1 de julho de 2021

Aventureiros do Lado de Cá

 


Valéria - arte por Augusto Krichaña

Uma boa mira

Valéria arrastava o cerro de moedas que estavam em cima da mesa em sua direção.  Uma noite extraordinária para ela, a taverna estava cheia e todos apostaram em Marlon Mira Certa.

Acontece que uma hora antes Marlon havia encostado no balcão para beber uma cerveja e conversar com uma bela Amazona que lhe chamara com tanta simpatia para dividir o balcão. Foi muito receptiva, e embora a cerveja estivesse quente e amarga além do de costume, ele pôde tirar uma ou duas bitocas da mulher. E quando Marlon começou a falar enrolado e chamá-la de Senhora Bologordo a Amazona levantou-se e foi para um canto organizar as apostas.

E trinta escolheram Marlon, o grande arpoador de Porto de Gaivotas, ao passo que apenas dois apostaram na criatura estranha. Uma criança mal alimentada, de fala empertigada, mais baixa que um anão, com um tapa-olho do lado esquerdo e careca. Dentes podres e mal higienizados. Carregava nas costas uma sacola de couro remendada, com um símbolo, um círculo de sal com duas vagas espumantes e opostas no seu centro, entre elas, uma moeda de ouro: o sigilo da Marinha Mercante de Sabo.

O objetivo era simples, acertar a faca na maçã que estava na boca da cabeça de porco, há quatro corpos de distância. Eder Couraçadura, o armador do Galeão “Marlin Caçador”, havia cedido a cabeça da ceia do imediato para a competição.

Três chances e um alvo.

 Marlon saiu do balcão trocando os pés, e quando ia caindo os homens o jogaram de pé com um grande “Uou!”. Muitos gargalharam quando a pequena se aproximou e arrastou uma cadeira para fica na altura do alvo.

No primeiro arremesso de Marlon a faca foi parar na parede. “Uh!”, disseram os presentes, levando as mãos à cabeça. Então foram incentivá-lo cantando “Marlon, Marlon, Marlon!”. Mas a segunda faca acertou com o cabo na barriga Jüor, que segurava o porco entre os braços. No terceiro arremesso o Arpoador caiu para trás revirando os olhos.  “Não!”, lamentaram os presentes, acenando com a mão em desabono do marujo embriagado.

E quando Valéria pegou a faca, que parecia uma espada curta para ela,  todos deram gargalhadas. “Olha só! Arrárrá! Um pirralho com uma faca!”,- e rolaram sobre as mesas com a mão na barriga, torcendo-se de tanto rir. Uns cuspiram a cerveja entre risos afogados enquanto rolavam por cima das cadeiras.

A pequena se concentrou, balançou o corpo para frente e para trás, mirou um pouco e vrum, no primeiro arremesso acertou o chapéu de Jüor, o prendendo na parede. O que fez os apostadores abrirem a boca, rindo, fazendo voar migalhas de batata para todos os lados.

O terceiro lançamento foi preciso, bem na maçã!

Ao que todos viraram de imediato, desdenhando a marinheira e dizendo “Sorte de principiante!” e “Marmelada!”, enquanto ela descia sorrindo da cadeira. Antes de recolher o prêmio catou uma caneca de cerveja que estava por ali e que era maior que a sua cabeça, virou sobre o opositor que desmaiara: “Os pequenos não devem beber!”, disse e foi pulando feito uma criança, enquanto abria sua sacola de couro.

-Valda, - cochichou para a Amazona- você deve pôr menos pó-de-ronco na cerveja! Já é a terceira vez que derruba o oponente, daqui a pouco vão acabar nos pegando de vez!  -a pequena ia derrubando as moedas dentro da sacola e depois puxou o cordão bem firme para que nada escapasse.

-Vamos embora daqui, antes que alguém se sinta injustiçado. Aqui é Portogaivotas, dentro de pouco tempo todos esses homens com berbigões na barba e ranço de baleia na cavada estarão brigando dentro dessa taverna.

As duas saíram discretamente, e saltaram na viela escura. Uma taverna à beira da doca não é lá um lugar bem frequentado e em Portogaivotas os tipos mais estranhos são encontrados. Se é necessário fugir da lei, um barco em alto mar por dois à três signos é uma ótima opção. E esses eram os tipos que frequentavam o porto: ladrões, assassinos, homens culpados e espiadores de pecados. Todos ali reunidos, na missão mais fedorenta do continente: a de espetar, carnear, e escorregar óleo daquelas pobres baleias.

Aconteceu o que era bem provável: elas estavam sendo seguidas.

Apertaram o passo e o perseguidor também.

Mas elas já haviam passado por essa situação muitas e muitas vezes tendo várias jogadas ensaiadas para acabar com esse tipo comum. Valéria apontou um “v”, com os dedos e Valda já sabia o que fazer na mesma hora. Era a tática: “vamos nos separar. Aguardar quem será seguida. A outra vai atrás e fura o homem pelas costas.”, elas chamavam de “Surpresa no rim!”.

Valéria entrou num beco escuro e molhado. O homem encapuzado veio atrás. Valda escorregou por entre as sombras, furtivamente com a adaga em riste.

As poças fumegavam e o chão de pedra era escorregadio. “Maldito sal”, pensou Valda. E o homem parou no meio do caminho quando sentiu uma lâmina encostar sobre a cintura: 

-Valda e Valéria!- e jogou as mãos para cima- A dupla mais sorrateira, perigosa e mentirosa da banda oriental.

E Valda saiu das sombras com um largo sorriso no rosto: 

-E se não é Paisano, o capacho do Mestre das Facas! O porco miserável mais estranho que já conheci!

Valéria correu e se jogou sobre os dois com um largo sorriso e algumas lágrimas nos olhos. E os três saíram rindo do beco, como grandes amigos que se reencontram depois de um tempo distantes.




Favores entre amigos

-Só preciso disso, uma pequena carona até à costa, na altura de Terralta. Fiz um serviço, pelo qual ainda não fui pago, que me custou tempo e dinheiro. E há cinco dias, com o embarque para as Terras Abissais já comprado, fui roubado por três Egirões. Sei disso, já consegui as informações nesses dias aqui em Gaivotas, descobri o esconderijo deles nas falésias de Terralta.- disse Paisano, espetando uma batata com sua adaga.

Paisano: alguém que já viveu mais da metade do tempo de vida de um homem comum, porém de constituição forte e muito habilidoso ao arremessar sua adaga. O cabelo grisalho que ele insistia em tingir de vermelho lhe denunciava, parecia uma peruca de circo. Uma grande argola na orelha direita, no melhor estilo “cafajeste da Ilha de Sabo”. E um cavanhaque pronunciado, que ele também tingia de vermelho. Nada discreto para um homem de “serviços”. Usava aquele mesmo velho colete de couro, desde sempre, com um camisão de linho fino de brodejão-do-mar-seco, com mangas bufantes e muito surrada. Suas velhas, e companheiras, botas de couro, sempre cheias de adagas bem afiadas. No ramo de atuação de Paisano era importante deixar as armas à vista, mostrando que você é um profissional preparado.

E ele era um bom e antigo amigo de Valéria, uma pequena que viera trabalhar na Marinha Mercante de Sabo, levada por ele. Foi lá onde conhecera Valda, a salteadora. No entanto, há quatro signos Paisano deixara a Marinha, se aventurando no ramo de serviços autônomos.

-Nunca é “só uma carona”, Paisano!- disse Valda mordendo um suculento tomate, cujo caldo escorreu pelo braço.- É sempre um serviço, que você acaba nos levando e nós não levamos uma moeda.- ela riu.

-Dessa vez é. Prometo. Só tenho que ser levado até a costa e aguardar no barco, enquanto pego o que é meu.- fungou dando um sorriso para sua pequena amiga.

-Nosso capitão vai lhe cobrar por isso. Não podemos levá-lo como penetra. Estávamos voltando para casa, depois de atravessar uma carga de sal, mas conseguimos um trabalho bom. Pouco tempo de viagem, trinta dias até Ilhadura. O navio vai levar um porão de carvão e melaço, direto daqui. Depois vamos para casa.  Valda vai para o deserto e eu vou ver meu tio, lá no Nordeste.- explicou Valéria, enquanto se esticava muito para pegar um pedaço de frango no prato. Seus pés balançavam na cadeira.

-Está bem, uma mão lava a outra.- disse Paisano, enquanto alcançava o frango na ponta da adaga para Valéria.

-Paisano, a Valda tem razão. Lembra daquele serviço, lá no festival da roda. Pensei que você tinha nos chamado para trabalhar no circo. E aí, aquele seu amigo maluco, ele enfia uma uma lâmina bem no meio do Rei, ali na frente de todos. Se não fosse pelo meu tio, não teríamos saído vivos. Todos pensaram que havíamos montado uma emboscada para matar aquele Rei desajustado. - e girou o dedo na volta da orelha, fazendo caretas- E ele ainda arremessou uma faca na perna da Valda.- falou a pequena, como se estivesse esquecendo algum detalhe, mas lembrou em seguida- A faca estava prendendo fogo!

-É! O ferimento dói até hoje. E quando chove, mal posso andar no convés.- completou Valda.

-E fui ouvindo meu Tio reclamar até a casa dele. E foram muitos dias de viagem…- foi falando com o frango na boca- E se não fosse por aquele cara Estranho, a apresentação teria sido um sucesso. Meu tio não teria nem me reconhecido! Meu tio… Se não fosse por ele vocês estariam mortos nos calabouços da Fortaleza do Sol! Adorei me pintar de branco, aquelas facas prendendo fogo na escuridão… Foi emocionante!- disse rindo, e dando pulinhos na cadeira.- E quando aquele General assustador veio me indagar sobre o encapuzado e eu menti que tínhamos sido contratados um dia antes nas barracas do festival… Ri tanto depois! Ele acreditou em tudinho!- Valéria apertava os olhos, tirando um fiapo de frango dos dentes, enfiando o dedo no fundo da boca.

-Para onde aquele cara foi depois? Quem era ele?- Valda indagou, prestando atenção no amigo.

-Não sei quem era e nunca mais o vi.- respondeu Paisano, desviando rapidamente o olhar para dentro da caneca de cerveja.


Subindo o rio Estige

Não havia sol naquele dia e quando a noite nascera, estava fria e quieta, quando desceram o barco na lateral da fragata, se puseram a empurrá-lo entre as brumas volumosas. Também não havia vento, vagas preguiçosas alcançavam a lateral da embarcação suspirando lentamente sobre a madeira, quando morriam sobre os paus velhos, subia o cheiro do mar. Enquanto remavam, fazendo o barco deslizar delicadamente para cima e para baixo por sobre a lâmina cinza, iam mirando o encontro das águas, assim souberam que haviam adentrado o rio Estige quando a maré tornou-se vermelha como sangue e tiveram que pôr mais força nos remos a fim de vencer a correnteza. Valéria vinha falando sobre a primeira vez que vira o Senhor das Facas, num fretamento angustiante de três semanas, desde Porto de Gaivotas até as Ilhas de Sabo, do outro lado do Mar do Leste.

-O Mestre das Facas. Quando o vi em Porto de Gaivotas, senti um arrepio na espinha. Estava lá com aquele capuz sobre o rosto, com suas ataduras e aqueles olhos verdes brilhantes na escuridão. Não somente ele, mas todos aqueles homens que o seguiam. O Senhor das Facas tinha uma aura tenebrosa. É de se olhar e saber, imediatamente, que deve ficar longe dele. E junto havia um séquito das criaturas das mais temerárias da baía. E eu conheço uma quando a vejo, sou uma mulher de sal, o Mar é minha casa. Eles vivem nas sombras, com seu olhar duro e seu silêncio que provoca estremecimento. A despeito da pouca fala, o rosto daqueles homens dizia muita coisa, um semblante trabalhado e vergastado, cicatrizes e ferimentos. Toda uma vida de pouca esperança é capaz de arremessar um homem longe dos limites da decência quando se trata de sobreviver. Aquele tipo que não tem amigos e se precisar rasga o pescoço da própria mãe por um punhado de moedas, o resultado mais assustador de uma vida de privações.  Desde que entrei para Marinha de Sabo eu nunca vi nada igual. O navio foi armado, mas o contratante desistira na última hora. A Loja Mercante estava aceitando qualquer contrato que pagasse os prejuízos de uma viagem mal sucedida. Não havia óleo para transportar, os negócios em Bar iam mal com a morte de Varr Jötun. E para pagar o retorno para casa o Capitão aceitou, sem mais perguntas, levar um bando de homens e um corpo para Sabo. Todos queriam voltar para casa, afinal, já estávamos há semanas longe das Ilhas de Sal. Quinze homens embarcaram no navio. Transportavam o corpo de um cúmplice em seu trabalho e apesar de se dizerem todos compungidos com o passamento “da carga”, suas caras não eram tristes. Mas eram como um augúrio. Quando alguém morre vê-se no rosto dos seus entes que chegou o fim, entre aqueles homens estabeleceu-se um comportamento de que algo tinha início naquele momento. Uma espera angustiante e misteriosa. Rostos familiares eu vi ali, e alguns desconhecidos. Eu conheço os larápios famosos dos Portos de Sabo e vou dizer a vocês que eles não eram ladrões. São aquele tipo de carne que faz os serviços que ninguém quer fazer. Aqueles trabalhos que sabemos que somente os homens com  alma sombria e inclinação cruenta são capazes. Um deles carregava um corvo sobre o ombro. O alimentava com pedaços dos rato que catava nos porões. Um outro, com olhos verdes de cobra, nunca saiu do mesmo canto na escuridão. Dormindo sobre o cordame no fundo do porão. Não comia e tampouco falava. E só vi seu rosto uma única vez quando desci até as tinas, com o medo gelando a espinha, e seus olhos brilhavam como os de um gato lá no meio da escuridão. E quando chegou “A Noite Mais Escura”- e a pequena parou e disse, interrompendo a história, “É de lá que eu vim e para lá retornarei.”-, veio com ela uma tempestade. E aqueles homens foram para o convés, ignorando as ordens do Capitão. Yard, Yard. Sim, toda a tripulação ficou assustada, porque levaram o defunto lá para cima e se puseram a rezar numa língua desconhecida sobre sobre o corpo do homem, enquanto balançávamos trancados nas cabines das cobertas baixas. E a noite pareceu ficar tão mais escura, tanto que a luz dos lampiões fora abafada e sua chama minguava no fio oleoso e o combustível na lamparina não queria incandescer. Todos rezamos para D’us nas profundezas do navio, enquanto lá em cima aquele canto não parava.  Nunca pedi tanto para que chegasse o Havdalá. E quando subimos, com a chegada da luz e o fim da tempestade, o defunto estava sentado nas escadarias próximo ao manche. Seus olhos eram verdolengos e tão terríveis que não pude erguer o olhar novamente em sua direção. E ainda faltava muito para a viagem acabar. Acho que foi o serviço mais medonho do qual participei. E olha que o carregamento de bosta foi ruim. Lembra Valda? Você estava comigo nessa. Três mil tonéis de esgoto de um continente a outro, e ainda pegamos um péssimo capitão que nos colocou à deriva por uma semana.

Valda riu. E então as pedras fizeram barulho no casco, Paisano pulou na água arrastando-o até à margem. A Neblina estava por todo lado, mal podiam ver uns aos outros.

-Chega de histórias de marujo e contos de terror, -disse ele, colocando a adaga na bota- Agora é que vem a hora mais escura, Valéria. Vou encontrar aqueles filhos da mãe que me roubaram.


Assalto à Terralta


Rasc, rasc. Rasc, rasc. Faziam os passos de Paisano sobre as pedras grossas das margens do Estige, “Uma caverna, bem acima. A chamam Bico da Gaivota.”- Disse o informante no Porto. Naquela neblina não podia ver muito, mas foi o suficiente para encontrar a grande pedra projetada para fora e para baixo, na direção da praia, como um grande bico de ave. Achou um caminho íngreme entre as pedras, no formato de uma escadaria.

E quando ia longe, logo viu que as brumas amainavam, podendo enxergar o Pico das Falésias de Terralta, um paredão vermelho cercado de um mar de névoa. Abaixo o barulho das ondas atirando-se sem serem vistas sobre as rochas da encosta. Sualsh, sualsh.

Mas podia ver exatamente ali de onde estava uma fumaça e uma luz bruxuleante se projetar de dentro da rocha mais alta.

Pegou a adaga da bota e escondeu-se nas sombras, seguindo o paredão, adiante, ouviu risadas. Paisano foi rastejando até a entrada.

Uma mulher dormia ali.

E no fundo da parede da encosta projetava-se a luz da fogueira e nela a sombra de três homens gesticulando à volta do fogo. Escutou conversas e viu que comiam.

Um levantou-se, cabelos longos. Uma espada de Egirão na cintura. O homem cambaleou. “Está bêbado.”, pensou Paisano.

Ficou pensando numa maneira de abordá-los. Foi quando escutou um assovio muito alto vindo lá debaixo. 

