas no púlpito.

Tantalus Ágoras prestou atenção em todos aqueles rostos, pedindo ao Preletor que anotasse o nome de seus donos na folha à sua frente.


Os homens duros dos Salões de Jade

Fineas acabara de encontrar Ben às escondidas na biblioteca da  Fortaleza onde tiveram uma conversa longa e sussurrada na qual a Sumidade Oriental expôs sua convicção de que Tantalus ferira de morte o Rei Dágoras. Apesar do julgamento com a presença do Mestre das Verdades, Fineas insistia em uma conspiração para o regicídio. O homem lúcido não arredava o pé do pesadelo do qual Ben Adam queria se afastar. Ben sentia a dor no peito e o ressentimento sobre o misterioso afastamento de Dágoras e como ele passou a considerá-lo como um estranho. Conjecturava que há muito Dágoras sucumbira diante um processo de paranóia recrudescente sobre uma fantasia envolvendo uma traição capitaneada pelas Escolas de Mistérios (da qual somente ele suspeitava). Apontava seus fiéis amigos e companheiros de guerra como supostos usurpadores e insinuava que agora detinham para si o poder exercido pelas escolas, o usando para governar nas sombras. Ben não pôde deixar de lamentar profundamente por tudo, afinal fora ele mesmo, junto de Atticus, Edir e Fineas que sugeriram uma reorganização das escolas, ditando toda uma nova doutrina escolástica com a revisão do conteúdo dos ensinamentos, concretizando a unificação da instituição e a reorganização da hierarquia sob o comando da Fortaleza e de Harpis, canonizando a ordem monoteísta como oficial.

Com tudo isso, restou pensativo e relutante porque de todos Ben era o único que nunca tivera a certeza de estar fazendo a coisa certa. Ficou prostrado por uma sensação de falha, um desconforto que o combalia como nenhuma outra coisa jamais fizera. Teve a sensação persistente de erro e culpa, e então lembrou-se de quando deixou Harpis às pressas,  tão logo soube que seu pupilo seria enviado pelo próprio pai para estudar nos salões duros: Ben Adam mandara preparar uma balsa para sua travessia. Decidiu ir à Fortaleza, do outro lado do Veio de Ouro, tirar satisfações com seu velho amigo, o Rei Pacificador.

Naquela noite uma fina esperança ainda resistia fraca no coração de Ben, de que seu velho amigo o ouvisse, evitando a partida prematura do filho, que estava prestes a seguir o caminho sofrido dos homens dos salões antes mesmo de completar seis signos. Sabia que após a morte da esposa, o amigo e Rei Dagoras, abraçara-se a um sombrio distanciamento, e uma cor cinza lhe caiu sobre o olhar. A preocupação que nutria com o filho fora trocada por uma desídia. E uma causa desconhecida o tornara resistente aos apelos da criança. Não o queria por perto, mas sim distante, uma ojeriza crescente e aparentemente sem explicação. O fato foi que o mandou para longe dos olhos, tanto quanto da alma já estava. E as mãos de Dágoras não tremia mais como no início da paranóia e foi afundando cada vez mais em sua própria mente, cercado por uma muralha intransponível de pensamentos.

Mas Ben Adam ainda acreditava que o pequeno Ágoras com suas fitas verdes brilhantes, tal qual a mãe, pudesse quebrar o rigor imposto pelo coração severo e endurecido do seu pai. Fazendo com que ele voltasse a ser o homem de outrora. Que aquele laço pudesse renascer, restaurando a um homem, a uma família, a um reino. Então trabalhou junto aos dois para resgatar esse vínculo, conquistando ainda mais o repúdio do Rei para consigo e com o menino.

Desceu do barco antes que ancorasse, naquela noite em que soube sobre os Salões, lançou-se nas águas impaciente,  foi adentrando determinado e direto como um vento nos aposentos de Tantalus Dágoras, balançando a toga cândida e ignorando os guardas. As portas voaram para trás e estouraram na parede ecoando um baque no quarto de pedra mal iluminado e úmido. Mas o Rei permaneceu imóvel, iluminado pela luz vermelha das chamas que admirava do fundo da sua cadeira de madeira de ébano.

O Bardo o interpelou, como quem quer satisfações: “Os Salões de Jade? Francamente!”

O Rei permaneceu em silêncio, com seu rosto severo, ignorando completamente o amigo e Rei da Cidade Gêmea de Harpis:

-De onde veio tal idéia, tamanha insanidade?- cobrava Ben, realmente muito exaltado.- Penhascoforte, Solar das Laranjeiras, Vaudeferro, até Passo da Balsa! Mas Salões de Jade… Inacreditável! Você poderia tê-lo mandado para qualquer Escola de Mistérios, Dágoras. Qualquer uma o acolheria, como acolheriam a você. Miriam de Tocaspretas implorou para recebê-lo! Parminedes, em diversas ocasiões deixou claro que gostaria de levá-lo para o centro de estudos das estrelas. Mestre Agenor, o queria para que o auxiliasse nos assuntos do Decanato. Até Vaudebaixo manifestou mais de uma vez o prazer que seria ter Ágoras na corte e patroná-lo nas Ciências da Administração Geral e da Política. Fineas, ele o queria muito e como o ama! E ele já sabe desse desatino? Ah! Meu coração está quebrado!”