Droga, Valéria!”, resmungou baixinho consigo mesmo. Então a sombra ficou imóvel e colocou a mão no cabo da espada. A mulher que dormia abriu os olhos, e Paisano estava na sua frente, pedindo silêncio com o dedo sobre os lábios. Ela se encostou na parede, permitindo que ele passasse e com uma expressão de apreensão, pegou uma pedra nas mãos. O invasor encostou-se na parede, procurando não ser visto. Mas já era tarde quando uma pedrada na nuca o derrubou.

Quando acordou estava com as mãos atadas e dentro da cave. Em um canto a mulher segurava um pedaço de carne com a mão e lambia os dedos da outra.

Um homem dormia no canto e outros dois estavam conversando em torno da fogueira e bebendo.

Paisano tentou se arrastar para perto da parede escura, tentar roçar a corda contra a rocha porosa talvez afrouxasse as amarras. Mas logo a mulher percebeu que ele estava acordado e foi em sua direção. Agachou-se perto dele e abriu um grande sorriso:

-Sua Barba é muito cafona. Você é algum tipo de parlapatão de circo, um trovador ou menestrel? - e deu uma grande mordida na carne macia.

-A bem da verdade sim, sou.- falou Paisano.

A mulher espantada perdeu a graça e puxou o pescoço para trás:

-Ele é menestrel! - disse ela aos demais. Então os dois homens pararam de conversar e se voltaram de costas para a fogueira.

-Ele é um parvo, isso que é! Deixou que o roubássemos em Porto de Gaivotas, enquanto conversava no balcão com uma mulher. Nem viu que fomos embora levando seus pertences.- disse o homem de cabelos longos.

A mulher olhou fixamente para Paisano, apertando os olhos e chupando a gordura dos dedos: 

-Mas ele tem o cabelo vermelho, e um brinco estranho. Ainda acho que é menestrel.- e fez uma pausa, analisando o prisioneiro,- Veja, ele também tem uma tatuagem, bem no pescoço! - então a mulher levantou e começou a apontar na direção de Paisano, pulando.- Ele é um menestrel, é sim, um menestrel! Deixe-o tocar! Deixe-o tocar!

-Cante rouxinol.- disse o outro homem, rindo.

-Na verdade,- interrompeu Paisano, com um ar misterioso.- sou um Mestre das Sombras!

-Como?- a mulher cuspiu a carne e apertou o rosto, sem entender. -Dou vida às sombras.- disse ele, arregalando os olhos. Vê as sombras na parede da cave? Posso transformá-las em Príncipes, Reis, Rainhas, Monstros e animais fantásticos!

-Eu quero ver! Ricardo, solte-o, por favor! Quero ver as sombras! Deixa-me vê-las! Deixa-me vê-las!- implorou a mulher roçando as mãos na saia e limpando a gordura da carne.

-Está bem... -Disse o homem de cabelos longos.- Se ele tentar fugir, bata com a pedra nele de novo. É um parvo.

Então soltaram Paisano. E ele bateu a poeira vermelha de suas vestes, se preparando para o show. Colocou os espectadores de um lado da fogueira, e foi para o outro lado, onde as sombras cresciam sobre a entrada da cave. E colocou as mãos para cima, contorcendo-as:

-Vejam, um macaco na floresta.- falou enquanto deitava para trás e embolava os dedos sem parar.

A mulher torcia a cabeça de um lado para o outro, afinando os olhos e tentando identificar a imagem.

-Agora,- disse ele- O mago na Torre. E Estendeu o antebraço para cima, fazendo uma forma de garra com a mão.

E a mulher meneava  e coçava a cabeça. Os dois homens entreolharam-se e soltaram o riso boca à fora, debochando de Paisano.

-Agora, o Dragão de fogo!- disse Paisano, chutando a fogueira e jogando as madeiras incandescentes sobre os espectadores. Rapidamente rolou para o lado e recuperou suas adagas que estavam do outro lado da cave. E mais rápido que a sua própria sombra as arremessou uma em cada homem. A mulher gritava, prendendo fogo. O outro, que estava dormindo, levantou assustado e mal pôde ver a grande pedra descer sobre sua cabeça, inúmeras vezes.

Paisano foi até o canto da cave, catou um pano velho onde o homem estava a dormir, e fez com ele um grande sacolão, onde colocou todos os pertences que pode encontrar lá dentro. Quando ia saindo ouviu o choro da mulher completamente queimada, embora tenha conseguido extinguir as chamas rolando no chão da cave, Paisano largou a sacola e voltou. Abaixou-se ao seu lado, e a vendo estremecer, deu falta das adagas. As retirou dos corpos que ali jaziam, e despedindo-se com um sorriso, passou a lâmina na garganta dela.

Valda ouviu o barulho de latas e estalidos vindos da bruma acima de suas cabeças e de repente surgiu, vindo do meio de todas aquelas nuvens, Paisano, todo chamuscado.

-Sinto cheiro de churrasco.- disse Valéria.- Você foi dar uma festa? -Falou ela sorrindo e puxando os remos.

- Não.-disse Paisano, irritado.- Fui fazer um show.

O caminho de um homem

Paisano estava deitado  sobre os sacos de carvão, arranjados até que ficassem numa posição mais confortável possível. Com o braço apoiando a cabeça e a perna cruzada no alto, girava um pequeno pedaço de lâmina, que na escuridão do porão emitia uma luz pálida verde. Ele estava pensando em tudo e nada. Estava ali, brincando com aquele pequeno pedaço de metal que lhe daria tanto dinheiro quanto jamais imaginara ter.

Talvez fosse para Terra de Cima, levasse Valéria consigo. Sentia muita saudade dela, das brincadeiras bobas no jantar, daquela voz fina falando sem parar, mas principalmente do quanto era uma boa pessoa quando estava ao seu lado. Aquela menininha que batera no seu portão, pedindo comida e rindo, e que até hoje ainda não se transformara em nada. A alimentara por tanto tempo… Quantas aventuras tiveram juntos! Depois que foi embora restaram saudades e preocupações. Como poderia ele imaginar se ela fazia o que havia lhe recomendado, sobre escovar seus dentes e não subir para o convés durante as tempestades.

Mas lembrava-se de quando era menino, quando ganhara seu primeiro par de botas para apear o gado. Seu manto de lã pura na cor vermelha, que ajudava a mostrar aos ladrões que o gado estava a ser vigiado. Depois de um certo tempo passou a não ter tanto interesse pelos costumes, e quando era tempo de marcar a pele para o rito de passagem, ele escapuliu e se foi esconder no mato, chorando. Tinha o corpo de carne macia, como um novilho, tremia e se agitava no barro do campo. E quando seu pai veio, com aquela vara longa e firme, e o achou no esconderijo, ele se debateu inutilmente. A primeira surra. Para ser homem. O homem do campo que queriam que fosse. Mas ele sabia no seu íntimo que aquilo não era ele. E quando cresceu, as cicatrizes lhe serviram para lembrar-se que nunca quis ficar lá.

Lembrou-se que por volta dos nove signos ia escondido, rastejando até a leitaria e mamava nas vacas antes de todos para garantir seu leite, quando depois reparavam que não sobrava muito o que ser ordenhado naquela que era sua preferida. E ela ficava quieta, alimentava o menino.

Um dia o pai gritou com ele perguntando o quê queria da vida, mas Paisano queria brincar, contar histórias e torcer a pequena sanfona de papel. Fazia isso com a avó e ela alimentando o quê quer que fosse aquela vontade no seu peito lhe dizia: “Você é especial!”.

Ele acreditava na avó.

Um andarilho certo dia apareceu no campo e disse que o seu pai perderia as vacas, sua avó morreria e ele ficaria sozinho.

Então Paisano foi chorando para casa, contou tudo a seu pai. Levou uma surra de vara e nunca mais tocou no assunto.

No outro inverno sua avó morreu. Seu pai ficou triste e o frio veio forte, o  botando com uma consumação na cama. Paisano cuidou de tudo sozinho mas não conseguiu evitar a perda do gado. Uma a uma morrendo de agonia por uma febre avassaladora.

Então no fim do inverno o pai se foi.

Paisano pegou sua gaita e foi para a cidade, levando os miúdos que pensou ter valor. Na primeira albergaria encontrou um negociante, um criador de porcos. Ele perguntou se o homem tinha trabalho, o que respondeu que sim. Mas logo lhe propôs que não queria seu dinheiro, mas sim um porco de cada ninhada por dois meses de trabalho, um lugar no celeiro para deitar o corpo, um pão velho com café pela manhã e um  prato de sopa quente à noite.

Em um signo e meio, Paisano já tinha dez porcos. Nove que ganhara do seu mestre, e um que comprara com as moedas arrecadadas nos shows de gaita na praça central.

O menino cresceu, seus negócios cresceram, o tempo passou, até aquela menininha bater no seu portão pedindo comida.

E depois foram trabalhar na Marinha de Sabo. Meio pai, se sentia ele. E para ela, de fato o era.

Quando se foi pensou nela: em conseguir um bom dinheiro, talvez para comprar um barco ou uma casa. Ficara tranquilo por deixá-la com Valda (a ex namorada ou atual, não sabia) que a tinha em grande estima também.

Agora estava ali, divagando sob o convés. Admirando aquele metal afiado, brilhoso e verde, há pouco de se tornar um homem rico.

-Você vai voltar para Sabo?- perguntou Valda, que chegou sem ser percebida, e ficou ali, observando sob o dormente do porão, temendo interromper aquela reflexão.

-Não. Preciso entregar o meu serviço. Vou para as Terras Abissais.- respondeu ele, se erguendo sobre os sacos.

-Foi para ele o serviço não foi?- ela foi se aproximando, curiosa com a luz verde.

-Foi.- admitiu com um certo embaraço.

-Eu sabia. Você não sabe mentir para mim!- ela estendeu a mão para tocar a lâmina, e quando seus dedos a encostaram Paisano a puxou rapidamente. O que provocou um corte na lateral do dedo indicador. 

-Au!”- ela reclamou, chupando o dedo.

-Você não pode pegá-la. Se soubesse de onde e de quem a tirei, jamais a tocaria. Quase morri na Torre Verde. E se não fosse um pergaminho que me deixou invisível o qual comprei de um Mascate antes de embarcar para o arquipélago, talvez eu não tivesse saído vivo. Só consegui fugir daqueles magos porque atravessei todo o continente e me foi enviado um homem, não sei quem era, que cortava gargantas na calada da noite (de todos que me perseguiam). Me levaria às Terras Abissais para entregar o serviço, até que o objeto foi roubado, nos separamos e mandatário desapareceu na floresta.  E aqui estamos nós. Não vou voltar para encontrar o homem. Ele era tão sombrio que quase não conseguia dormir ao lado dele. Tinha pesadelos horríveis, e quando acordava no meio da noite, ele estava me observando. Nunca dormia.

-Paisano, que lâmina é essa?- Valda o interpelou, apertando a ponta do dedo e olhando fixamente o machucado.

-Não sei.- Paisano disse, se esticando para olhar o ferimento.

-É bom descobrir…- agachou-se a mulher, lhe mostrando uma mancha negra nas bordas do corte, que, quase imperceptivelmente, aumentava.

A adaga misteriosa


“Ninguém guarda uma lâmina amaldiçoada sem ter uma poção de cura.”- Valéria estava com a alegria costumeira, fuçando os embrulho de pertences que Paisano havia roubado dos egirões nas falésias. Valda ia sentada sobre os sacos de carvão, balançando o dedo com vigor para baixo e fazendo caretas de dor. 

-Têm horas que me dá uma grande pontada. Depois passa, e então vêm uma dor contínua, saindo do corte e se espalha pela mão.- Dispontou Valda, preocupada.

Paisano estava sentado, com os cotovelos sobre os joelhos, segurando a cabeça e refletindo sobre a lâmina e o ferimento da amiga.

-Foi culpa minha- disse, deixando o estupor- fui eu quem puxou a lâmina.- e começou a caminhar de um lado para o outro.

-É verdade. Foi culpa sua, se não tivesse puxado…- Valéria completou, erguendo um frasco de líquido que apanhou de dentro do saco, o observando contra a luz.

-Valéria!- repreendeu, Valda.

-É verdade!- completou a pequena, colocando o vidro em um de seus bolsos.

-Valéria! - repreendeu, novamente, Valda- Fazê-lo sentir-se culpado não vai resolver nada! E você, pense em alguma coisa!- apontando na direção de Paisano.- Ajudaria muito se explicasse que tipo de arma é essa, ou por exemplo, se é alguma daquelas armas bizarras do seu amigo Mestre das Facas.

-Nós estamos próximos de Everskaya -irrompeu Paisano pensativo- se desembarcarmos aqui talvez um Sacerdote ou curandeiro possam nos ajudar. Soube que a costa tem bons homens e existe uma cidade à beira mar em Evreskaya, Porto de Boaventura. É uma cidade grande e sei que lá há Sacerdotes bons, que sabem o que fazer. Nesse barco… Essa morbidez pode levar Valda a perder o dedo talvez, porque o ferimento está ficando feio…- concluiu esticando o olho para cima do ferimento.

-Deixa eu ver! Deixa eu ver! Deixa eu ver! -Valéria saiu pulando enquanto vestia um colar e um chapéu, que pegara do meio das bugigangas.

-Ei, parem com isso.- Valda empurrou a ambos, caminhando para longe.- Se desembarcarmos agora, perderei meu pagamento pela viagem. Estamos há muito tempo no mar, dependo do dinheiro! Se não pegá-lo, não terei como comprar uma passagem de volta para casa! E você não respondeu minha pergunta, Paisano, que arma é essa? Você está trabalhando para o mestre das facas, não está?- esbravejou com as mãos na cintura. Depois desceu os braços, reclamando da dor no dedo.

-Ei, Valda, se descermos aqui, cuidaremos da sua mão, podemos ir até o deserto, encontrarmos as suas irmãs. Depois atravesso o charco, vou para as terras abissais e lá entrego meu serviço, pego o pagamento. Não estou trabalhando para o mestre das facas, não agora, antes estava, mas achei um comprador mais digno para o ítem. Então pego meu pagamento com ele e depois volto, te dou o equivalente ao seu ganho neste navio. E eu… Eu vou voltar para Sabo, comprar um carro de circo e uns porcos, uma casa talvez. Vocês podem vir comigo.-  Paisano voltou a se sentar, resignado.

-Quê?- Valéria abaixou-se na frente de Paisano, olhando seus olhos com pesar. -“Mas eu acabei de iniciar minha carreira na Marinha…”- ela sorriu com delicadeza, depois continuou saltando no porão e apontando uma espada imaginária, sentido-se como uma heroína rica, cheia de jóias. -Vamos descer! - ela continuou, como quem muda de idéia rapidamente- você é um homem rico, ela uma moribunda e eu sou uma Rainha Guerreira!  Vamos ter umas aventuras, como nos velhos tempos!”- Valéria fuçou mais um pouco no saco, e encontrou uma capa, que imediatamente pôs sobre os ombros. A capa era muito grande para ela, ficava arrastando pelo chão.  “Talvez tenha pertencido a algum Rei”, ela pensou. E girou vestindo a capa, como uma criança com as roupas da mãe.

-Valéria! -gritou Paisano- onde está você?



A salvação está em Evreskaya


Está muito escuro!- disse Valéria, segurando o queixo e analisando o ferimento de Valda.- Se cortarmos o dedo fora, eu tenho certeza absoluta, ficará curado.- concluiu, como quem tivesse entendimento sobre casos idênticos.

Valda suava, acocada num canto do porão. Já havia lhe passado pela cabeça extirpar o dedo. Mas já havia notado uma mancha preta próxima à palma da mão. Nesse caso teria que cortar a mão inteira fora. Ali naquele local, isso poderia causar-lhe a morte. Então decidiu descer no Porto em Evreskaya, fazer como Paisano sugeriu.

Ela foi ao tombadilho e falou com o capitão. Capitão Baradum era um bom comandante para sua tripulação. E elas estavam com ele há algum tempo, como companheiros, e agora, há não mais que três signos atrás, havia ganhado uma Fragata somente sua para Capitanear.

E quando viu Valda, ficou assustado. A mulher forte, sua mestre de navio (e quando preciso, também uma mulher de armas), estava doente. Isso era visível. Subira se segurando nas paredes da tina, e mal pôde vencer as escadarias sem a ajuda de Rico, o imediato. Batia os queixos e segurava a mão entre as pernas. Quando o capitão a viu, pensou que estava mal da barriga, coisa comum entre as marujas nos dias de regras. Mas depois viu que estava doente, muito doente.

Baradum olhou o ferimento e mandou chamar o barbeiro de mar, que em dois passos veio correndo, carregando um embrulho de alcatrão e a sua pasta de couro duro.

Colocaram Valda sentada nas escadas. O barbeiro abriu a pasta e colocou o óculos, bem na ponta do nariz. Também tomou um gole de trago. E balançou a cabeça com o álcool arranhando a garganta.

Vejamos…- ele disse. E fez muitos “huns” e “bens”, e mesmo sem saber o que era, viu que estava feio. Olha - disse ele coçando a cabeça, e levantando-se com um gole de trago- é feio. É estranho. E eu não faço idéia do que seja. Mas posso cortar aqui - e apontou para o pulso- e resolvemos o problema, seja ele qual for.