Então, Dágoras emergiu do silêncio e falou, com um indiferente distanciamento: 

-Mandei com ele Trinta Preletores, escolhidos a dedo por mim. Nenhum Patrono nem clérigo os apontou. Quero longe a você e ao Alto Sacerdote da Fortaleza do Sol. Foram seis pajens, duas serviçais, dois Prestantes e dois meninos de sua idade, Goim de Solar das Laranjeiras e MIguel Tocaspretas, para que não se sentisse sozinho. E não será por muito tempo: dez, doze signos talvez. Ele não podia mais ficar aqui… Não sei mais se Fineas e os Patronos da Lua e do Sol seriam uma boa influência, afinal. Todos os  servos de D’us têm muito mais poder do que deveriam nos dias atuais. Os Reis minguam e resumem-se a acatar os conselhos dos Sacerdotes, o que deixa claro que os homens de fé acabaram por comandar os reinos por via transversa. Mas não se assuste, no final do verão de cada triênio, um barco sairá de lá, para que o menino venha passar alguns aniversários comigo. Então, ao final, ele retornará. Mais forte e mais sábio que eu, que me tornei fraco e cego, obliterado pelo poder de vocês Sacerdotes.

-O quê? Onde está o teu juízo? Nós não apenas o temos em alta estima, o amamos, exatamente como amaríamos a um filho. Ele é o herdeiro do pacificador! Veja Dágoras, seu único filho se vai para o outro lado do continente, sozinho, depois de tudo o que aconteceu. Ele deveria ficar ao lado do pai! De amigos, de pessoas que o amam! Esqueça essa paranóia de golpe e traição, eu não sei o que houve, mas temo que tenha perdido completamente o juízo após a morte de Rejane.”- persuadiu Ben, sem sucesso.

Mas o Rei se fechou, e retornou a um silêncio inquebrável. Passando o atiçador sobre as chamas, de lado para o outro, até que o Sacerdote o deixasse. Manteve o mesmo isolamento, um silêncio cultivado ao longo dos signos restantes.

Ben ainda relembrou de sua peregrinação numa certa época, desesperado para ver o menino foi calhar nos Salões de Jade onde acabou sendo proibido de ver o príncipe. Retornou para Harpis com o coração partido e as sandálias gastas.

E quando recebeu notícias de Finéias de que esse trouxera o jovem dos Salões em definitivo foi tão rápido como o vento tomar a balsa, mas ao chegar na Fortaleza foi totalmente ignorado. Ágoras não o recebeu nos primeiros dias, e quando o fez estava na presença de Edir, que lhe mantinha a mira fixa, de um canto do aposento real.

Então deixou a Fortaleza arrasado e com um pesar irremediável, com o acúmulo da culpa que os signos lhe infringiram. Não havia remédio para aquilo, um terrível erro fora cometido e custou a felicidade, o amor e a saúde da mente do jovem príncipe, assim como custou a do pai.

Depois tudo aconteceu, com o Rei e consigo. E hoje aqueles sussurros eram necessários e lhe doía mais que tudo agir assim, talvez seu íntimo gritasse que aquilo que não era o certo, mas certamente tratava-se do que era necessário. Com o peito apertado lembrava dos erros passados que o levaram até àquele momento, onde teria que responsabilizar o jovem injustiçado por tudo que ele mesmo falhou em fazer.

O Circo das Facas

Tantalus Ágoras aparentava exasperado e com um brilho no semblante  naquela noite, e apesar das ocorrências recentes em relação ao seu pai ele tivera tempo e disposição para organizar um grande Festival da Roda: feiras de comércio nas ruas, tendas de liturgias, dançarinas, mágicos e pantomineiros e o espetáculo principal que consistia numa exibição do Circo da Facas, montado na arena aberta para todos os nobres e visitantes apreciarem.

Estava sentado à mesa em posição privilegiada de onde podia ser visto e ver a tudo. Todos os rostos tremulando ao sabor do calor do fogo das tochas, das lamparinas e lanternas.

Muitos archotes iluminavam a arena porque aquela era a noite que antecedia o Havdalá, quando as pessoas são espremidas pela escuridão e não resta coisa a se ver além de onde o fogo alcança. Apesar disso Havia festa, risadas, bebidas e uma grande fogueira, em meio à noite mais escura. Por mais limpo que estivesse o céu, por mais amena que a noite estivesse, havia agitação incomum, um prenúncio desarmonioso se perdendo entre sorrisos embriagados e aos pesares da perda prematura, a noite mais escura mexia com os brios, com os medos, com as dores e as alegrias, era o momento onde tudo se apagava e parecia esborrachado.

A despeito de tudo, o novo Rei divertia-se bebendo, conversando com seus convidados como nunca fizera. Depois da noite do Conselho Clerical passou a usar uma máscara no rosto, muito simples e feita em couro, para ocultar e proteger os ferimentos.