Não! -saltou Valda, segurando a mão- Farei o quê da vida depois? Vão me sugerir colocar um gancho? -então ela olhou para Eimor Interrogação, criado de bordo da cozinha com sua mão de gancho- Desculpe, Interrogação, eu não quis ofendê-lo- Eimor coçou a cabeça com o gancho, pensando se teria ficado ofendido. - Eu não vou cortar, de forma alguma!

-Moça - o barbeiro apertou os olhos- não sei se a Senhora tem escolha… -E o capitão assentiu com a cabeça. O barbeiro escorregou o chapéu mareado pelo rosto e o levou ao peito, enquanto dava um belo gole na garrafa de trago e encarava o ferimento.  Todos os presentes a contiveram. O barbeiro apanhou o embrulho de pano roto e o desenrolou revelando um facão serrilhado, depois jogou o trago em cima.

-Moça, desculpe a franqueza,  mas eu não queria ser a Senhora. Vai doer como o inferno!

Foram necessários oito homens para segurar a Amazona, enquanto se fazia o torniquete. E quando a serra desceu pela segunda vez sobre o punho de Valda, ela desmaiou. O Barbeiro  jogou água ardente no ferimento, aproveitando para  tomar o último gole.

Quando Valda acordou, um pano ensanguentado estava sobre o punho curto. E ela não podia mover os dedos… Sentia uma dor na mão, mas não havia nada ali. E embora Paisano estivesse ao seu lado, na cama do imediato, a amazona nada viu, somente tiritava e segurava o toco, tremendo o corpo amolecido e o queixo hirto.  E quando ela começou a se debater, o companheiro pulou de pé. Valéria, pequenina, estava num canto chorando.

-Minha mão! - gritou a amazona chorando de dor, de pesar, de uma agonia amarga e excruciante. Foi logo tentando puxar o pano empapado de destilado e sangue. Embora Paisano tivesse tentando impedir, “Não!”,  ele ainda disse, foi impossível evitar que ela removesse as ataduras.

-Estão nos levando para a praia, Valda. Ficaremos em Evreskaya, Porto de Boaventura.- Paisano trazia um sentimento de tristeza na voz, observando o ferimento de Valda: uma grande mancha escurecida subira pelo coto e se alastrava no antebraço.



A cidade fantasma

A tripulação se despediu, como quem diz adeus a um amigo morto. Todos com seus olhares baixos e olhos cheios d’água. Com tantos sentimentos de desculpa, de saudades que sentiriam, de preocupação. Ficaram ali, esperando uma palavra, no pequeno bote. Mas não, Valda estava irada. E desceu na praia sem dar uma palavra sequer com os colegas da Marinha. Valéria estava com uma mochila, muito pesada, que a deixava curvada. Ali, muitos pertences que Paisano roubara dos Egirões, suas economias pessoais de anos de marinha, seus poucos pertences,  os objetos de Valda e comida e bebida cedida pelo Capitão, armas e munição. Baradum deu um abraço em Valéria, sua preferida. E disse que seus lugares na fragata estariam sempre ali para elas, quando quisessem voltar.

-“De mar a mar”- ele disse. 

-“De mar à mar”- a pequena respondeu, com os olhos cheios de lágrimas e a mão fazendo o sinal da onda sobre o peito.

Os três caminharam na areia fofa até o paredão de pedra, onde uma escada em zigzag levava ao terraço: o Pórtico de Boaventura. Na beira da praia, uma pira queimava, com uma fumaça preta e muito fedida.

Paisano carregou Valda no colo até o topo. Muita areia cobria a cidade. Não havia ninguém no calçadão. Valéria ainda virou para olhar os companheiros retornando para o navio, que já parecia uma coisa pequena de longe, capaz de caber na palma da sua mão. Ela poderia ter feito um gesto espiando a embarcação entre os dedos, como se a estivesse pinçando, de tão pequena. Mas estava muito triste para isso. Simplesmente disse adeus, com o coração partido.

O chão era feito de pequenos blocos de pedras, cobertos com um tapete de areia fina da praia, quase dava para escorregar ali enquanto a pedra cantava. O comércio estava fechado e as casas também, não havia pessoas nas ruas, nem animais. O que era estranho porque o sol estava à pino e as calçadas deveriam estar lotadas de gente, de vivos de todos os povos, comprando e vendendo peixe, redes, iscas, anzóis, conchas, berbigões, pérolas, tesouros marinhos. Os restaurantes deveriam estar abertos para receber os turistas. Alimentar os passantes. Deveria haver um perfume de camarão no caldo picante saindo das cozinhas de tavernas e estalajadeiras. As casas de Marinha deveriam estar cheias de homens de negócios, com seus contratos de comércio, com suas barracas na praia, recebendo mercadorias. Carregando navios. Enchendo botes com bananas, mangas e graviolas gigantes, com pedras preciosas, com animais exóticos. As pessoas deveriam estar desfilando em seus extravagantes trajes de banho pelas calçadas floridas, mas estava tudo absolutamente em silêncio e vazio.

Algumas portas demonstravam acúmulo de areia na soleira. As flores estavam secas e mortas. Não havia risos, nem música e não havia comida gostosa.

-Lá! -apontou Paisano com a cabeça. A cidade era plana, toda esculpida numa pedra azulada, exceto as casas, bem branquinhas, pintadas com madeira calcinada. A  rua principal por onde seguiam era muito larga, e após uns 100 corpos de caminhada , desimbocava numa praça central, bem arborizada, onde fora erguida uma capela e um templo, com amplo campanário. De fato a cidade era bem arborizada, uma mata farta crescia ao seu redor, repleta de animais e cachoeiras. Florestas fartas, úmidas e cheias de frutas, com árvores e plantas floridas, de cores intensas.

Paisano apontara para uma pilha no final da rua, em frente à capela. E quando chegaram perto, viram que tratava-se de um grande monte, maior que um corpo, de frutas, pão e pedaços de carne. Valéria aproximou-se e viu que tudo estava fresco.

-Alguém pôs isso aqui, há pouco.- concluiu olhando em todas as direções. Mas não havia ninguém. Pensou que poderia se tratar de uma oferenda ou ainda de uma comida envenenada. Valéria, de repente, teve a sensação de estar sendo observada.

Uma casa à sua direita. Ela pensou ter visto alguma coisa, com  o canto do olho, alguém espiando atrás da cortina. Puxando a adaga da cintura, aproximou-se com cautela. Fez um movimento brusco com a cabeça, apontando para Paisano a janela. Uma casa muito simples, de barro. Com uma vidraça fixa, coberta por dentro com um pano de linho cinza. A casa possuía o pé-direito muito baixo, certamente alguém do tamanho de valda teria que se curvar para entrar ali, como a maioria das casas em Boaventura. O Marinheiro se afastou da reta da janela, embora estivesse cansado por carregar a amiga, que era muito robusta, nos braços. Já estava tremendo os músculos.

Valéria pegou um punhado de areia do chão e caminhou semi-ereta até a parede da casa. Ali se encostou e ficou observando a janela. Agora ele tinha certeza, alguém os estava observando, a cortina balançou.

Valéria virou-se e meteu o pé na porta, com tudo e arremessou a areia. Mas a porta não cedeu, nada aconteceu, exceto que ficou cuspindo a areia que ricocheteou na sua cara. A porta não abriu e não tinha maçaneta por fora. Mas tinha frestas e ela espiou. Nas sombras, dentro da casa, havia alguém escondendo-se.

Então, congelando a espinha de todos, o sino da capela, lá no alto do campanário, começou a tocar.

E badalou tão alto, que estremeceu os ouvidos dos três. Eles contornaram a pilha de comida, com as mãos sobre os ouvidos, indo na direção do templo.

Valéria olhou para trás, e viu que as portas de algumas casas começaram a abrir.

O portão da capela tremeu, e uma corneta estridente soou.

Quando Paisano chegou perto o suficiente, viu que a porta estava entreaberta, e um  rosto os espiava ali.

Um pequeno pedaço de uma veste branca escorregou para fora.

“Um Sacerdote”, pensou Paisano, e socorreu Valda, para que aproximassem da entrada.

-Parem onde estão. - Disse o homem apontando a mão para fora da porta, ao que o Marinheiro parou, apoiando a amiga sobre seus ombros.- Digam quem são e qual a enfermidade da mulher.

Paisando refletiu, e disparou com tom de piedade: 

-Senhor, por D’us. Somos marinheiros da Marinha Mercante de Sabo! Minha amiga tem um ferimento de guerra, desembarcamos de um navio na costa à procura de ajuda. Um Sacerdote, por favor! Um Sacerdote!

O Homem bateu a porta.

Valéria veio correndo, de dentro da rua principal. 

-Há pessoas nas casas -ela disse sem fôlego.

Houve um ruído de metal e madeira, então a porta da Capela se moveu, um Sacerdote saiu correndo de lá e ficou do lado de fora, acenando com a mão para que os amigos entrassem.

-Vamos, rápido! -disse ele, enquanto todos se apressavam para dentro.- Os sinos tocaram, é  Hora dos Mortos viverem.



A  hora dos mortos

A porta da capela foi fechada às costas de todos. O Sacerdote passou uma trava de madeira pelo lado de dentro, uma corrente com cadeado nos puxadores. E defumou a porta com um incensário pendular.

-É a hora dos mortos. - ele repetiu suspirando. Valéria arregalou os olhos e ficou olhando para os lados, procurando uma janela no grande salão, de onde pudesse ver a cena.

-Você está curiosa pequenina, mas não é algo que se queira ver. É um horror a  tal procissão dos mortos pela rua, deixando suas casas, vivendo sobre o mundo dos vivos. Vá ao campanário se está curiosa. Mas aviso que não se trata de uma coisa que crianças possam testemunhar, sem que com isso tenham pesadelos terríveis durante à noite.

Valéria ficou empolgada e correu na direção indicada pelo Sacerdote, não poderia perder aquilo por nada.

A pequena achou o caminho rapidamente, embora o campanário fosse grande, o muro entre as ameias não era. E foi possível que ela visse tudo, de um lugar privilegiado. E a cena foi tão horrível quanto o Capelão lhe descreveu.

Pessoas rastejando e chorando deixavam suas casas, caminhando como zumbis. Iam na direção da rua principal, se juntando ao fluxo que seguia em direção à Capela. Maltrapilhos, com suas peles escorrendo pelo rosto. Manchas pretas, semelhantes aos fungos que via crescer nos sacos de milho dos porões da fragata. Bolhas sobre seus lábios. Crianças perdidas entre os restos humanos que vagavam na rua.

Velhos caindo e levantando, homens e mulheres, todos chorando pelo caminho, num lamúrio triste, agudo e melancólico. Valéria ficou assustada.  Não eram mortos, eram pessoas. Aquela cena realmente a chocou, porque pensou que veria mortos vagando pela rua, almas penadas e Reis espectrais. Mas não, eram pessoas abandonadas, sozinhas, sem esperança na cura de sua doença. Ela baixou a cabeça e foi saindo do campanário com os olhos lacrimejantes.

-Vamos ver a sua amiga.-e o Sacerdote prosseguiu, indicando o banco da capela para que ele a colocasse.

Duas colunas de bancos de madeira, com vários lugares, se dispunham desde a entrada do salão, até o púlpito elevado. Lá havia algumas imagens de divindades que Paisano nunca vira.

-O Senhor é um Sacerdote? - indagou Paisano, esquadrinhando o interior da capela.

-Sim e não.- respondeu o homem. - Eu sou um capelão. O sacerdote, infelizmente, está na procissão, lá no meio da rua, com os outros mortos. Mas a necessidade me fez um curador. E eu atendo aos desígnios do Senhor neste salão. Sem poder abandonar a cidade, orando dia e noite para que me seja enviada uma cura para essas pessoa. Não posso ir, sou a única coisa que lhes resta.

-Existe uma cura para a morte?- o Marinheiro perguntou descrente, quase num tom de escárnio.

-De fato não estão mortos. Estão doentes, com peste. A mesma peste que assolou toda Evreskaya. Manchas negras pelo corpo, depois bolhas, descontrole dos movimentos. Choram e lamuriam todo o dia, ao que parecem perdem a habilidade da fala e da compreensão. À noite pode-se escutar seus gritos de agonia quando a febre vem e matam-se uns aos outros. E não são capazes de fazer seus alimentos, de cuidar dos menores, dos velhos e dos doentes. Simplesmente ficam vagando dentro dos prédios. Eu sirvo comida para eles, todos os dias na praça central. Para que não morram de inanição ou acabem comendo uns aos outros. Então eles sabem que ao barulho do sino haverá o de comer e beber ali.  E comem e choram. E depois andam e choram pelas ruas da cidade. No final da tarde retornam para suas casas, e choram mais,  por causa do abandono, por causa da febre.

-Que triste…- falou Paisano, chocado e pensativo.

-Muito triste realmente. Deixe-me ver a sua amiga.- o Capelão aproximou-se, removendo o curativo sobre o ferimento de Valda.  Ele foi muito cuidadoso, mas a dor era intensa, e ao menor toque ou vibração, todos os nervos da Amazona se contorciam.

-Para mim parece uma necrose. Veja aqui -e apontou para uma parte muito escura, que cobria todo o coto e toda a parte interna do antebraço- a pele está seca, dura, apergaminhada. Bem aqui nessa ponta, onde foi feita a incisão do amputamento, que acredito que ela tenha sofrido, há uma camada esponjosa, que indica a gangrena úmida. Como se o corpo tentasse inutilmente irrigar a região. O cheiro não está bom, começando a formar uma grande bolha na parte inferior. Ela está assim há muitos dias?- o Capelão foi se erguendo estralando as espaldas.

-Ontem, Senhor.- o marinheiro estava cabisbaixo.

-Impossível! - Saltou o clérigo.- Há algo mais. Essas lesões podem significar uma doença?- disse se afastando.

Valéria vinha entrando no salão.

-Pequena- falou Paisano- me entregue o metal verde , que está aí embrulhado.

Valéria sentou-se em um dos bancos e revirou a mochila atrás do embrulho. E quando chegou perto do capelão, o pano desvelou a lâmina verde, e aquele brilho cansado e vicioso saiu, inundando a câmara com seus raios mórbidos.

O Capelão ficou estarrecido e saltou para trás, fugindo da lâmina.

-Ela se machucou com isso. Cortou o dedo. Então lhe amputaram a mão. Mas não adiantou, a coisa se espalhou, essa mancha preta. Seja lá o que for.- Paisano desabafou, preocupado com a reação do capelão.

-É a peste… O brilho… Os olhos.. - balbuciou o capelão-. A mesma luz verde!- foi dando para trás e esbarrou em um banco.- Vocês não podem ficar aqui! Não há nada que eu possa fazer por ela. Vão embora ao cair do sol, quando os mortos se recolhem. Peguem uma caravana, ao final da cidade, para o oeste. Sempre há uma última caravana saindo de Evreskaya.

O capelão foi se distanciando, de costas, até entrar em um corredor escuro. Ouviu-se um trancafiar de portas. Depois, nada mais.

Valéria pegou um jarro sacro, que repousava atrás do púlpito, cheio de água, deu para que Valda o bebesse. Ela também dividiu uma comida e ficaram aguardando o cair da noite.

Então, quando tudo o mais parecia quieto, ouvia-se um lamúrio ao longe, muito longe, abafado, cortando espaçadamente os ares é que sentiram que chegava a hora.

Paisano colocou Valda sobre suas costas enquanto Valéria abriu os portões da Igreja. Já não havia mais ninguém na rua e a noite não ia alta, o sol acabara de se deitar.

-Penso que estamos seguros.- Valéria foi espiando. Só se viam os rastros da procissão no tapete de areia que cobria as pedras.- Paisano, eu os estou ouvindo, eles choram. É muito triste! - a pequena estava magoada.

-Vamos seguir adiante, temos que tomar uma diligência para o oeste.- Paisano foi apertando o rosto, em razão do esforço, ignorando a situação para poder dar forças à amiga. 

Valda, desde o meio da tarde, iniciou uma febre que não cedia. Então dormiu e não acordou mais.

Valéria foi acompanhando o movimento na cidade,que era nenhum. Mas pode ver, por detrás das janelas e das cortinas puídas, todos os olhos dos mortos vivos que acompanhavam a passada dos amigos. Na escuridão de suas casas, enquanto gemiam e choravam, seus olhos brilhavam na escuridão, com uma luz verde fantasmagórica, tal qual a emanada pela lâmina.



A ultima caravana de Evreskaya

O Preletor, capelão, ou seja lá o que era aquele homem no Templo, nos mandou para o meio da selva.- resmungou Valéria, cortando a mata com sua singela adaga.

Calma pequena, esses caminhos devem ter se fechado. Aqui é quente e úmido, bom para crescer o mato com rapidez.- Paisano estava a ponto de desistir, Valda estava muito pesada. Mas o marinheiro persistia, até o fim de suas forças.

E esses mosquitos, são enormes! Pequena como sou, vou ficar sem sangue depressa.- continuou resmungando, batendo no rosto para afugentar um pernilongo.

Você está aí resmungando, quem faz isso é a Valda!- retrucou Paisano, rindo.

É que eu estou sentindo falta dela.- Valéria ficou muito triste, rapidamente.

E aquela capa, Valéria, quanto você acha que vale?- perguntou o amigo, se referindo à capa que descobriram, tornava pessoas invisíveis.

Os olhinhos da pequena brilharam, e um sorriso invadiu seu rosto: “Não vou vendê-la, oras! Vou usá-la e apunhalar pelas costas, e entrar nas salas sem ser vista, ouvir as conversas  secretas, os segredos dos confessores. Vou colocar o pé na soleira das portas e derrubar Reis e Rainhas, vou colocar meleca nas taças de vinho, e segurar objetos nos banquetes, os suspendendo no ar. Vou aconselhar os que oram ao seu deus aos pés da cama, lhes dizendo o que fazer.

Paisano ficou assustado, ela realmente tinha planos para a capa.

Eles andaram uma noite inteira pela mata, parando para descansar e beber água, somente duas vezes. Pela manhã, quando o céu estava alaranjando no leste, a mata foi ficando cerrada, e ao longe, se pôde ver, uma estrada, meio encoberta pela vegetação.

Quando aproximaram-se notaram que o capim estava alto, como se nada passasse por ali há muito tempo.

“Veja”, disse Paisano, apontando para uma placa, tapada de vegetação.

Então ele deixou valda sobre o pasto morno, e apoiou sua cabeça sobre a mochila de Valéria. Os dois foram até a placa e removendo as trepadeiras que cresciam ali, leram: “Ultima caravana de Evreskaya sai hoje”.

Mas o Capelão nos disse que sempre haveria uma última… O que faremos?- perguntou Valéria, enchendo os olhos de lágrimas.

Calma, você está muito nervosa. Fique aqui e descanse, eu vou voltar com algo.- Paisano conferiu as adagas na sua bota e pegou a capa de dentro da mochila - Se eu demorar um dia, ainda assim você espera por mim. Não saia do lado de Valda e se a caravana chegar, peça que aguardem o meu retorno. Pague por isso se for necessário.

Paisano passou a mão na cabeça de Valéria. E ela ficou ali, arrancando pasto do chão, e olhando enquanto seu amigo se afastava e desaparecia no meio do mato.

Valéria, minutos depois, percebeu que estava com fome. E quanto mais pensava em outra coisa, mais a visão de uma batata quentinha vinha à sua mente.

A pequena olhou para os lados, procurando por alguma árvore frutífera. Mas ali não havia nada. Tampouco um bicho, um pássaro que pudesse assar e roer-lhe os ossinhos. Nem ovos. Nem raízes… Nem batatas quentinhas. Ela revirou a mochila e viu que as provisões cedidas por Baradum durariam por mais um ou dois dias. Então ela quis poupar. Esperar Paisano para fazer uma ceia.

Foi aí que viu um capim alto se movimentar mais adiante. E tudo ficou parado novamente. O pasto tornou a sacudir. “Uma lebre ou uma cobra?”, ela se perguntou.

Então se levantou, e foi indo, bem devagar, na direção do tufo de pasto.

Não era lebre, não via orelhas. Uma cobra? Possivelmente sim. Então ela pegou as adagas, uma em cada mão, exatamente como Paisano lhe ensinara, e vum, vum, arremessou as duas, uma após a outra. E elas cravaram no alvo.

Valéria saiu correndo e caiu de joelhos na moita: um rato! E dos grandes!

Já comera isso em um navio, por uma aposta. E não era bom, mas iria servir se bem temperado.

A  Pequena esfolou o bicho, tirou as tripas, e enfiou um galho duro e fino, de fora a fora no animal. Pôs melaço, que ganhara de Baradum, apertando bem a carcaça do rato.

Cavou um buraco e jogou gravetos ali. Pôs fogo com o isqueiro e a pedra, e quando o fogo amainou, colocou o rato no espetinho, bem em cima do calor. E ficou cuidando de Valda, conversando e jogando todas as porcarias que encontrava no fogo.

O churrasco ficou pronto. Ela comeu e tentou alimentar a amiga. Porém Valda só quis água e voltou a dormir.  Valéria ficou treinando seu arremesso de adaga, riscou o tronco de uma árvore próxima (“os mortos vivos estão em Boaventura” e “De mar a mar”), pisoteou e comeu algumas formigas que insistiam em se aproximar de Valda, e até cantou umas canções. Contou para a amiga as lembranças de suas aventuras.

Mas Valéria estava preocupada, era noite e Paisano não voltara. Teria que se recolher para um lugar abrigado, para que pudessem repousar à noite.

Valéria dormiu quando a madrugada ia alta. Ficou insone, cuidando da companheira febril. Mas no início da manhã, Paisano chegou, com dois cavalos relinchando alto e tirando a pequena do sono.

Os encontrei numa fazenda abandonada, atrás de uns montes ao sul, à meio dia de distância. Vejo que você esteve preparada, há uma fogueira adiante. O que cozinhou?- Paisano amarrou os cavalos e foi deitando no chão, bocejando.

Um rato -disse Valéria esfregando os olhos e bocejando.

Muito bom, são crocantes! - ele ainda se esticou e colocou a capa sobre as amigas. As duas dormiram quentinhas, invisíveis.- Vamos descansar um pouco e ao final da manhã, partirá a última caravana de Evreskaya, sob meu comando!

Valéria ainda custou um pouco para pegar no sono, e olhando a capa pôde ver, que estava suja de sangue fresco, assim como a camisa velha do Marinheiro. Ela sabia que Paisano havia corrido perigo para conseguir os cavalos. Ele sempre queria protegê-la. Mas fazia questão de toda vez lhe dar um último sorriso com ternura, fazendo com que ela pudesse ser preservada de qualquer necessidade. “Sempre um pai…”, ela pensou antes de dormir com o sol no rosto,  deixou rolar algumas lágrimas, para desabafar o peito apertado. Afinal ela estava ali, mas ninguém a estava vendo.



O pântano dos Kolbis


A voz saía pela garganta de forma contínua, para que o tremelico da carroça sobre as costeletas da estrada fizesse o som modular. E vinha fazendo isso a manhã toda, desde o sul de Represagorda, onde trocaram seus cavalos por uma carroça de burros.

Ficara difícil carregar Valda no lombo do cavalo, desconfortável e exposto à intempéries. O carroção tinha toldo, ainda que cheio de buracos, mas Valda vinha deitada no feno da maneira mais confortável possível. Valéria, estava assombrada por um terrível e incontrolável tédio, enquanto Paisano tocava os burros através das cordas do balancinho.

E vinha Valéria falseando, tremendo a voz com o peito, o que tornara-se insuportável aos ouvidos de qualquer um. Mas seu amigo estava ao lado e não se importava, já conhecia a pequena que criava há tanto tempo.

Vamos pelo pântano e depois para Zarmund entregar o trabalho. Um pequeno barco de juncos fará o serviço de nos transportar até o outro lado da Cauda do Crocodilo. Você nunca foi lá Valéria, é um lugar perigoso, mas muito bonito. Aos pés de Ankset as águas claras do mar se encontram com a torrente castanha dos pântanos dos crocodilos, e assim, bem ao norte no horizonte é possível ver o grande vulcão vermelho cuspindo a nuvem negra eterna, além no mar.

Valéria ouvia a tudo, mas não deixava de emitir o som irritante.

No final da manhã alcançaram a estrada que levava aos pântanos de juncos, onde o caminho dava uma guinada forte à direita e para trás.

E as costeletas de areia seca deram lugar à pedras e pavimentação antiga, pequenos cubos de granito enterrados no solo molhado do lar do Kolbis.

Valéria aproveitou a constante trepidação para continuar a sua sinfonia do tédio, e se não fosse por isso teriam escutado uma flecha zunir rasgando uma outra parte da cobertura do carroção.

E então veio outra em seguida, acertando a madeira curva, que segurava o toldo. Só então Valéria parou e puxou o arco, observando a vegetação de gramas altas que anunciava o início do pÂntano.

Estamos sob ataque, despontou a pequena.

Paisano seguiu tocando o carroção, com tranquilidade: estamos sob ataque de um porco imundo e cego, ele brincou.

Veja,-  ele apontou a flecha cravada no cavaco da carroça-  é uma agulha de tricô!

Então, eis que salta no meio da estrada a jogar pedra nos burros, uma velha Kolbi silvando sem parar.

O que arranca gargalhadas de Paisano, enquanto Valéria desarma o arco e desce, caminhando na direção da Kolbi.

Ei vovó, ela diz e dá um assovio, se escorando com o ombro na roda de madeira. Saia da estrada, queremos chegar ao rio e ir embora.

A Kolbi ficou resmungando e aos poucos acabou por se acalmar, mas não largou as pedras que segurava com o avental.

Ninguém passar. Disse ela em comum, com a boca longa de crocodilo, saltando saliva para todos os lados.

Valeria argumentou que trazia uma doente, que precisavam passar pelo pântano se quisessem que a amiga vivesse para chegar a algum templo e ser curada.

Ninguém passar. Ela ameaçava, segurando a maior pedra que estava no avental.

Valeria arquejou as sobrancelhas e foi caminhando lentamente: Seguinte vovó, a Senhora nos dá livre passagem até a Cauda do Crocodilo e nós vamos lhe dar um arco e flecha decentes, para não precisar estragar as suas agulhas de tricô.

Paisano deu um olhar fulminante para Valéria. Quê? - ela perguntou- o arco é da Valda e acho que ela não vai mais conseguir usar agora, sem a mão...

A velha Kolbi pensou e pensou, então foi devolvendo lentamente às pedras do avental ao chão. Eu frecha. Ela disse, apontando para o carroção. Eu, frecha.

Mas a Velha Kolbi foi puxando Valéria e a levando em direção ao barranco enquanto repetia “eu frecha” sem parar.

Foram descendo a encosta que guinava para o arroio, e logo começaram a chapinhar no chão molhado entre o pasto verde e na altura da cintura. E adiante foi que, descendo um buraco na erosão da encosta da margem a Velha Kolbi a levou para a sua casa. Uma toca, uma úmida e asfixiante toca de Kolbi repleta de ossadas, à frente, é claro, de uma lareira e uma confortável cadeira de balanço feita ossos humanóides.


Eu Frecha

Valéria foi empurrada na cadeira de balanço, enquanto a Kolbi a embalava com força para frente e para trás. E então a puxou com força e a levou para a ossada, entregando um fêmur carnicento para que a miúda roesse. Eu frecha, repetia.

A pequenina deu um sorriso e fingiu comer o osso, virando o nariz pro lado. Mas não era o osso, era a toca, era a boca da crocodila, tudo fedia naquele chão fendido que a Kolbi tinha por lar. E foi que ajeitou uma palha e se aninhou feito bicho e ficou olhando com satisfação a jovem fingir que se alimentava.

Quando pensava em saír, uma sombra imensa se postou ante o buraco e era Paisano carregando Valda para dentro da toca.

A kolbi levantou e atiçou o fogo e jogou uns ossos nas chamas. Uma fumaça branca correu em direção ao teto, mas ninguém sufocava, o ar subia por um buraco e desaparecia encosta acima.

A Kolbi foi chegando perto de Valda, fazendo sons de pena. Segurou o braço da salteadora nas alturas e depois largou, constatando que ela não estava bem.

Foi estalando o bico e grunhindo no, no, no, no, non.

Foi indo na escuridão do corredor adiante da lareira e voltou de lá com usando uma cabeça imensa de crocodilo por cima da sua e uma cajado de osso cheio de dentes e espetos incrustados.

Ela começou a reza aos pés de Valda, enquanto Paisano curiosa encostou-se confortavelmente para assistir ao espetáculo.

A velha cantou, assustou, fingiu atirar uma flecha em Valda.

E se viu vencida.

Em seguida prestou atenção ao coto, e virando em direção ao companheiros disse, Sete.

Após descansarem durante a noite, foram rastejando para fora da toca, mas a Kolbi não estava lá, mas estava nas margens do arroio encerrando a atadura de uma canoa de juncos fresca, que cozera durante a noite.

Vendo que estavam acordados, ela foi rebolando e subindo a encosta, passou pelo meio dos dois e entrou no buraco.

A Kolbi então começou a entoar a sua canção, como que com as energias renovadas, o que surtiu efeito, pois valda foi abrindo os olhos aos poucos, muito embora ainda prostrada e pela dor comprometida.

Mas a única coisa que pôde dizer durante os delírios de febre, foi que tivera um sonho, leve-me para Ankset, ela dizia, leve-me para Ankset, tenho que destruí-los.


Uma tripulação Rebelde

A música estava tão alta que podiam gritar as palavras que deveriam permanecer em segredo, o teor daquela conversa estava seguramente oculto pela agitação da taverna e quem quer se aproximasse diria que não passava de uma celebração qualquer, com álcool e os prazeres comuns às raias do cais do Porto da Morte.

Ninguém desconfia de homens encapuzados batendo suas canecas nos bares mal iluminados e cheios de piratas nas ilhas acima do continente. Planos, pilhagens, rebeliões e motins foram sempre planejados assim e por loucos errantes e desertores vivendo à margem da legalidade e além dela, os únicos capazes de integrar as equipagens mais perigosas de todos os mares. E se havia algum lugar onde pudessem viver tão longe das leis e dos olhos dos Senhores da Guerra, esse lugar era nas Ilhas Piratas ao Norte, muito próximas de Ankset.

-Perdi meu navio, minha carga e a maioria dos meus marujos, -confessou Baradum, entornando um caneco de cerveja de aveia, muito dela escorrendo barba abaixo. Depois bateu-lhe o fundo sobre a mesa e acenou para o taverneiro deitar mais espuma ali, apontando o dedo para baixo.

O encapuzado com quem dividia a mesa ficou atento.

-Quarenta homens bons e legalizados. É difícil uma equipagem assim, você tem que ir longe para juntar homens com essa etiqueta porque o corso da Marinha de Sabo não acolhe qualquer um. Leva anos para tirar do lombo de um homem capaz de ir ao mar sem destino o ímpeto de roubar quem lhe ponha o pão na mesa e a espada no punho. Diga a qualquer um desses, que são capazes de matar a própria mãe para viver, que devem respeitar as cobertas altas e rirão na sua cara e depois mijarão no seu cadáver.

-É assim no início, mas você tem que ser alguém que inspire um objetivo nas suas vidas, é isso que procuram. - retorquiu o encapuzado, empurrando uma grande nuvem de fumaça debaixo do barrete.

- Ah Sim! Sei disso, mas não tenho como empurrar o objetivo de que devem roubar e lhes dizer ao mesmo tempo que devem roubar somente dos outros.

-Lealdade, Baradum. Primeiro deves ensinar-lhes lealdade. Um punhado disso na vida do homem faz milagres. - completou, incinerando novamente a fornalha do cachimbo, quando uma breve luminosidade revelou o rosto cinzento e cheio de veios negros do encapuzado, enquanto mantinha os olhos fechados, aprazendo-se do seu fumo.

-São paus tortos, meu caro. Por mais que se endireitem na ponta da vara é isso que são, paus tortos. Essa matéria prima é difícil de trabalhar e leva tempo até ser vergastada. - uma garçonete encheu a caneca do Capitão, enfiando os peitos corados no meio da conversa. O velho deu um sorriso e bateu a aba do chapéu, colocando uma moeda no cofre de carnes quentes e gelatinosas. - Foi-se tudo o que eu tinha naquela merda de Corso mal sucedido. 

-Eu já sei.- o encapuzado tentava garantir que o Capitão não contaria a mesma história mais uma vez, mas ele estava bêbado e cheio de mágoa, não seria a má vontade do homem cinzento que iria impedir a mesma rezadeira pela enésima vez.

-Não, eu não queria ter ultrapassado o cabo da ilha Elefante, mas saímos de Sabo fazia tempo e não conseguimos muito serviço. Uma dívida não seria boa na chegada à Companhia, porões vazios sem óleo… Não! Nada disso é bom, meu amigo. Mas não foi aí que começou a má sorte, os ventos vinham soprando ruins para minha equipagem desde que zarpamos de Portogaivotas. Acho que essa parte da viagem eu não lhe contei.

-Não, não contou. -concordou o encapuzado, mandando deitar àgua quente sobre as ervas da sua caneca.

-Eu sabia! - prosseguiu o capitão engolindo a cerveja e pedindo que trouxessem mais com um aceno do chapéu. - estávamos em Portogaivota com os porões quase vazios esperando a maré subir. Mais uma noite e íamos direto para Ilhadura com um carregamento de melaço e carvão. E minha maruja veio chorando com aquela cara condoída amolecendo a mim e a meu coração fraco, ela disse: “Por favor Capitão, deixe-o vir à bordo mais uma vez. É somente uma carona até Terralta.” - e foi encenando a fala com uma voz fina. - Eu não devia ter dado ouvidos, não mesmo. Você sabe quem é, é aquele pirata espalhafatoso que expulsei da minha tripulação e que acabei lhe indicando para um serviço.

-Eu sei, ele nunca terminou o trabalho. Mandei homens para o ajudar, mas soube que encontrou um espião no caminho e puseram uma recompensa sobre o que mandei pegar, uma recompensa muito maior do que a minha, prometida por aquela maldita traidora das Terras Abissais.

-É esse o homem que ele é. Nós o deixamos lá e quando voltou trouxe uma maldição consigo que me levou uma boa maruja, Valda, e minha prospecta mais promissora e tive que deixá-los em Boaventura.