Fazia questão de exibir-se como o homem educado que era, apesar de sua inclinação para evitar toques e gracejos das pessoas.

Jamais apertava a mão de alguém sem que a sua estivesse enluvada e em nenhuma ocasião oferecia companhia a uma dama, preferindo manter distância das moças que lhe cercavam. Seus interesses giravam em torno da História da Guerra, estratégias militares, negócios como o comércio ou ainda alianças políticas. Nunca fora visto galanteando qualquer cortesã, tampouco nas histórias que vieram com ele de além do Carabeus. Tão somente dizia-se que era um prodígio estrategista, bem como um violento oponente com os punhos nus.

E o mais estranho no comportamento do Jovem Governante era o que se dizia dele sobre ficar durante longos períodos encarando as chamas nas centenas de lareiras espalhadas pela Fortaleza. Não foi à toa que mandou que fosse construída uma fogueira do tamanho de doze corpos, encimado por um sol finamente esculpido em madeira e alabastrino untado em óleo.

No início das festividades vespertinas acendeu a chama ele mesmo. E a luz de todo aquele fogo iluminou os espaços, afugentando as escuras vagas que precediam o Havdalá:

-À estrela maior da manhã, meu pai, Tantalus Dágoras do Sol. Que essa fogueira queime tanto quanto a chama da glória que se perpetuará em meu reinado.- Pronunciou ao acender a pira.

Mas naquela noite ele estava especialmente alterado, ria muito e alto, visivelmente desestabilizado.

A filha do Nobre Mercador de Saigão fez uma aproximação  sussurrando algo em seu ouvido, quando estava cercado por seu novo Mentor Edir Gramateus de Shadai e por alguns Nobres que vinham lhe desejar êxito na governança. Após o quê a jovem lhe sorriu com malícia e muito atrevidamente. No entanto a atitude o deixou sério e sem reação, tirou-lhe o riso do rosto e fez com que fosse ignorada de forma severa, causando-lhe grande constrangimento.

Por fim, os fogos a estalar em meio à escuridão do céu anunciaram a chegada do espetáculo. E todos se acomodaram para apreciar a atração circense, assim que o cerimonial a anunciou.

Um homem com uma longa capa e capuz negros, carregando uma tocha numa mão e um cetro na outra, caminhou lentamente até o centro da arena. Muitos cochichos e interjeições de ansiedade foram ouvidas na plateia atenta. Lá no meio ele cravou o cetro:

-E se houvesse um homem capaz de evitar a morte?- Disse o ator, numa pergunta retórica.- E se esse mesmo homem não pudesse ser morto por qualquer faca ou arma feita pelos vivos? -Naquele momento um homem de cabelos vermelhos, uma criança e uma mulher muito alta, saíram debaixo do manto que protegia o interlocutor. Seus corpos estavam completamente pintados de branco. - Na noite de hoje todos os presentes testemunharão em vivo, as habilidades dos maiores especialista em armas brancas de todo o oriente.- Ele colocou a tocha em um suporte próximo.

Três músicos acompanharam a apresentação, um no tambor, um na gaita e outro no na rabeca.

Os artistas trouxeram para dentro da arena um aro de aço de meia envergadura. Exibiam-se fazendo contorcionismos, enquanto o homem encapuzado retirou facas de suas mangas as cravando ao redor do aro de forma que as lâminas ficassem viradas para o centro. Os contorcionistas, arremessaram-se através do círculo, sem sofrer qualquer injúria. E foram muito aplaudidos. Antes de retirar as facas do aro, o apresentador desenrolou uma longa fazenda de seda de seu punho, e desencaixando as facas, as deslizava suavemente pelo tecido, que ao menor toque rompiam, provando que estavam muito afiadas.

As palmas intensificaram. O círculo foi retirado e uma caldeira de ferro com rodas foi levada para a arena. Debaixo da escuridão do capuz, surgiu uma luz, então uma pequena esfera de fogo flutuando no ar atingiu o tonel. Um baque surdo, seguido de uma explosão. A caldeira estava em chamas. Uma das contorcionistas puxou diversas lanças com pontas finas debaixo do manto do ator. Cada qual mergulhou a sua dentro do tonel e elas rapidamente pegaram fogo. O apresentador abriu a boca e pegando uma lança por vez as colocou goela adentro. Engoliu o mesavaléria

equivalente ao tamanho de um braço, extinguindo as chamas.

Foi ovacionado.

Tantalus levantou-se da cadeira maravilhado com as chamas.

Após, o artista fez o mesmo com as facas que pusera dentro das mangas.

Muitos aplausos, principalmente do Rei.

E a apresentação evoluiu, até seu ponto máximo. Uma roda de madeira foi trazida para o centro da arena. Uma das atrizes estava presa ali, pelos pés e pelos punhos, de ponta cabeça. Várias facas já haviam sido atiradas, e todas evitaram o corpo da mulher.

O atirador pegou a tocha e se dirigiu à grande roda, colocando fogo nas suas bordas. O anteparo foi impulsionado e começou a girar. O artista se afastou, e incendiando as facas, as arremessou, uma a uma, enquanto a mulher girava muito rapidamente.

A plateia levantou-se para aplaudir o atirador, que precisamente cravou as facas longe do corpo da mulher. E ele devolveu com uma reverência, enquanto rumava à grande roda, parando a estrutura. Demonstrou que a jovem estava ilesa. 

No entanto, foi surpreendido quando Tantalus pulou a mesa e correu em direção à arena. Segurou a mão do Homem e a levantou, pedindo mais aplausos do público. E foi conduzindo o artista na direção do tonel.

Depois de algum tempo, enquanto o Rei acenava para baixo, pediu a atenção de todos.

Fez um gesto dobrando o tronco com o braço à frente, como se estivesse se apresentando ao público. Imediatamente mergulhou uma faca no óleo, que tirara muito rápido da manga do artista, arremessando-a com força e velocidade na direção da mulher. Um grito estridente: a lâmina lhe entrou com força na perna, mas ainda estava em chamas, e ela se contorceu, tentando livrar-se das amarras. O Rei se dobrou em risos, com a mão na barriga. 

Os outros atores tiraram a mulher do anteparo, e a moveram na direção de um Sacerdote que vinha ampará-la.

Milhares de olhos atônitos brilhavam sob a luz das chamas, acompanhados de expressões de horror e incredulidade. A plateia, como se aquilo fosse um novo espetáculo, vaiou.

O rei continuou rindo, ignorando total e complemente as reações da assistência.

O apresentador que estava ao lado de Nosso Senhor, fora esquecido. E ninguém reparou que ele puxava da parte superior do cetro que cravara no chão uma adaga fina e de um metal verde brilhante.

E pelas costas do Rei, o estocou.

Gritos por todos os lados, e uma convulsão entre o público. Pessoas imediatamente começaram a se deslocar.

A lâmina atravessou a armadura, houve o som do aço com aço e depois das carnes rompendo, como se cortasse uma manteiga. Seus dedos ainda tocaram a ponta afiada e verde brilhante que saía pelo seu ombro esquerdo. Sem entender, afinal, o que havia acontecido. Antes de cair, ainda virou-se para mirar o algoz, porém ele desapareceu no ar depois de puxar a adaga, deixando as vestes vazias no chão da arena.



O Banquete da Roda

O Banquete da Roda estava iniciando, ainda que ausente o Rei; recuperava-se do ferimento da noite passada.

Ele mesmo deixara instruções, entre  gemidos e desmaios, de que as festividades não fossem canceladas.

Mandara reforçar a segurança, e fizera uma aparição breve, estimulando que todos se divertissem e aproveitassem o banquete. Estava terrivelmente pálido, e pronunciara apenas algumas palavras antes de voltar para seus aposentos.

Não fosse o socorro prestado pelo Sumo Sacerdote Fineas, estaria morto. O homem certo, no lugar e na hora certos.

Fineas desconfiara de tudo o que acontecia desde a morte do amigo, a idéia da conspiração crescia em sua mente desde que vira o ferimento no rosto do príncipe: um soldado de jade praticamente abatido por um ladrão. O sacerdote conhecia muito bem as habilidades militares dos homens de jade, não fosse por eles terem se juntado às hostes de Dágoras, a guerra teria sido perdida. Mais ainda veio a desconfiar quando as atitudes do recém Rei foram absolutamente contrárias a tudo que estava estabelecido, pronto a derruir tudo que se construíram ao longo dos signos. É claro que o Sacerdote Fineas não guardou isso para si, trouxe a desconfiança ao círculo interno de aliados. E quando curou o rapaz, foi interpelado mais tarde por Varr Bar, do porquê curara, já que se mostrava claramente uma ameaça à paz. Fineas , pensara em responder que essa era sua missão divina ou que aquele era o filho de seu grande amigo, mas ficou em silêncio, refletindo. O grande esteta Giovane de Tri Vontela lhe dissera certa vez que escolher o mal menor, em certas ocasiões, representa sabedoria, pois escolher o bem pode selar o destino de um mal muito maior no futuro. 

Talvez, Varr, tivesse razão. Se o homem viesse a se tornar um Senhor da Guerra, talvez tal ato iria provocar a morte de muitos no futuro. Poderia com isso ter corrigido um grande erro que cometera muitos signos atrás, mas prefirara não seguir o conselho do esteta, deu ao jovem uma chance, de viver e mudar, afinal Fineas havia pensado muito nas respostas que encontrou na sua viagem e como o destino é uma escolha, o puro exercício do livre arbítrio.

Susana se desviara dos que vinham ter com ela, deixando com muita descrição o salão e seus convivas. Pedira ao guarda pessoal do Rei que lhe facilitasse uma visita, com vistas a utilizar suas habilidades de cura em benefício do Nosso Senhor.

O guarda foi duro. Porém, o Preletor se aproximou, conduzindo-a à ante-sala privada do Rei.