-No meio dos mortos? - o encapuzado remexeu as ervas e a água quente enquanto um vapor esverdeado subiu além das bordas da caneca.

-Mortos? - perguntou Baradum arqueando a sobrancelha, como costumava fazer ao mirar a luneta.

-Deixe pra lá… - deu de ombros e gesticulou com as mãos pedindo que seguisse.

-Bem, os deixamos em Boaventura e depois partimos com a tripulação desfalcada e sob os rumores de que o navio havia sido amaldiçoado e toda a crendice que é sabida pelos homens dos mares. E fomos até Ilhadura sob muita tempestade e quando chegamos no porto o contratante havia empenhado uma nota sem fundos e estava tomado de dívidas, nada de pagamento, somente bens penhorados. Yar, yar. E nessa situação o que um homem pode fazer, meu caro, de mãos vazias e com uma carta de Corso próximo às águas inimigas? Sim, nós fomos para uma linha reta no horizonte, esperando os ventos do norte encherem nossas mestras. E no meio da viagem descobri uma clandestina, uma mulher proibida com o bucho inchado. Juro que pensei em atirar longe antes que alguém visse, mas foi tarde demais porque os marujos se alvoroçaram e acharam que o mau agouro maior seria alimentar os tubarões com a mulher embuxada. Então nos arriscamos a ancorar perto da Floresta dos Espinhos para descarregar a maldição por lá. Depois empurramos o barco mais para o norte e foi aí que tudo deu errado mesmo: de tantos navios para encontrar naquelas águas eu vi a Viúva Molhada pelo buraco da luneta, justo quando as águas mansas começaram a encrespar e o vento morno das ilhas ia ficando forte e de súbito mais gelado. Mas meus olhos brilharam, sim. Eu vi meu velho encouraçado trançando as águas e eu o queria de volta. Pude ver o Capitão Torn no tombadilho e entramos em perseguição. “Preparar a praça de armas”, eu gritei, “Canhões de milha, cuspidoras de betume..”, fui dando as ordens e você sabe, eu conhecia a Viúva e sabia exatamente como tomar meu próprio navio de volta. Então Bum, Bum, Bum, as balas voaram e caíram sobre o convés. E subimos sobre as ondas para abalrroar o inimigo com nossa quilha reforçada. Ah sim! Mas a tempestade vinha atrás de nós, entortando as águas e rodopiando nas alturas e veio aquela tromba dágua levantando-se do mar como o próprio Capitão Afogado, e veio na nossa direção. Os cavacos seguiram voando e então… Ah, meu amigo, a coisa ficou feia! O passadiço da Viúva explodiu nos ares enquanto uma mulher, uma serpe, eu não sei o que era aquilo, ganhou os céus e atirou algo como um fogo liquído e derreteu um marujo antes que ele pudesse morrer e foi lançando aquilo em todas as direções. E uma criatura a seguiu correndo pelo convés do viúva, urrando e devorando a tripulação, tinha a face de um homem, mas era um demônio, era isso que era. E tinha um capa vermelha com eles e embora a tempestade estivesse feia ninguém pode negar o horror que presenciamos. E então colidimos e as águas tombaram meu navio com as mestras mergulhadas, o passadiço partiu-se ao meio e foram parar todos no olho das águas. Eu só pude ficar sobre o casco, depois que tudo passou veio uma calmaria na manhã seguinte enquanto eu via espalhados pelo mar os restos da tripulação esquartejados, outros homens gemendo agarrados em pedaços de madeiras, barris e toda sorte de coisas flutuantes. E ao longe, compadecido na nossa miséria, mas quase naufragando também, ia o Viúva Molhada derrubando  uma das suas baleeiras em um sinal de respeito de dois velhos amigos que viveram juntos no mar por muito tempo. E foi assim que cheguei aqui com um punhado de homens.

- É uma bela história. - disse o encapuzado sorvendo a mistura de ervas.

-Ah, é sim. Quisera não fosse minha. -emendou o capitão deitando mais um caneco de cerveja.

-E o que pensa em fazer agora? Não deseja ir comigo para Zarmund? Tenho um serviço por lá.

-Ah não! Eu não sou um desses homens que você crava esse seu ferrão amaldiçoado, com o perdão da expressão, meu amigo. Sou um velho do mar e se não estou batendo as ondas meus pés ficam tremendo. Se eu voltar para Sabo terei mais dívidas do que poderei pagar na vida, a Marinha certamente já botou um preço na minha cabeça e não quero passar por mais um julgamento, não de novo.

-isso não responde a pergunta que lhe fiz.

-Ah, eu sei, yar. A sabedoria às vezes está em desconhecer a resposta. Mas tenho em mente arrumar à moda antiga um navio, uma tripulação rebelde e viver onde a lei não me toque até daqui há vinte anos, quando o Código Marítimo não poderá mais me alcançar com suas penas. - e passou o dedo na garganta e esticou o lábio, o velho sinal do pior fim do marujo.

-Vinte signos é muito tempo, Capitão.

- Ah é? E eu não sei? Não vou voltar rastejando e implorando por minha vida para Ben Adam, Egídio, Dágoras ou seja lá quem for, como fiz no passado.

-Dágoras está morto. 

-E você também! - retorquiu o Capitão. - Mas como assim Dagoras está morto?

-Seu coração não bate mais.

-Por certo, é o que acontece a todo homem que se vai. Mas como?

-Seu filho o matou para tornar-se rei. - e o encapuzado cerrou os punhos com força, esmagando o caneco de metal que segurava em uma das mãos. - Tenho certeza que Edir está metido nisso.

-Calma, amigo, não vá longe! Que fofoca é está?

-Eu já fui, o feri de morte com uma lâmina abençoada, mas ele não se foi e tampouco tornou-se um dos meus. Está lá, vivendo uma vida de Rei sobre o corpo do pai e destruindo toda a paz que trouxemos aos povos livres. E você sabe que meus punhais matam qualquer coisa, qualquer um, exceto…

-Eu sei, eu sei…- interrompeu o Capitão tentando afastar aquele assunto sombrio. - aquela velha lenda sobre Reis montados em animais e portais para o desconhecido. E com base nisso enfiou uma faca suja no rapaz? Seria mais eficaz matar aquele padre virgem e petulante do qual nunca gostei. Tinha que estocar uma adaga em um Rei… Mas é isso que você faz, depois sai correndo e volta para seus salões cheios de limo, deixando todos no caos, um caos novo, mas um caos mesmo assim.

-Mais ou menos isso. Sou a justiça, a mão que segura a adaga, o resto é com os homens. Trago somente um pouco de equilíbrio ao mundo, já que ninguém é capaz de se opor. Um dia pensei que esta tarefa não me pertencia, queria somente glória e riqueza, mas depois da guerra, bom… as coisas mudaram e conheci meu destino perante os deuses.

-Você fala dos homens como se nunca houvesse sido um. - o Capitão tomou o cachimbo da mão do encapuzado e deu uma baforada, mas imediatamente tossiu e se engasgou com a erva forte, devolvendo-o para o dono. - Nunca dirá aos outros que ainda estás, digamos, vivo, ou quase isso?

-Talvez nunca tenha sido verdadeiramente um homem e não, não direi.

-Ficaste magoado com os padres, não é? Arrumaram suas trouxas, entraram nas torres, templos, escolas de mistérios, fizeram um mingau de religiões e mandaram todos dizer que só existia um Deus à partir daquele dia, diga que não lhe afetou os brios? - Baradum piscou o olho e entortou a cabeça para ver o rosto do convivas, mas só viu a fornalha do cachimbo rebrilhar numa grande baforada, enquanto um silêncio profundo se fazia. O capitão ousou ir adiante - O seu Deus assassino acha o mesmo, eu garanto…

Quando finalmente o encapuzado pareceu deixar sua zona de conforto, a voz metálica ficou mais intensa e menos amigável, o que fez o capitão engolir em seco o seu gole de cerveja:

-Mate os filhos dos Deuses, meu Deus disse. Mate os Reis de Sangue Antigo, os tiranos que têm monstros habitando sua boca, porque eles destruirão o mundo. Então capitão, se ama ter a cabeça em cima do pescoço deve compreender que devemos amar aos vivos e não aos Deuses, eu sou um instrumento do meu Deus, mas não é amor que ele demanda, nem obediência, mas uma lealdade sincera para com o mundo e o equilíbrio das forças. Foi por isso que Ele fez de mim a mão que segura adaga nas sombras, a mão que salva os homens da tirania, o carrasco da justiça que sangra.

-Mas seu Deus também fala pela boca de um homem, de um Sacerdote. eu conheço aquele homem saburrento que comanda a Torre Esmeralda, meu amigo, a sociedade Esmeralda é sua, mas não negue que a Torre Esmeralda te traz na coleira...

Um dos homens de Baradum aproximou-se caminhando sério entre os bêbados e toda a corja que se apinhava na taverna, dizendo algo no ouvido do Capitão que fez suas sobrancelhas arquearem.

Ele bateu na mesa e levantou de imediato e foi indo em direção à rua, coçando a cabeça por cima do chapéu de couro fervido e imensas abas. E ganhou a viela por onde ia caminhando o marujo, que saltava e apontava na direção de um beco ao lado.

-Ali, ali! - Orco mostrava um jovem sentado ao chão com a cabeça baixa entre as pernas, cercado pelos homens de Baradum que restavam, já estava um pouco escoriado e também tinha uma ave imensa sobre o ombro e uma bandana preta na cabeça. - como lhe disse, o rapaz veio dizendo que um tal de Mestre Egídio o mandou encontrá-lo, Capitão, mas já tinhamos dado umas pancadas nele antes disso. -o marujo desceu o chapéu sobre a barriga aguardando Baradum dizer alguma coisa.

-Como se chama, rapaz?- indagou o velho do mar, preocupado, erguendo-lhe o rosto pelo queixo e avaliando o estrago.

-Israel, Senhor.

-E o quê o traz aqui?

Então quando o jovem ia abrir a boca, espantosa e supreendentemente, uma voz refinada deu a resposta e não era o rapaz:

-Mestre Egídio, O Decano que veste a Toga Trabea, o manto sagrado de Caxemira lilás e púrpura, possui novecentos anos, trezentos no Decanato, Presidente da Guilda dos Artífices e Cientistas. Sua estatura corresponde à meio corpo de um homem, um exemplar médio dos ananicos, vive na Última Vila Mais ou Menos ao Norte, onde preside a guilda dos cientistas e o Conselho Unido dos Povos Livres, eis que foi conduzido coercitivamente pelos guardas da Fortaleza, que na sua diligência infringiu muitos artigos da Declaração dos Direitos dos Vivos, entre outras legislações, abusando do poder no qual foram investidos ao  cumprir ordens no Quarteirão Principal onde fica a sede da instituição, de onde saímos ilesos, esse jovem rapaz e eu. “Procure pelo capitão Baradum, cobre a dívida que me deve”, Mestre Egidio gritou isso antes de ser conduzidos para fora do prédio. E segundo as anotações do diário pessoal do Decano, ele exerceu o voto de minerva a seu favor no tribunal penal marítimo para os atos da guerra dos vinte anos, onde o Senhor, Baradum, foi absolvido e incorporado na Marinha Mercante Sabo, sob as recomendações do Decanato. Então aqui estamos trazidos por uma série de acontecimentos caóticos que a recente teoria da partícula/onda do Dr Petrônius Astralopicus pode muito bem explicar.

Então todos entreolharam-se, arregalando os olhos e arqueando as sobrancelhas, subindo e descendo os ombros.

-Que papagaio magnífico você tem aí, rapaz. - disse o capitão.

-Esse é Giovani de Trivontela, esteta e sei lá mais o quê. E se fosse o Senhor não o chamaria de papagaio, aprendi isso da pior maneira possível.- e levantou a bandana que lhe tapava a orelha esquerda, tomada de feridas e faltando pedaços. Ao que a ave lhe respondeu crocitando estridentemente  no ouvido, e tentando lhe bicar uma vez mais: “mentira, mentira, mentira, cróóóc.” -  Israel recolocou a bandana no lugar. -E essa não é a coisa mais estranha que veio comigo, consegui chegar aqui com ajuda de um guia.

“Carniça, carniça, carniça, Cróóóc”, arremedou a ave enquanto um velho cheio de quinquilharias saía das sombras deitando o tronco numa mesura:

“Aos seus serviços, Senhor.”.


Ser ou não ser

A caveira rangia os dentes e a luz da fogueira reluzia na sua face embarrada iluminando as órbitas vazias e uma voz estridente dizia enquanto o maxilar da caveira se movia em meio à penumbra:

-Eu sou Cadêncius e vim levá-lo para os mortos! Tu me apunhalaste pelas costas com um espeto cego. Fui amaldiçoado pelos cabungueiros da quadra Leste por crime que tu cometeste, quero vingança! - e uma risada ecoou pela toca, enquanto a caveira movia o maxilar bem na cara de Paisano.

-Valéria, você é insuportável na maioria das vezes e nas outras consegue ser muito inconveniente. Me deixa dormir! - e o aventureiro virou para o lado colocando as mãos sobre os ouvidos, aconchegando-se perto do fogo.

-Ai! Só estava trazendo um pouco de humor para essa toca fedida cheia de gente morta. E eu lembro de quando matou Cadêncius, é engraçado como isso sempre vai te assombrar. A primeira morte é coisa que na maioria das vezes nos deixa em dúvida e é injusta porque quase nunca deveria ter acontecido, é um erro de julgamento provocado pelo medo e por pitadas de falta de bom senso, no seu caso, altas doses de falta de bom senso.

-Olha Valéria, - dizia a caveira enquanto a pequena a movimentava como um fantoche - o pirata acha melhor ficarmos quietas, ele nos acha irritante e acha que devemos comer o pó dos séculos em uma tumba em algum lugar. A nós nos basta animar a vida dos vivos e viver nossas aventuras nesse mundo pequeno, você não acha?

-Ah sim! - respondeu Valéria para si mesma- a nós nos basta viver grandes aventuras e alegrar a vida de nossos companheiros enquanto nossa amiga morre de uma maldição desconhecida dentro de uma toca de kolbi porque o seu companheiro Paisano quer dormir ao calor da lareira.

-Ah! -respondeu a caveira- isso é coisa de covardes! É coisa de marujo da companhia geral de comércio do norte. A marinha de sabo só tem marinheiros valorosos e nós somos assim! De mar a mar!

-De mar a mar! - emendou a pequenina.

-O que vamos fazer para salvar a vida de nossa amiga?- perguntou a caveira.

-Ah! Nós? - respondeu retoricamente Valéria- vamos salvar Valda e tirar Paisano do estupor que se encontra sempre que deve tomar as decisões mais importantes!

-Mas você é uma heroína mesmo, grande Valéria! - enalteceu a caveira.

Então valéria jogou o crânio e o maxilar no fogo, fazendo saltar faíscas e fagulhas de madeira incandescentes por todos os lados. Paisano que estava ao lado foi atacado por dezenas de pequenos fragmentos de chama e saltou do chão, batendo no próprio corpo e apagando os chamuscos com as mãos, topando diversas vezes com a cabeça no teto de barro e raízes.

-Vejo que está disposto! Agora vamos, vamos salvar nossa amiga!

-Valéria, escute! - o tom de Paisano era de quem perdera a paciência, erguendo o dedo em riste. - Valda está morrendo e nenhum tônico que conhecemos é capaz de curá-la disso. A culpa é minha, eu trouxe a arma, eu deixei que ela a pegasse. Agora estamos aqui e nossa melhor saída é uma Kolbi que vive nessa toca asqueirosa que cheira a traseiro de gentil de Bar, ela disse que conhece a doença e pode ajudar Valda e nós vamos esperar que ela retorne com o que for preciso!

Valéria se encolheu e encheu os olhos de lágrimas. Sentou-se à beira da fogueira agarrando os tornozelos e repousou o queixo hirto sobre os joelhos:

-A kolbi não disse que sabia que doença Valéria tinha e não disse que sabia a cura. Ela disse: “cavalo branco carne preta. Carne preta come carne cavalo branco. Mim arco, mim sabe cardo tira carne preta.”. De onde você tirou a ideia de que ela sabe uma cura? Para mim ela estava planejando uma sopa para comer a Valda!

-Os kolbis chamam mulheres Amazonas de cavalo branco. Se você olhar o braço de Valda verá a carne preta. Há muito as amazonas travaram uma guerra contra Ankset e os Portos da Morte, quando os Kolbis ainda eram os soldados servis do norte próximo. O resultado você pode adivinhar, terminou com o Pântano vazio, as Amazonas cheias de armaduras de couro de crocodilo, clavas e maças adornadas com garras e dentes. Fim. O que aconteceu depois foi que o Porto da Morte conseguiu vencer as Amazonas, mesmo sem um exército. Elas voltaram para os subterrâneos do deserto, seja lá onde for. Se a pergunta que importa aqui é “como Ankset venceu as Amazonas?”, essa Kolbi sabe a resposta. E acho que envolve aquela arma estranha que roubei de um assassino que havia a resgatado das ruínas de Ankset.

Então ficaram ali, aguardando o retorno da anfitriã, enquanto finalmente Valéria pegara no sono.