Ele entrou, e, rapidamente, a porta se abriu.

Tantalus Ágoras estava na cama, com uma mordaça na boca, enquanto dois sacerdotes aplicavam emplastos no ferimento.

Ela se aproximou, tentando afastar os pensamentos vacilantes. Alternava a determinação e culpa. Porém o ímpeto de que alguma coisa deveria ser feita retomou à vista de Susana, a chama de sentimentos ardia. Pensou em algo, uma oportunidade de ficar sozinha com ele. Pingar misericórdia dentro no ferimento.

-Senhores, o que há nesse cataplasma? Ela remexeu entre as vasilhas que estavam sobre a mesa vestal. Um é tançadeira, o outro é beladona, para acalmar Nosso Senhor, disse Hermínedes. Mas já lhe ministramos outros elixires, para prevenir que enfraqueça.

-Não,- disse ela-, é necessário interromper o escurecimento. Fazer a selagem com fogo, para evitar morbidez.

Tantalus Ágoras se voltou com desespero, ao ouvir a Sacerdotisa. Grunhiu, sacudiu a cabeça.

-Me dê a espada dele. O Sacerdote acenou para o Preletor, que foi até a parede e lhe trouxe a arma, conforme ordenado.

Susana segurou Raio de Sol, uma espada pesada, com dificuldade, forcejando os músculos do antebraço para erguê-la. Colocou a ponta no fogo da lareira. E dando as costas para os demais, escorregou o minúsculo frasco de misericórdia da faixa em sua cintura. Umedeceu a ponta dos dedos e muito rapidamente o pôs de volta no lugar. Ficou ali, observando a imagem da espada se distorcer no calor das chamas.

Quando a extremidade ficou vermelha, presumiu que a espada estava quente o suficiente.

Remexeu o ferimento com a mão, pedindo que todos o segurassem com força, e colocou a lâmina sobre a injúria. Tantalus estremeceu, suas veias saltaram no rosto vermelho e o rapaz gritou muito alto antes desmaiar.

Susana repousou o cabo da espada na sebe da lareira, e foi até o Rei. Onde rezou. Com muita sinceridade, pedindo perdão a D'us pelo crime que cometeria. Ela levantou com os olhos cheios de lágrimas. E passou as mãos sobre as vistas, acidentalmente. Não pôde sequer esfregar os dedos sobre a ferida, não houve tempo. O mundo girou sobre o gosto que lhe desceu na língua.

Hermínedes ficou compadecido de Susana. E insistiu em acompanhá-la até o salão, sem saber o que ocasionara o mal súbito.

Já no meio do caminho suas mãos ficaram trêmulas. E seu estômago começou a embrulhar.

Suas pernas perderam a firmeza, tudo escureceu e seu corpo rodopiou na direção das escadas.


A cerimônia do Havdalá

O banquete seria servido, mas não antes da cerimônia da chegada da luz, recitando o Havdalá.

Todas as luzes foram apagadas. E somente três velas permaneceram acesas. Então todos os convidados elevaram suas taças às alturas, e recitaram em Bo:

D'us é minha salvação; a escuridão não temerei, pois o Eterno é minha força e canção, e se de lá eu vim, para lá retornarei. Portanto, beberemos à salvação da luz dessas estrelas, e no dia da escuridão, lembrarei sempre que ela não é o fim, mas um eterno recomeço. A escuridão é nossa fortaleza, para toda eternidade. Louvado é o homem que confia em Ti. o Eterno. Responde-nos, ó Rei, neste dia em que chamamos, se para os vivos há luz, alegria, júbilo e glória?

Mas o Rei não estava ali para responder. Então o Sacerdote Fineas emendou: “Sim, enquanto estiverem sob minha proteção e bebendo em memória de D”us.”

E todos ergueram seus cálices e beberam juntos.

E quando as lamparinas foram acesas o banquete foi posto nas mesas.

Hermínedes, que se apressava arrastando as chinelas de couro e o dorso velho e cansado, exitante, aproximou-se de Ben Adam de Quran e falou algo em seu ouvido. Após o quê seguiu gesticulando com muita ênfase, em meio ao alvoroço pôs o bardo a deixar o salão com pressa em direção às escadas na ala oeste.

No quarto do próprio Herminedes deitaram Susana na cama. A Sacerdotisa tremia muito e ao chegar, Ben viu que seus olhos, lábios e o interior da boca estavam azulados. Um cheiro característico exalava da garganta, estava gélida e inconsciente. “Misericórdia”, pensou o Bardo. Talvez não haja mais tempo.

-Acônito. -Ele pediu à Herminedes. -Dê-me acônito.

O Sacerdote arregalou os olhos. E moveu-se, indeciso e desajeitado, de um lado para outro, lembrando-se onde colocara sua caixa de antídotos.

-Acônito, acônito, acônito,.. -repetia. - Aqui está: Aconitum.

Ben verteu o frasco na boca de Susana. E alcançando-o vazio para o bardo de Saigão, perguntou, com uma sombra no rosto:

- O que aconteceu?