Paisano foi alimentando o fogo e muito embora Valéria viesse acreditando que ele não estava preocupado com Valda fazia três noites que não dormia, vigiava sua febre e a tapava quando as cobertas escorregavam no meio do sono.

Ao final do dia Valéria escutou o guinchar na entrada da toca e o barulho de panelas de metal, folhagens e gravetos estalando.

A kolbi entrou com grande energia e tomou a chaira cravada do chão, afiando um grande facão que tirara da cintura: “Eu cardo.”, ela dizia sem parar enquanto aguardava ferver a água que punha no panelão.



A sopa dos Pântanos

O repentino barulho da chaira rasgou o silência da toca. Paisano saltou atento, mas sem ameaçar a kolbi.

-Mim, cardo. - dizia a kolbi sem parar.

E quando a água no caldeirão ferveu ela foi jogando folhas e mais folhas, um punhado de barro do chão da toca, ossos velhos que encontrava por ali, pedaços de gravetos secos, uma pelagem de coelho morto, uma bota velha e rasgada, uma pedra de riacho, um anel enferrujado e foi mexendo.

Depois apontou para os olhos e para Paisano enquanto foi saindo da toca novamente.

Valéria gargalhou sem parar, depois que o amigo se pôs a seguir as ordens da velha, mexendo o caldo nada comestível.

Ela entrou novamente na toca arrastando um cadáver pelas roupas e com o facão afiado foi dilacerando a sua carne e a jogando na panela.

Paisano caiu sentado e as risadas de Valéria cessaram, foram tomados de horror pela cena que presenciavam.

A velha fazia aquilo com muita habilidade, prática de quem o faz costumeiramente.

Ao virar o cadáver a luz farfalhante revelou que não era um humano comum: sua pele estava escurecida e seus veios eram pretos como a noite, seus olhos verdes brilhantes, como esmeraldas iluminadas. Mas estava morto e fedia.

Valéria, saltou:

-É um doente de praga!- gritou, enconlhendo-se num canto com medo.

-Mardição! Mardição! - gritava a Kolbi enquanto fazia voar o sangue apodrecido e fétido do cadáver contaminado de Evreskaya, lançando mãos, antebraços, pedaços de lombo no caldeirão.

Depois ela balançou os braços sobre a boca fumegante da panela e começou a entoar um cântico:

-FOme, quizumba, cardo, sapato, frecha, katum! Eu, fome, frecha, kolbi, cardo, mardição, Katum! Rodela, pau, perda, mardição, katum! Isprito! Isprito! Isprito! 

A kolbi ia empurrando a fumaça da panela para fora da toca, soprando um espírito ruim que acreditava estar sobrevoando aquela coisa horrível.

E então, sem que ninguém esperasse, a velha virou uma parcela do caldo fervente sobre o braço escurecido de Valda e em seguida desceu o facão na altura do cotovelo.

Paisano deu um grito e Valéria saltou longe.

A Kolbi apontou o facão para o aventureiro e o afastou da pobre moça.

Em seguida a velha pegou o toco de Valda e o arremessou dentro do caldeirão.

Apesar do nervosismo de ambos, nada mais a velha fez, exceto deliciar-se das carnes cozidas, chupando os ossinhos, e depois, quando ambos vomitavam no fundo da toca, ela ministrou uma porção do caldo repugnante à convalescente.

Na manhã seguinte, após desmaiarem de cansaço, acordaram quase juntos e Valda estava sentada, enquanto a velha Kolbi lhe fazia um curativo no toco.

Paisano abraçou a amiga, que estava tão transparente quanto um pano de mosquitos, mas sorria. Sua pele estava levemente cinza próximo ao toco, enquanto um sutil brilho esverdeado farfalhava lá no fundo do olho esquerdo, quase imperceptivelmente.

Valéria se agachou sobre o caldeirão e guardou um pouco do caldo num frasco que tinha na mochila.

Pegou um pente de espinho de peixe e foi pentear o cabelo da amiga, que estava mais desalinhado que o da Kolbi.

A pequena crocodila foi saindo da toca, chamando pelos três.

Apontou na direção da margem abaixo da encosta:

-Baco, baco. Vai. Vai. Lá! -E apontava rio acima para o nordeste, na direção de Zarmund e do Porto da Morte.

Valéria catou seus pertences, e pegou o arco e a aljava de Valda, os entregando à pequena Kolbi, com os olhos cheios de lágrimas:

-Você é estranha e come cadáveres, mas obrigada pela estadia! - disse a pequena fungando e evitando o abraço da velha.

-Eu frecha, eu frecha. - Ela respondeu sem entender o que Valéria dizia.

Paisano estendeu a mão para a Kolbi e ela ficou olhando para os seus dedos, os apreciando. O aventureiro se agachou na altura da crocodila e a segurou pelos ombros, ficando com o rosto bem próximo do seu focinho:

-Obrigada!

A Kolbi foi apalpando os bolsos do seu camisão, vendo se não tinha nada com ele que a interessasse:

-Acho que já podemos ir! -prosseguiu Paisano vendo que a velha realmente não entendia muito do que era falado, tampouco ligava para eles da maneira como imaginavam que pudesse.

A kolbi segurou o arco e ficou analisando as flechas enquanto Valéria subia no barco, auxiliando Paisano que trazia Valda apoiada nos seus ombros.

Depois o leve barco de feixes deslizou rio acima, e não estavam longe quando sentiram as flechas zunindo na sua direção, a velha gritava feliz da margem:

-Eu frecha, eu frecha!



A trupe dos loucos

Assim que o barco de feixes encostou na margem do Porto da Morte, ainda pelo lado do rio, Paisano, Valda E Valéria escorregar de dentro da canoa para a terra pantanosa.

Valda se recuperava cada vez mais a todo momento, sua tez, muito embora tenha adquirido um tom acinzentado, deixará de ter transparência e morbidez cadavéricos. Seu vigor aumentava e conseguia sentar sozinha na canoa, da qual se ergueu e desceu sem ajuda. Embora muito do que havia se passado fosse desconhecido para a amazona ela sabia porque decidiram ir para Porto da morte e porque escolheram os pântanos para cruzar as adjacências ameaçadoras da Cidade Cinza, carregavam algo valioso e chegar a Zarmund através da floresta de espinhos era o caminho mais seguro.

Muito embora a saúde de Valda tenha melhorado, saindo do risco de morte, a amazona ainda estava fraca, e qualquer encontro seria um risco. 

Pouco falara a amazona desde então, recostou a cabeça sobre a coxa de Paisano enquanto o pirata e a pequenina dobravam os remos sobre as águas castanhas e calmas da foz.

Quando puseram os pés sobre sobre o pântano a caminhada foi difícil, e se demoraram naquele terreno hostil.  Mosquitos zuniam por toda parte, enxames de vespas jaziam em suas colméias oleosas e mofadas em forma de morro, aquelas coisas estavam por todos os lados. Arbustos, urzes e muito do pasto dourado e alto rodeava o arvoredo torto, pendurado de barbas, ali essa era a paisagem e nada mais vivia onde os olhos passavam. Mas abaixo havia vida, ali na água e no lodo profundo. Na pantaneira acinzentada e fétida, dentro da terra encharcada é que fermentava a existência do Porto da Morte. Crocodilos enterradores, jacarés de lamaçal, caranguejos, cracas-do-seco, paus-de-terra, carcarás de charco, cobras de marola, forneiras e covinheiras. O charco inicialmente tinha certa profundidade alcançando altura dos joelhos, no entanto, cerca de 50 corpos da margem, somente os pés se encontravam submersos. 

E foram chapinhando por cerca de dez quedas de ampulheta até chegarem à estrada do atoleiro. 

Pararam para descansar por algum tempo, tempo suficiente para avistarem o carroção que despontava na curva vindo da direção da cidade cinza. A diligência era puxada por dois bois, com chifres longos e tortos cheios de sinos e fitas coloridas pendurados.

O condutor nada mais era senão um parlapatão de circo, Com seu chapéu colorido no formato de uma grande peruca de fitas, olhos pintados de preto, uma bocarra imensa vermelha e borrada, o vermelho intenso da flor de hibisco.

Segurava entre as pernas um garrafão e quando o carroção balançada nos buracos e costeletas amolecidos, a bebida saltava no lombo dos bois e o aroma forte de polkum avançava pela estrada.

Vinha cantando uma balada de taverna, a canção da jovem glamourosa, que ao final da noite vira uma velha carcomida ao ser beijada pelo Bardo. E toda vez que o carroção dava um solavanco o parlapatão escapava um grande soluço, e  perdido, retomava o verso do início.

Paisano, ao avistar a condução caminhou em direção a estrada sinalizando para o palhaço, inclinando o tronco numa mesura:

— Bom dia, Nobre cavalheiro! Vejo que essa manhã se assume prazerosa para o senhor. Pergunto se não haveria lugar na sua condução para uma jovem família de artistas que deseja chegar a Zarmund em tempo do Festival do Polkum.

O comediante inclinou a cabeça analisando a situação e a compleição do interlocutor: um homem de meia idade roto, com longo Topete vermelho, orelhas adornadas por largas argolas prateadas, um sacolão  nas costas carregado de quinquilharias, embarrado e salpicado de sangue nas vestes.

O parlapatão fez retumbar um arroto, quase perdendo o garrafão para o chão, recobrou-se desajeitado enquanto falava como um bêbado:

-Não, não tenho (hic) lugar. Meu carroção está cheio de vento e de uma mulher temperamental demais. Só carrego panos, fazendas e veludos e é claro, o ego (hic) da donzela. 

Então, uma voz irrompe do carroção o repreendendo:

-Estou ouvindo, Garrot, estou ouvindo!

O parlapatão deu de ombros e prosseguiu:

-Vamos encontrar o resto da trupe no fim do atoleiro, na entrada da floresta dos espinhos, peça ao Mestre Gramond por trabalho, se sua mulher tiver uma barba farta é bem provável que vá conosco (hic).

Paisano ia se afastando da estrada quando uma corsa irrompeu entre os arbustos e seguiu disparando para o charco, o que foi seguido de um bramido intenso e desconfortável que o fez paralisar. 

Logo um urso pardo saiu da mata, numa corrida desajeitada,  balançando a gordura da barriga e exibindo os dentes já castigados.

A corça não mais importou depois que o urso sentiu o cheiro adocicado do fermentado de mel no garrafão do condutor. A fera ficou sobre as patas traseiras inclinando o nariz para cima, farejando as linhas intensas do sabor do polkum.

Um novo bramido pôs em pânico os bois e tamanha foi a força com que se colocaram um para cada lado, que rompeu-se a manilha do balancinho, voando cavacos, bebida e fitas para todos os lados.

O animal avançou sobre os bois perfumados, mas suas garras fenderam o ar. Paisano sacou sua espada de pronto e avançou, se revelando como oponente para o velho urso pardo dos pântanos de Ankset.

Valéria viu uma ótima oportunidade de diversão em assistir àquela briga e procurou esconder-se entre o pasto dourado alto torcendo secretamente para o urso.

O pirata desferiu um golpe na pata dianteira do urso, mas pareceria que o ferimento o enfurecera ainda mais e todo o corpo largo, embarrado e molhado do animal investiram contra Paisano, que mais parecia uma criança próximo àquela criatura. Então as garras do urso rasparam a perna e o quadril do herói de topete vermelho, e, embora a dor fosse excruciante, aprendera depois de tanto tempo no mar e nas batalhas que o momento de sentí-la é depois, quando tudo o mais acaba.

Um novo golpe atingiu o flanco esquerdo do animal o fazendo bramir e recuar um pouco. Paisano tropeçou sobre o balancinho quebrado indo ao chão antes de poder recuar da investida fatal das mandíbulas fortes e dos dentes amarelos e afiados da fera do pântano.

E quando conseguia somente ver a escuridão que se projetava da garganta do animal, além da saliva que lhe caía sobre o rosto anunciando o que seria provavelmente sua morte, o marujo de sabo sentiu um solavanco sacudir a besta e seus movimentos foram anulados, porém todo o peso das carnes do urso, que deitaram primeiro nas patas traseiras, foi deslizando para cima de si e ficou imobilizado pelo corpo quente e sufocado pela pelagem fedida de covil.

Atrás do urso estava Valda, ainda a segurar a ponta do cavaco do balancinho que cravara profundamente na parte lateral das costelas do animal. Porque lhe veio de súbito uma força desconhecida e um reflexo de incontida atitude e com a mão que lhe restara segurou a madeira, e veio todo o sangue pulsar no rosto, enquanto aquele novo olho verde brilhou intenso na órbita esquerda e suas veias cinzentas transpareciam ainda mais sob a pele do meio braço canhoto. E, como nunca havia sentido, seus músculos se tornaram rijos e um grito de ímpeto lhe saiu boca afora, ao que com força desmedida e desconhecida tombou o animal.

Valéria saltou dos pasto comemorando: “Valda, Valda, Valda!”, e levantou o braço da amazona anunciando a campeã, enquanto Paisano pedia, sufocando-se, que o retirassem debaixo do cadáver.

O condutor, que saltara de início da carroça, correu atrás de um dos bois e retornava com o animal de dentro da mata.

Mas havia dois olhos muito atentos que espiaram tudo com muita curiosidade pelos furos da lona e eram olhos negros e intensos de admiração.

A mulher desceu do carroção evitando a lama nos distintos calçados de veludo e nas franjas do vestido laranja de seda fina de Saigão, com seus cachos negros a emoldurar o rosto entre largas e fartas tranças laterais, exatamente à moda da corte de Tocaspretas, apoiou a mão sobre o carroção para admirar a cena de perto e se dirigiu à heroína:

-Lady Raquel Hipocrates de Tocaspretas é quem sou. E tu? E essa criatura que pula a teu lado, quem sois?

Valda olhou imediatamente para Valéria porque não sabia o que dizer, ao que a pequena curvou o tronco esticando o pé esquerdo para trás em uma mesura:

-A heroína em questão é a Rainha dos túneis de areia, primeira comandante das irmãs de areia, o braço esquerdo, desculpe, agora o direito, da ordem da Leoa; a forte, a inquebrantável, a matadora de feras, Valda, a amazona. Eu sou a arauta da Guilda de Cientistas e Artífices da Última Cidade Mais ou Menos ao Norte, oficial de pólvora e mestre de ponte da Marinha Mercante de Sabo, contorcionista, atiradora de facas, comediante e advogada de ofícios formada na escola de mistérios da ilha de Bar.

Valda olhou com espanto para a pequena, nem ela sabia de tantos títulos.

-És uma criatura intrigante pequenina, de onde venho há muitos como tu. Alguns mais inteligentes, mas, certamente, menos eloquentes. E digam, quem é o homem que está sufocando na lama? -E apontou com com o pé na direção dos braços chacoalhantes de Paisano.

Valda coçou a cabeça e constatou que deveria retirar o urso de cima do companheiro, ao que se pôs a arrastar o cadáver para fora da estrada.

Paisano tentou se mover, mas o corpo lhe doía em absolutamente todos os lugares. Foi paralisado, porém, quando viu a famosa e bela atriz que tanto admirara nos portos do Leste e em Portogaivota, nas mais famosas casas de espetáculo de VarBar, nos palcos elegantes das ruas de Le Ville onde os nobres se amontoam nos balcões dos palacetes abastados de Represegorda. Lady Raquel estava diante si, meio acima e de cabeça para baixo, mas estava ali e Paisano só conseguiu fazer admirar a linda atriz, cantora, hipocrates, cuja voz era aveludada e tinha pele dourada a cobrir os fartos seios no decote.

Raquel curvou o tronco sobre os joelhos para ver melhor o homem na lama, então voltou para a amazona, desdenhando o pirata encravado no meio da estrada:

-Será que vai viver? Ao que demonstra sua compleição não me parece que chegará bem ao fim do dia, de modo que sou ingênua e até ignóbil no que se trata da ciência médica, mas é uma lógica conclusão essa ao analisar o estado desse pobre homem.

Valéria franziu as sobrancelhas, agachou-se perto de Paisano e lhe deu um peteleco no nariz, o que fez com que o pirata saísse do transe que se encontrava pela presença da artista. 

-Pai? Pai? É você? - e riu, segurando a gargalhada com as mãos sobre a boca.

Paisano deu um tapa na mão de Valéria, terrivelmente incomodado e foi tentando ignorar a dor e erguer-se da miséria e humilhação na qual se encontrava:

-Vá rindo da desgraça porque é assim que o Diabo se engraça. -disparou o brega galã enlameado e desconcertado, usando uma fala de Raquel na peça “Uma Diaba Diferente”, batendo nas vestes.

O parlapatão voltava do charco com o segundo boi, em seguida remendou o balancinho com um cavaco improvisado, pondo os animais às rédeas.

Raquel sentira-se grata pelo heroísmo de Valda e deixou que a amazona e a pequenina compartilhassem a carroça, Paisano e o palhaço foram na condução, tocando os bois em direção à floresta dos espinhos, mas antes de sacudir novamente as rédeas e bêbado sorriu para o pirata:

-Sua mulher não precisa de barba afinal! É a coisa mais forte que já vi em toda a minha vida! - e foi apertando as cordas nos arreios- E já vi um homem lutar na arena de Zarmund contra um Dilacerador, acho que tinha uns sete corpos de altura e sua boca era do meu tamanho e os olhos maiores que os peitos da Lady Raquel. -então o palhaço olhou para o chão e saltou do carroção, pegou o garrafão e o sacudiu sorrindo para Paisano- Veja homem de lama, habemus vino!  Viva a nós, a trupe dos loucos! -e entornou o garrafão.



A mão que segura o punhal

    -São vinte quatro homens, ao longo dos limites da floresta de espinhos, Senhor. Soldados com armaduras de ferro e lanças de ponteira de cristal. - o informante descansava sobre uma pedra bebendo um copo de ervas amargas, enquanto restaurava suas forças.

    O Senhor de pele mórbida e acinzentada, rajada de veios negros, escutava atentamente o relatório, sentado à beira da fogueira com seus homens, enquanto os estalidos e chiados da lenha molhada reverberavam nos estertores da caverna.

    Suas botas eram gastas e enlameadas, a camisa fina perfurada e cheia de remendos. Manchas escuras se espalhavam pela calça de couro desbotada, um antigo equipo do exército da fortaleza do sol. Uma brunea de couro sobre o ombro direito saia entre a fenda do capuz que lhe descia até a cintura. Na escuridão que o bioco verde escuro lhe lançava na face, não esboçava nenhuma reação.

    Então veio algo que parecia um suspiro, mas não era. Um trejeito inquieto saindo da boca fria e azulada, o capitão fazia isso enquanto conjecturava seus planos. Por fim soou com sua voz metálica:

    -Tem de ser feito durante o festival do polkum, no segundo dia antes das execuções, porque a lua estará alta e nossa visibilidade boa. Saibam: Zor tem que cair. E será da maneira como irei lhes instruir, entraremos junto com a trupe, estarão nos aguardando na saída da floresta. São 8 carroções com artistas, equipamento e provisões. Os nossos subirão aos torreões na hora do Urutau, armados de bestas e lâminas, aguardarão escondidos pelos os enforcamentos da manhã. Soarão os badalos, nosso sinal é ao terceiro. Cuidem primeiro dos artilheiros e depois dos homens de lança, seguidos pelos de espada. Fumaça Cinzenta, Vergalho, Edperigoso estarão na multidão à direita. Corvo, Felipe e Marino à esquerda. Peregrino e Vilas elimenarão os guardas do portão principal e descerão os umbrais. Torta, Boi e Codinome lançarão os explosivos de astilhas sobre a multidão de nobres na porta oeste, causando convulsão. Nesse momento, desçam as lâminas silenciosas sobre os homens das amuradas e depois empurrem com os quadrelos de pólvora a multidão para a direção do cadafalso. Cricto, Roinor e Belfegast usem as lâminas abençoadas na guarda pessoal, procurem correr para o cadafalso antes da multidão se afastar dos muros. Estarei chegando pelos esgotos e sairemos embaixo do madeiramento, pelo poço principal. Verifiquem os cordames e os ganchos de escalada. Quando soar a corneta estará feito, eu serei a mão do Nosso Senhor que segurará o punhal. Saibam que devemos recuar nesse momento, as amuradas dispararão as bombas de fumaça, desçam pelas cordas em direção aos muros laterais, precisam ser rápidos. Usem as sapatas cavadas nas laterais, vocês dão conta. O poço estará cheio de fumaça, ninguem será capaz de atravessá-lo em tempo. No encontraremos nos fiordes à leste, seguindo o primeiro túnel à direita quando saírem da coluna de água.

    -Yar, Capitão. Seremos rápidos. Nosso Senhor nos revela um nome e nós o fazemos.

    -Sim, Ed, nós o fazemos. - assentiu o capitão com um breve sorriso no rosto. Mas no segundo dia. O primeiro dia é nosso, entraremos e devemos nos misturar. O taverneiro de Cavalo Branco é nosso contato.

    -Um taverneiro, capitão? É o pior contato do mundo… Qualquer prata e põem a lingua para fora. - resmungou Belfegast enquanto coçava a barba trançada e cheia de jóias.

    -Ele não é um taverneiro como qualquer outro, nos conhecemos de outros tempos. Preferiria arrancar a própria lingua a denunciar um irmão e trabalha com a única coisa boa que vem daquelas terras, o doce aramagnhaque que esteremos festejando. Além disso é dono de uma fragata insuspeita que estará nos aguardando na praia, pronta para zarpar.

    -Quem vai capitaneá-la, Senhor?

    -Um velho amigo, Codinome, um velho amigo.

    Então todos concordaram enquanto um perdigueiro se aproximava da entrada da caverna avisando que a trupe havia chegado, era hora de levantar o acampamento.

       Os rostos cheios de morbidez foram pintados com a tisna branca do calcário em giz, sobre os lábios o vermelho leitoso da seiva do Basil, nos olhos o carvão negro da fogueira apagada. Então se tornaram parlapatões de caravana colocando a indumentária trazida de um dos carroções. Palhaços macabros, mímicos, hipocrates, malabaristas e atiradores de facas surgiram daquele bando que articulava um assalto à fortaleza do Lugal Zor.

Quando saíram da gruta em direção ao acampamento, o capitão maquiado com um grande olho preto e outro vermelho, foi ter com Lady Raquel.

Eram observados ao longe sem perceber: artista e capitão gesticulavam e tinham falas exasperadas e depois de descer uma bofetada vacilante no rosto do militar, Raquel o puxou com vigor e deu-lhe um beijo, secando muitas lágrimas, então foram entrando para dentro do carroção.

Valeria respirou fundo achando lindo o amor naquela cena e retornou às sombras da sua capa para a sua tenda, ainda surpresa com aqueles artistas macabros. Foi observando pelo caminho os hormens que saíram das rochas e se juntaram ao comboio. Caras duras e feições sombrias debaixo da maquiagem, punhais cerrados, azagaias sob os punhos, lâminas adormecidas nos debruns, onde deveriam existir flores, festins, fitas e amarrilhos de travessuras. A pequena conhecia o ardil e aqueles homens não estavam lá para um espetáculo de comédia.

Quando chegou perto da tenda em que foram colocados por Lady Raquel, desceu o velo, então uma voz que não vinha da boca de Valda disparou das sombras:

-não se mova, criatura! - os olhos da guerreira viraram-se lentamente em direção à escuridão e um parlapatão revelou-se - quem sois vós? Artistas não são! Vejo armas, sangue em suas roupas, tesouros nas suas guaiacas. Uma amazona, um pirata e uma ananica… Quem sois vós?

- Hei! Não me chame de ananica! Sou marinheira mercante da Marinha de Sabo. E você não sabe começar amizades! - respondeu Valeria com os olhos cheios de água.

O parlapatão assobiou e em seguida um outro artista sinistro entrou na tenda com a bocarraca borrada de vermelho, a barba imensa pendendo sobre o peito. Valéria avançou sobre o homem estalando os olhos e abrindo um sorriso imenso:

-Baradum! Meu capitão! - e foi o abraçando embora seus braços pequeninos não alcançassem sequer a cintura do velho bujarrento. - Eu quase não o reconheci.. Estas horrível, vais ter que aprender a passar melhor esse batom aí!



O Conhecimento oculto do manual intercontinental oficial de como chocar um ovo de serpente marinha


Valda tinha uma faca no pescoço e sob a ameaça de que a lâmina cruzaria a jugular da amazona, Paisano ficara de joelhos com as mãos atrás da cabeça. Baradum tentava articular a situação pedindo calma ao homem do Encapuzado, enquanto Valéria deslanchava sua verborragia contumaz deixando todos zonzos.

-A pequena é inofensiva, Zaragaia. Ela e a amazona eram da minha equipagem, desça sua lâmina, por favor.

-Não… -respondeu o assassino apertando a faca na pele de Valda, pronto para rasgar-lhe a garganta- estão juntos, todos. Esse daí é o mercenário que virou a casaca e vendeu a lâmina para aquela impura! O Mestre das Facas lhe encomendou um serviço e ele se vendeu para a branquela de Zarduin, tudo o que o Mestre queria era ter de volta a relíquia, mas agora não podemos mais. O Deus está furioso, Baradum, ele quer sangue de novo, minha lâmina vai beber e honrar o nosso Deus.

-Grandalhão -interrompeu Valéria, mostrando as mãos livres acima da cabeça- a lâmina está conosco, nesse sacolão. -e empurrou o embrulho com os pés para frente e foi agachando-se lentamente - vou pegá-la e mostrar para você, fique calmo, não precisamos disso.

Paisano levantou os olhos e arregalou as sobrancelhas com olhar de reprovação para Valéria, como se todos os raios do oceano tivessem fulminado a pequena através das pupilas imensas e castanhas do pirata.

Ela foi remexendo a sacola e tirando tantos objetos dali, como impossível fosse que coubessem todos naquele minúsculo saco, parecendo um feitiço ou mágica de algum espetáculo. 

-Uma caçarola de fritar mariscos, veja -disse a pequena- um canecão de cerveja infinita, uma rede de pesca, uma barraca de acampamento, uma enxerga, um isqueiro, uma calcinha...Ah estava aqui, eu vinha a procurando há algum tempo!

Baradum olhou com decepção para a jovem, como pedindo que apurasse, a lâmina apertava cada vez mais.

-Quê? Calma! Eu realmente estava precisando muito dela! O que mais… -e continuou vasculhando o saco -  um ovo de serpente marinha dourada, bem aqui! Ah! Achei! Está aqui o embrulho, tome. - e esticou o couro cozido para que o assassino alcançasse.

Enquanto segurava a adaga com uma das mãos, sacudiu o envelope com a outra, revelando o pedaço de lâmina de tom esverdeado, que rapidamente brilhou ao comando da palavra MORSREGEM.

-É ela mesmo- confirmou o assassino após dizer a chave.

-Sim, e nós viemos aqui entregá-la para o seu Mestre, porque nunca houve uma traição. Esse moço - e passou a mão sobre a cabeça de Paisano - ele é meio atrapalhado, mas é um bom menino, bom menino.

O assassino relaxou a lâmina e embrulhou a relíquia novamente. Os ombros de todos cairam para baixo, enquanto a tensão ia diminuindo as poucos. 

-Não precisava de tudo isso, Grandalhão. - disparou Valéria num tom de amizade, como conhecesse o assassino desde pequena.

Ele foi indo em direção à saída, cruzando a tenda enquanto colocava a trouxa no cós da calça, de repente parou e voltou, agachando-se perto dos pertences que estavam no chão e pegou o suposto ovo de serpente marinha, e o jogou para cima, depois o segurou no punho, avaliando o objeto.

-E isso aqui como funciona?

- Isso daí? Bom, segundo o conhecimento oculto do manual intercontinental oficial de como chocar um ovo de serpente marinha você pega esse ovo… Ah! Mas antes vai precisar de dois quilos de cebola, um sapato de viúva e uma teta de vaca assada. E água morna, em abundância! - o assassino estava prestando muita atenção enquanto Valéria fazia seu espetáculo com as mãos nos ares - então você pega o ovo e dê um nome a ele, que comece com a primeira letra do seu nome e não vale apelido, depois vai a última letra da sua comida preferida…

Quando a pequenina ia continuar um esguicho de sangue preto e frio voou sobre a sua camisa e o gume de uma espada apareceu entre os olhos do assassino, que ficou mole e pendurado, deixando o ovo rolar no chão.

-Meu ovo! - ela gritou.

Paisano puxou de volta a espada empurrando as costas de Zaragaia com os pés, enquanto Baradum levou as mãos à cabeça, estarrecido.

-Pelas Sete Ondas do Capitão, que merda você fez, seu pirata desgraçado!

-Peguei de volta o que me pertence.- respondeu Paisano, enquanto limpava o sangue da lâmina nas roupas do parlapatão morto -E isso é minha passagem para a liberdade e para a riqueza. Vocês estão comigo ou não? - e retomou a relíquia, guardando-a novamente dentro do saco encantado. Jogando a calcinha na cabeça de Valéria.

Depois de uma breve discussão gritada em voz baixa e depois de Valéria enfurecer-se porque não conseguiu terminar a explicação da chocadeira, os três decidiram se disfarçar e começaram a pintar os rostos para abandonar o local.

Valéria se esgueirou coberta pelo manto no acampamento, foi roubando roupas aqui e ali, depois retornou para a tenda.

-Um palhaço -jogou uma fantasia para Valda -, um pirata espalhafatoso para mim e para você Paisano, uma senhora encantadora - e arremessou um vestido para o marujo.

-Não podia ter escolhido algo pior para mim? - disse Painsano contrariado, enquanto tirava o camisão emporcalhado.

-Roubei da Lady Raquel, afinal achei que iria gostar. - a pequena ficou observando enquanto colocava a barba e a bandana preta encaveirada e balançava uma cimitarra de madeira no ar.

Paisano cheirou desconfiado o vestido de veludo, e era como ouvisse a voz doce e sentisse os perfumes das flores de Le Ville sendo sopradas pelo hálito de maçã da bela hipocrates.

-Vai servir.- ele disse, enquanto Valda meneou a cabeça. Baradum colocou um cobertor sobre o corpo do assassino, deixando sua mão de fora, a segurar uma garrafa de Polkum. Derrubou um pouco da bebida no chão e chutou areia sobre o sangue, misturando o perfume doce e alcoólico do destilado com o cheiro de urina que deixou o homem quando os nervos se afrouxaram.

E foram saindo por trás da barraca na direção da mata, enquanto Baradum lhes explicava que precisaria de três noites para escoltá-los para fora de Zarmund, teria um navio, mas precisaria de um equipo de confiança. 

-Ei pequena - Baradum puxou Valéria pelo colete e lhe deu um forte abraço - você tem notícias do seu Tio?

-Ah, não! Me mandou uma carta desaforada pedindo que escovasse os dentes, mas foi só isso. Fiquei com um galo na cabeça, porque caiu em cima de mim dentro de uma bota fedida!

-E quando foi?

-Há um quarto de ciclo, eu acho.

-A carta trazia somente uma ordem para que escovasse os dentes?

-Não! Sim! Dizia: “lembre-se sempre daquilo que mais repito”. E o que ele mais diz é “Valéria, escove bem os dentes.”.

Baradum, pensou em contar as notícias da Última Vila Mais ou Menos ao Norte, mas não encontrou coragem. Sacudiu a cabeça desdenhando e antes de ir puxou Paisano pela peruca:

-E você, seu desgraçado, vai me pagar o que me deve pela enrascada na qual me meteu. Agora sumam, vão! Esses homens vãos procurá-los até às profundezas do deserto amarelo se for preciso! Sumam agora, tentem não morrer nesse tempo e em três noite me encontrem na Praia, antes das cornetas anunciarem as execuções do Festival. Vão!


Eles desapareceram na mata e Baradum tratou de beber tanto quanto pôde, até dobrar-lhe as vistas, depois pegou um pedregulho e tacou na própria cabeça, deitou no chão, ali fora mesmo, e dormiu o sono dos piratas sem contar muito com o amanhã.


No caminho a pequenina teve um estalo enquanto remoía uma dúvida complicada:

-Meu tio diz mais: “escove sempre os dentes” ou seria o refrão daquela música horrível que ele está sempre assobiando? Como é mesmo? Alguém sabe? - mas nenhum dos dois respondeu, estavam absortos na fuga.

Para Paisano, a única coisa que lhe ocorria é que deveria encontrar Maria e pegar o pagamento onde quer que ficasse o lugar entre a cruz e a espada, na Cidadela de Cristal.

Os três chegaram lá pela manhã, enquanto os portões, que normalmente eram fechados para os visitantes, iam se abrindo para todos os pitorescos amantes do Polkum adentrarem à cidade de Cristal, para deixar a sua prata e frequentar o comércio local.

Os barracos estavam sendo montados ainda sob os primeiros raios de sol, enquanto aquele ritmo de início de dia se misturava ao retorno dos ébrios bem vestidos de voal e veludos bufantes, com seus chapéus de longas penas brancas, à moda de Zarmund, a voltar para as alcovas, cantarolando e soluçando, vomitando e dormindo pelo caminho.

Adentrar a Cidadela era coisa que tirava o fôlego de qualquer um (de fato!), depois de deixar o pequeno bosque abaixo no vale, cruzava-se uma ponte longa e feita da pedra cristalina que brotava das entranhas de Zarmund, o que era impressionante, porque via-se a água verde intensa correr veloz sob os pés. Então, adiante tinha uma guarita também de pedra e os Lanças de Cristal ficavam ali, inquirindo os passantes e ordenando a sua entrada. Depois ia-se por uma trilha estreita ziguezagueando a montanha esbranquiçada e a encosta escarpada, sempre acima. Uma subida íngreme pelas rochas, que eram como espaldas salgadas feitas de mar de pedra, duro como o aço e friável como um bloco de sal. E iam todos os visitantes como uma longa caravana aproximando-se aos poucos da cidade que ficava no topo, mas que mal podia ser vista oculta nas sombras da madrugada. 