-A Rainha, ela caiu, assim, de repente, no corredor. Estive com ela o tempo todo, ajudou a tratar Vossa Majestade da Fortaleza do Sol. E depois saímos dos aposentos reais e ela passou mal…

Então os dois fizeram silêncio e chegaram à mesma conclusão juntos. Ben Adam fechou os olhos, compreendendo a situação.

Hermínedes recuou. Indo em direção à porta.

-Não vá. Disse Ben.

-Mas o Rei… -gaguejou o Sacerdote de Saigão.

-Dê-nos uma vantagem. -ele pediu.

O Sacerdote assentiu com a cabeça. 

-Esperarei que ela recobre os sentidos. E então vocês deverão partir. Vou me reportar à Edir Gramateus de Shadai, tão logo saiam. Isso se não descobrirem o Rei antes, nesse caso não poderei fazer nada. Não sou um conspirador.

-Obrigado!- disse o bardo.

Ele deitou Susana na cama, e tomou um jarro com água que estava na cabeceira. Orou alguns instantes e iniciou um canto lamurioso com as mãos imersas.

A água começou a fluir para fora do jarro, envolvendo lentamente Susana. Ele regeu seus movimentos como um maestro, conduzindo ambos pela janela. Hermínedes acompanhou os dois sumirem na noite com muito pesar.

O velho Preletor pegou o frasco vazio e escondeu dentro do seu baú, bem longe dos seus antídotos.

Então se recompôs e foi na direção da porta, avançando para os aposentos do Rei. Tudo estava calmo, só foi conferir. Tinha ele mesmo ministrado o acônito para Tantalus Ágoras, minutos antes da Sacerdotisa entrar. Afinal pensara que ela não seria tão pouco prudente, colocando as mãos nos olhos. Sentia o cheiro de misericórdia à milhas de distância: já entra queimando, sem nem mesmo ter entrado ainda.

Hermínedes não planejara aquilo, ficou surpreendido e decepcionado com os antigos colegas e Patronos. Então pensou durante muito tempo o que faria diante aquela revelação. Suas mãos tremiam e apesar de saber que não era misericórdia, mas só por via das dúvidas, tomou um gole de acônito antes de pegar caneta e papel.


Uma carta sobre misericórdia

O papel absorvia o óleo muito rapidamente, se espalhava nas ranhuras da folha, fazendo crescer ramificações aleatórias, fractando-se em diversas e caóticas direções. Edir pensou que talvez não fosse possível prever como e quando aquele papel ficaria totalmente intumescido  pelo óleo, mas sabia que ficaria, e o modo como ocorreria pouco importava. Talvez funcionem assim as profecias: são alheias ao meio e atentas aos fins. Divagava.

As letras iam borrando a assinatura do subscrevente, misturando a tinta e pintando a bandeja que a segurava.

Então ia a luz bruxuleante da vela dançando sobre a superfície do óleo enquanto observava.

O cheiro de Susana lhe invadiu a mente. O cabelo da Sacerdotisa tinha um cheiro naquela noite no acampamento, que impregnou eternamente os sentidos de Edir, isso foi quando ficara cuidando dos sérios ferimentos que a então aprendiz de mistérios sofrera em batalha, após o jovem mestre à época ter evitado sua morte pela lâmina sombria do inimigo.

O peito comprimia tudo naquele instante, diminuindo os espaços até o corpo daquela mulher que aprendera a admirar e por quem deixaria tudo e perderia tudo. Quando abriu os olhos o Mestre a estava olhando e acariciando seus cabelos. E os olhos da jovem retribuíam o seu olhar e caminhavam pelo mesmo espaço curto até o calor de seus corpos, até a batida curta de seus corações. O momento de silêncio os guiou até o toque úmido de seus lábios, sob o calor das chamas de si. As estrelas que cintilavam na noite não podiam contê-los, o pungente toque das suas peles era febril. Havia a ânsia do amor novo e do encontro perpétuo de duas almas desesperadas, na inquietude e na vontade, sobretudo pelo acirramento das emoções que causa a guerra. O valor dos sentimentos puros que nutriam um pelo outro tornara-se cristalino e nada mais precisava ser dito. Tiveram aquele momento que jamais pôde ser arrebatado da memória de ambos e que reverberou num arrepio da espinha de seus guardiões. Tiveram um ao outro dentro da noite, como se nunca fosse acabar. Mas acabou e então, com o sol, veio o rugir dos cornos de guerra e as hostes se levantaram para a batalha. Pensaram que suas vidas seriam resumidas àquele momento e que viveriam nele por toda a eternidade. Edir e Susana se separaram, mas reencontraram-se em meio à lama de sangue da Batalha do Fim e prometeram unir suas almas na paz, a qual planejavam plantar através do suor da guerra. Para isso seria necessário separarem-se ainda que por um breve momento, para que depois pudessem ficar juntos para sempre.

Então veio a dureza dos trabalhos, um após o outro nos campos inimigos e amigos e depois que tudo encerrara estavam em partes distantes do continente.

Mandara o amigo Bardo avisar Suzana que o encontrasse na Fortaleza, na coroação de Dágoras, quando fariam seus votos diante o Templo que o edificara.

Quando chegou o momento do reencontro, veio uma carta que lhe destruiu a alma e em poucas palavras Suasana não era mais sua.

O fim de Edir veio com aquela carta, tal qual essa que estava diante de si, encharcada de óleo e que falava sobre essa mesma mulher.

Aproximou a chama da bandeja com cuidado e ficou observando o fogo consumí-la.

Afinal essa profecia era possível: saber que o fogo devoraria as palavras nela contidas, evitando uma revelação devastadora, mas que ainda assim, seria descoberta porque era inevitável. Parecia sentir a predestinação dos fatos afinal, embora o amor que ainda sentia o levasse a evitar o causídico.

Assim, o calor das chamas foi diminuindo, até devorar a assinatura do delator e a luz amarelada foi deixando de refletir nos olhos e nas lágrimas de Edir, procurou se recompor antes de voltar à câmara do torreão direito, deixando as cinzas e a mulher no passado, um lugar de onde jamais deveriam sair.



Nosso Senhor da Fortaleza do Sol

-Os Senhores já conheciam os Jardins de Pedra da Fortaleza do Sol?”- Tantalus Ágoras chegou com um entusiasmo curioso interpelando os convidados que encontravam-se sentados à sombra de um pergolado de pedra coberto com um linho branco. O vento batia gentilmente nas sobras do tecido, fazendo-o vagar de um lado para outro. A mesa de desjejum, de três corpos de comprimento, era farta. Uma variedade imensa de frutas Ocidentais e Orientais. Leite de amêndoas, carne de carneiro, Tamargueiras os circundavam. Havia dois criados servindo os seis convidados. E mais os guardas pessoais do Rei. Dois prestantes abanavam os convivas, para afastar insetos e o calor comuns na região naquela época do mês. Os jardins ficavam no terraço do castelo.

O Jovem Rei, com uma simpatia incomum, começou um diálogo com os convidados: 

-Senhores, estamos a uma altura de cerca de sessenta corpos da linha do rio. À frente, antigamente, ficava a ponte da aliança, que ligava a cidade gêmeas de Harpis à Coptset através da Fortaleza do Sol. - Agoras levantou-se um pouco da cadeira para apontar na direção do Templo da Lua - A ponte já não existe desde tempos imemoriais, exceto pelos seus restos, que jazem no leito do rio. Então essa Área foi toda readaptada pelo Rei Tantalus Mágoras do Sol, meu consanguíneo. No sexto reinado da Dinastia, foram trazidas pedras das cadeias montanhosas que os Senhores veem ali: o corredor dos Chacais. E também, do deserto ao sul, através do rio foram trazidos esses megalitos; as mesmas fundações que ergueram os decadentes aquedutos de Harpis, para compor os elevados desse Jardim. Neles foram esculpidos doze lagos, apresentando o maior, oito corpos de largura. Cuja água é trazida até aqui através de um complexo sistema de engenharia de êmbolos, e com o emprego de bombas movidas a tração animal. Dois lagos com exemplares de raros de Kolbis não bípedes, pássaros de diversas regiões e uma extensa composição de flora, disposta de forma muito interessante e com grande valor de beleza. Depois de todos essas gerações minha família tem aperfeiçoando essa construção. E hoje os senhores aqui estão, desfrutando essa vista privilegiada. - Tantalus pegou uma maçã e a mordeu, se colocando à frente da mesa e de costas para tudo aquilo. - Assim como minha família aperfeiçoou esse paraíso eu estou aqui como o legado da força militar e estratégia política fornecido pelo refinamento do sangue da minha linhagem, de gerações e gerações. Fui treinado por Mestres de excelência nas artes da guerra e da política. Eu os trouxe aqui hoje para que possamos falar justamente sobre as relações entre nosso territórios. Como os senhores bem sabem patrocinei a promulgação do entendimento majoritário da Lei de Propriedades. E vou possibilitar que em breve seja revogada a lei da paz, instituída pelo Tratado da Última Vila Mais ou Menos ao Norte para Ações de Paz, que impede atos de guerra dos povos quando o conselho Clerical é o Conselho dos Povos Livres não deliberar pelo estado Geral de Guerra. -Var Jotum coçava a longa barba trançada com óleo de baleia, enquanto exibia a sua feição de contragosto - Vejam que somos dominados pelas entidades religiosas, pelos Conselhos, Guildas, Magius entre outros. Nós, Senhores Governantes, temos nosso poder limitado a todo instante pela atuação das forças clericais. Meu pai pouco antes de seu passamento revelou a mim e a seu conselheiro Edir que tinha pleno conhecimento de uma conspiração das escolas de mistérios para engendrar um golpe à sua soberania, instituindo uma era tirana regida pelo poder religioso à serviço de interesses jusnaturalistas. Vejam que esses Patronos nos dizem no que acreditar e como devemos estabelecer nossos costumes. Ordenam como nosso povo se comporta, como, quando e quanto custarão as taxas, serviços e impostos. Tabulam a remuneração mínima pelo trabalho do vivo. Ficamos completamente paralisados por todas as regulamentações que essas entidades nos impõe. Nós possuímos trigo, possuímos água, ouro, minérios, riquezas científicas e nosso povo não pode usufruir dos frutos imedidos que podem vir de tudo isso. Simplesmente não podemos querer mais! Não podemos ser medíocres como eles querem que sejamos. Qual a forma de enriquecer os povos, engrandecer os territórios improdutivos, explorar riquezas de terras devolutas, senão pela guerra? Porque as escolas de mistérios acreditam que a guerra não é uma manifestação legítima? É a manifestação de poder da natureza! Vocês veem aquela piscina ali na frente, se for jogada uma corsa ali dentro… Ali há um crocodilo de três metros, ele vai comê-la. Essa é a lei da natureza. Não podemos deixar que nos imponham a ideologia dos fracos, do prostrados, dos perdedores. Nós não somos iguais a eles, somos melhores. Por isso estamos aqui vendo o mundo de cima, vendo Harpis de cima. Senhores, eu proponho que deixem-me guiá-los para uma nova era. Onde seremos reis de verdade, governaremos sobre o futuro. Assinem a moção de revogação.

Tantalus deu a volta por trás da mesa.

O Senhor da Ilha de Bar, Varr Bar Jotun, bateu os punhos sobre a pedra:

-Filho, isso é um absurdo! Se eu faço guerra perco homens, meus negócios não prosperam. Nossa ilha é uma terra livre! Assinamos um tratado para nos colocarmos como um território neutro, pois estamos no meio do caminho dos baleeiros das duas maiores companias de comércio marítimo. Abdicamos de ter um exército em razão disso, pagamos por segurança e pela prestação dela pelos Lanceiros de Jade de Var Bar. Precisamos de paz para que o comércio dos mares ocorra e desde que a Ilha de Bar se colocou no meio das negociações para encerrar a guerra do óleo, como emissora exclusiva das rotas secretas e oficiais de navegação dos mares, essa ordem vem se mantendo. Filho, não mexa com o que está posto. 


O Senhor da Baía de Ouro interveio, concordando em parte com Var Jotun, argumentou informando que o controle da Ilha de Bar não era gerência apenas do administrador que ali estava, mas do conselho dos Senhores de Mar e Comércio que residiam na ilha e de lá patrocinavam as frotas do Norte ao Sul e de Leste a Oeste, armando as embarcações mais modernas e preparadas para quebrar as ondas, e Var Bar Jotun completou o raciocínio do Nobre prosseguindo:

-Preciso de baleeiros, não soldados! A guerra é como cavar uma grande catacumba, e depois querer viver nela, filho. Não nos traz nada de bom. Vejam - disse dirigindo-se aos demais- esse menino que querem chamar de Rei...".

O administrador da Ilha de Bar não pôde concluir a sua fala, pois Tantalus Ágoras o pegou por trás com um garrote enquanto o homem se debatia na cadeira. Ele o subjugou com facilidade, puxando suas mãos em direções contrárias. O Senhor ainda tentou agarrá-lo colocando o dedo no ferimento do Rei e apertou com força. Mas Ágoras não soltou. Seu cabelo de desprendeu da máscara e ficou esvoaçando, enquanto esganava o homem entre as fazendas de linho que deslizam ao sabor do vento, alheias àquela brutalidade. Ninguém interferiu e aquilo demorou um tempo considerável para acabar. Tantalus tinha a camisa manchada por uma grande quantidade de sangue. Mas sentou na cadeira da cabeceira enquanto o corpo de Var Jotum jazia desfalecido, ficou admirando a vista com seus convidados estupefatos. Então ele irrompeu o momento de contemplação e silêncio que se fazia e colocando os cotovelos em cima da mesa fez um sinal para o Prestante. 

Foi colocada uma cópia da moção, tinteiro e pena na frente de cada um dos cinco senhores. Edmundo de Ferro, Senhor do Vaudeferro e de Passo da Balsa. Endro Represagorda, Senhor de Terralta, Represagorda e de Porto das Gaivotas. Xing Woo, Senhor da Baía de Ouro e de Tocaspretas. Doutor João do Vãodebaixo, Prefeito Geral da Última Vila Mais ou Menos ao Norte. O Magius Senhor da Torre Vermelha, O condestável de Ilha Baroa, e por fim, Alan Costarreal, Senhor das Terras Ocidentais desde Solar das Laranjeiras, Passando por Mataguda, até Penhascoforte, onde ficam a Escola de Mistério da Pedra arregimentada por Fineas, Sumo Sacerdote Ocidental.

O Rei deu uma fungada por debaixo da máscara, um cacoete seu: 

-Vejo que concordam comigo.- Servindo-se com carneiro frio. -Não sei dos Senhores, mas eu estou especialmente faminto nesta manhã.


Continua no dia 31/07…