Depois, quando os primeiro raios de sol reluziram sobre as torres pontudas, como imensas estalagmites brotando do cume da montanha, revelaram-se ao longe parecendo uma assustadora e enigmática formação geológica, mas mais de perto via-se um grande formigueiro habitando aquelas torres e outras menores ao seu redor: pequenas formiguinhas andando pra lá e pra cá atrás das paredes cristalinas protegidas pelo muro escavado na encosta da montanha. No fim da estrada já não se podia admirar tudo como antes, porque a cidade era imensa e era preciso quebrar o pescoço para enxergar o pico das torres que se perdiam na  neblina e nas nuvens de fumaça de gelo que dormem nas altitudes de prata de Zarmund. As ruas eram esculpidas na própria rocha e próximo às calçadas uma vala funda acompanhava as linhas, passando ali os esgotos que corriam montanha abaixo, para onde não se sabe. Lindas casas, todas caiadas de branco, com balcões cheios de arbustos da doce e ácida laranjinha de que era feita a bebida tradicional das terras abissais: o aramagnhaque, ou no popular, o polkum.

O sotaque enrolado do povo de Zarmund era grosso e tinha muitos erres, além do limite do aceitável, até mesmo para os ouvidos de Valéria. 

Os três procuraram uma estalagem, mas não a primeira que viram, foram atrás de uma mais discreta, encravada longe dos olhos da praça central, mas ainda de fácil acesso, nos arredores das casas mais pomposas.

Paisano abriu o leque e tapou o rosto, deixando somente os olhos bem pintados de fora. E endireitou a peruca, tapando as costeletas.

-Um quarto. -disse, simulando uma voz supostamente feminina mas que não parecia nada feminina, estava mais para uma língua gutural a ser falada ré maior, com um ovo de codorna na boca, sem o quebrar. Depois colocou uma moeda de prata sobre a mesa, chamando a atenção para suas longas luvas de veludo roxo, levemente rasgadas no beiral, onde apareciam seus braços peludos.

-Uma quarrto parra trrês, deixa ZIg, verr.- e o atendente puxou o livro de entradas e o inspecionou com o monóculo segurado sob as fartas sobrancelhas brancas, brancas de tão loiras. Foi alisando a ponta do bigode longo e enrolado, quando percebeu que um imenso chapéu de pirata lançava larga sombra sobre o livro. Zig, o atendente, levantou a cabeça enquanto Valéria fazia o mesmo e ficaram olhando nos olhos um do outro. Embora tenha lhe vindo uma ânsia de riso ao ver o homem com um olho pequenino e o outro imenso piscando atrás da lente, ela engoliu, sorriu com simpatia e saltou do balcão. Mas sentindo-se entediada, ficou ali no chão mesmo, Valda lhe chutou as pernas balançando a mão pra cima pedindo que levantasse, aplicando-lhe um safanão de corretivo.

O recepcionista baixou a cabeça e voltou para o livro, folheando lentamente as páginas amareladas, coisa que conhecia muito bem, mas parecia uma praxe que deveria ser vencida.

-Aqui, Zig encontrarr! -apontou ele no livro, tomando uma pena do bolso do colete de linho - uma conforrtávell quarrto com bacia e penica parra um liiiiinda moça do sull, uma chofem arrtista e seu filha querrida. Sigam a Zig, porr favorrrr. - e foi indo na frente estalando os sapatos de bico fino e tacos de madeira pelos corredores, cheio de toc, toc, toc. Valéria deu de ombros torcendo o rosto para Valda, que foi a empurrando e tocando a pequena bloco adentro.

Enquanto iam avançando foram ouvindo o barulho dos quartos: uma briga de casal aqui, gemidos li, roncos acolá, uma flauta soando e uma porca grunhindo em algum lugar. No fim do corredor estava a porta do descanso, um lugar sagrado onde deixariam todos os problemas longe por algumas quedas de ampulheta de sono.

Não era nada maravilhoso, mas era melhor do que qualquer quarto de aluguel em Portogaivotas e melhor, com toda certeza, que qualquer cama de navios para as cobertas baixas.

Valda e Paisano se aninharam na cama maior, um de costas para o outro, mas depois ele foi virando aos poucos e abraçou amazona, que ficou dura como uma madeira.

Valéria estava na janela olhando os transeuntes passarem nos blocos festivos, cantando hinos de bar, brincando na rua, comprando coisas nos barracões adiante e batendo canecos cheios de aramagnhaque.

Então ela ficou narrando tudo o que acontecia na rua, enquanto os outros dois só queriam que ela calasse a boca para que pudessem dormir. Mas a pequenina seguiu murmurando até levar uma canecada bem mirada na cabeça. O caneco arremessou cerveja para todos os lados é só parou de deitar o fermentado infinito quando Valeria o levantou, coçando um pequeno galo na cabeça.

Até que foi irresignada para seu catre e  ficou se revirando de um lado para outro sem paradeiro, fazendo todas as madeiras do estrado rangerem numa sinfonia, durante muito tempo. Então, quando todos pensaram que ela estava dormindo, disparou:

-Ai, ai... Que cidade linda! - e foi calada sob protestos de silêncio. Depois remexeu-se mais uma vez na cama para lá e para cá, fazendo o “nheco nheco” mais irritante já ouvido. E de novo foi xingada, com “xi” de lábios fechados.

Então teve um soluço repentino e depois , quando tudo ficou quieto já estavam quase dormindo, a marinheira disparou:

-O mais estranho nessa cidade é que fazem um hospital do lado do ferreiro. Que doente vai dormir com tanto “bleng, bleng, bleng.”, depois “Bleng, blong, bleng, blong”. Imagina, que falta de educação! As pessoas querendo dormir…

Então os dois subiram a voz num cala-a-boca uníssono, ao que finalmente fez a pequena se aquietar sobre o colchão de palha.

Mas então algo estalou os olhos de Paisano, que saltou na cama batendo no coto de Valda:

-Valéria, ei! Acorda! O que foi que você disse mesmo?

Mas a pequena soltou um ronco estremecedor e finalmente estava dormindo.

Valda coçou os olhos e bocejou as doze badaladas de Benfica antes de entender que o marujo estava de pé.

-Ei , Paisano, que foi dessa vez?

-A Valéria, ela disse. -e foi calçando as botas e colocando novamente o vestido- é isso!

-Disse o quê?

-O hospital do lado do ferreiro. É ali, entre a cruz e a espada! - o marujo colocou a adaga no decote, deu um beijo na testa de Valéria, comemorando entre os roncos da pequena, e foi indo porta afora no meio da manhã - fiquem aí, em  breve seremos ricos! 



Uma Lady em apuros

Paisano saiu tão apressado que esqueceu-se de manter o disfarce, cobrindo o rosto barbudo com o leque, passou como vento pela porta da estalagem, onde à frente, uma pequena porta, entre o hospital e o ferreiro, anunciava: “advogada de ofícios da quadra sul”.

“É aqui.”, pensou.

A porta estava fechada, a suposta dama bateu sob os estertores uma, duas, três vezes, com pressa. Mas ninguém respondeu.

Foi até o meio da rua para espiar acima do balcão, cujas janelas estavam fechadas, mas quando estava prestes a desistir, uma voz anunciou atrás das folhas de madeira de carvalho branco na portaria:

-Sim! Quê querres?

-Tenho uma encomenda para Maria. - respondeu o pirata, afinando a voz.

Nesse momento uma portinhola de dois dedos abriu-se de uma das alas, um olho apareceu e inspecionou o marujo dentro das vestimentas nada convencionais.

-Quê encomenta? A senhorr, desculpe, o senhorra possui uma axendamenta com o Doutorra Marrria?

-Não possuo agendamento, tenho uma encomenda para entregar para a Maria.

-Non é possivel um consulta sem axendamenta. - o olho piscou e se encolheu, fechando o postigo.

Paisano voltou a bater:

-Preciso falar, é urgente.

-Totas pessoas son urxente, mas a doutorra só atenti com axendamenta. É de manda da condestável?

-Não!

-É de manda da Lugal?

-Não!

-É de manda da xerrifa?

-Não!

-Enton non é urxenta.

-Por favor, Senhora, diga a ela que tenho um embrulho, a Lugalesa encomendou uma entrega.

-Orra, orra. Porque non disse prrimeirra isso? - então a porta estremeceu e uma Senhora de peruca branca colocou as fartas sobrancelhas loiras para fora da entrada e olhou para os lados, conferindo se ninguém estava observando e puxou Paisano para dentro, com a força e delicadeza que nenhuma mulher de Zarmund tem.

-Me deixa verr. - disse, esticando a mão.

-O quÊ? - dissimulou Paisano, sem demonstrar confiança na mulher.

-A embrrulha, ué!

-ENtrego somente para Maria! Onde ela está?

-Eu serr Marria! -  disse sem muita paciência.

-Nesse caso, está aqui. - O pirata tomou o embrulho com cuidado e revelou a lâmina para que a receptadora pudesse avaliar.

Ela aproximou muito os olhos da relíquia, como não enxergasse muito bem, depois foi convidando o marujo a subir as escadarias à sua frente. Lá em cima livros e mais livros por todos os lados se apinhavam entre um ar saturado de bolor, perfume brega e o cheiro pungente de cocô de passarinho e mijo de gato.

Adiante na sala ia uma escrivaninha com pergaminhos enrolados, tinteiro, pena, papéis em branco e dois gatos deitados recebendo uma tímida luz do sol a entrar pela fenda da cortina do balcão.

O gorgear de uma ave no poleiro era o que se ouvia enquanto a advogada procurava alguma coisa nas prateleiras da estante, pelas gavetas e entre alguns livros pelo chão.

-Senta xofem. -disse ela, apontando uma cadeira.

Paisano mal conseguia respirar, nauseado com o ar do apartamento, mas foi em direção à cadeira e tentou afugentar um gato que estava sentado ali, porém o felino lhe mostrou as garras , não muito simpático.

A senhora pegou o animal no colo para dar lugar ao convidado, lhe oferecendo o assento de veludo vermelho cheio de pelos.

-Pote sentarr, o Fifi -o gato- está tota limpinho! Passou tota manhã tomanto banha na cadeirrinha prreferrida dela. Non é Fifi? - conversou com o animal que lhe deu molhadelas na bochecha e depois deitou no assoalho lambendo a bunda.

-Obrigada, estou bem de pé. O que procura?

-Prrocurra uma livro de anotamentas, minha prrotocola.


-Marria! Marria! - uma voz veio da janela, lá da rua. -sei que está aí! Fou xogar um pedrra na sua xanela! Querro meu dinheirra! FIm da comuna agorra, a magistrrada xá pagou há toze luas minha dinheirra e focê non me deu! - a advogada paralisou e puxou a cortina, fazendo caretas para a mulher lá embaixo, mas sem se deixar ser vista. 

-Clientas fem incomodando essa horra da manhã! Fai tomar café e tepois faça uma axengamenta! -gritou ela pela janela. -A doutorra Marria está toente, non poti atenderr hoxe. Folta amanhã! - disse muito alto, na direção do balcão, balançando a mão no ar e desdenhando a mulher lá embaixo.- Tota horra isso, non consigo cagarr, non consigo comerr, non consigo pensar, semprre tem alquém patendo naquela porrta petinto alguma coissa! “Doutorra Marria, issa, Doutorra Marria, aquila!”! - reclamou.

Enquanto aguardava a mulher revirar as suas coisas atrás do que quer que fosse que estava procurando, o pirata cuidou de investigar o lugar ao seu redor, se deteve observando a pintura de uma bela jovem de labios carnudos, posando com o famoso triângulo na lapela, o símbolo da guilda dos procuradores gerais de ofícios. Mas o que mais chamou atenção do pirata foi mesmo a beleza do peito rechonchudo e avermelhado saltando do decote do vestido aveludado, pintado na tela macia de algodão de brodejão do mar seco, pareciam muito reais.

Quando o pirata aproximou o rosto da pintura, escutou uma voz ao seu lado:

-Cróc, se fosse você não encostaria a mão nessa pintura, é a Doutora, na sua juventude. - disse a ave no poleiro.

-Ei! Você fala! - saltou Paisano, assustado, tentando entender o que estava acontecendo e como poderia dentre aquelas plumas verdes, aquele bico encurvado pronunciar uma fala muito melhor que a da própria advogada na língua Copta!

-Sim, falo. E você também, pensei que era só esquisito!

A advogada caiu numa gargalhada estridente, mas se conteve, olhando de canto para a janela, e tapando a boca com a mão.

-Xá fui xófem, fui rrica e cassada. Mas non puti fifer mas con aquela homem, muito ego, pouco prrática! Non é Carrlota? Ela tampém non aguentou a marrido dela. Ficarrón na Fila to Norrte, e nós, querriamos distância, non é Carrlota?

-Ah sim! Cróc. -respondeu a ave, balançando no poleiro.

-Aqui! Minha prrotocola! - e agarrou um livro sobre uma das cadeiras, correndo um dos gatos que estava ali em cima, e foi tentando andar, com outro se roçando entre suas pernas.

Ajeitou a peruca e tratou de colocar um óculos muito estreito sobre a ponta do nariz fino e bem adornado, puxando o decote do vestido para cima, insinuando-se para a estranha donzela à sua frente.

Caçou a pena e a lambuzou na tinta, repousou a mão no livro, na ultima lauda escrita, e colocando o olhar sobre a bela armação dourada perguntou ao marujo após o observar atentamente:

-Como é sua nome minha lindo rraparriga?

-Pode escrever aí: Paisano. - e esticou o olho para ver o que ia escrever.

-Só issa? Temos muitas rraparrigas com barbas lindas como a sua porr aqui! Non prrecisa enfergonhar, minha querrido! Zarrmund non é como a povo lá da outrra lado, aqui cada um é o que queirra serr.

O marujo sentiu-se envergonhado, afinal, tratava-se de um mal entendido estar vestido daquela maneira, mas tentar explicar o que estava acontecendo ia demandar um fôlego que não estava disposto a gastar dentro daquele apartamento. - limitou-se a rir e concordar, sem sentir o orgulho ferido, para não parecer mal educado. Depois sentiu uma coceira muito grande nas pernas peladas debaixo do vestido, picadas de pulga que quase lhe desmancharam a pose, mas suportou ao máximo não coçar para não enrudecer a simpatia que  forçava aparentar.

Então ouviram-se novamente batidas na porta, ao que a oficiala revirou os olhos, como contrariada pela nova interrupção. As batidas continuaram.

-Xá fai! -gritou na direção das escadas, terminando de preencher o protocolo. -Acorra assina porr favorr, enquanta eu abrra a porrta!

A advogada foi lentamente se desviando dos gatos e descendo as escadas, enquanto Paisano foi assinar o livro, meio desconfiado:

“Declaro que na presente data que vai abaixo assinada, entreguei à Doutora Mestra Maria, oficiala de documentos, encargos e atribulações da Lugalidade de Zarmund, quadra sul, um embrulho de couro fervido da cor siamesa, contendo um punhal de coloração verde esmeralda, com a lâmina QUEBRADA e empunhadura de metal, com desgastes de tempo e sinais de corrosão na parte externa da broca central do pomo. Assinado…”

Paisano pensou e pensou, chegando à conclusão que seria interessante não revelar a origem ao entregar um documento que parecia tão oficial, logo decidiu assinar da seguinte forma: Lady Raquel Hipocrates.

Ao lado do protocolo estava o seu pagamento, ao que esticou os olhos, mas não teve coragem de pegar, pois a ave inspecionava cada movimento seu. Tratava-se de um título de propriedade em seu nome com um quinhão de terras com lavra autorizada de cristal de Zor, gado e ovelhas, um Castelão, um mestre de ofícios e um cavalariço, seu coração bateu forte, como fosse saltar do peito, como fosse deixar de estremecer a qualquer momento.

Paisano ouviu um murmurinho vindo lá debaixo, em seguida um estrondo da porta batendo. Passos e mais passos pela escada, então se pôs atrás das cortinas, colocando o dedo sobre os lábios, pedindo silêncio para o pássaro. DO outro lado do balcão repousou a mão sobre o cabo da adaga que estava dentro do decote e aguardou.

-Onde está?- uma voz abafada por uma máscara perguntava com rudeza.

-Ali, ali! - dizia a advogada chorando, enquanto ia sendo arremessada no chão.

-É ele mesmo, o punhal! - disse uma outra voz, aproximando-se da escrivaninha, ao mesmo tempo que se ouvia o chiado dos gatos furiosos. - Não consigo pegar, mestre, o gato não deixa!

-Sai prá lá! - disse o outro, enquanto se ouviu o berro do animal sendo maltratado.

-Non, non! - gritava a oficiala, claramente preocupada.

-Ponha fogo em tudo! - um dos invasores deu a ordem.

Em seguida uma claridade e um calor intenso iniciou-se pela cortina e dali saltou Paisano com o punhal em riste, na direção do invasor.

Ambos rolaram numa luta corporal, um pouco enredados pelo vestido de Lady Raquel, mas depois de um baque seco, o mascarado encolheu-se sobre o soalho, manchando o tapete cheio de pelos, de sangue preto e frio.

Paisano ajoelhou-se e por pouco não levou uma punhalada da adaga esmeralda, empunhada pelo outro ladrão. O que atingiu a cadeira de veludo, fazendo um dos gatos saltar pelo balcão, fugindo do fogo que se alastrou como na palha seca ali dentro do apartamento.

As labaredas estavam lambendo o teto e espalhavam-se em direção às estantes de livros, enchendo o ar de uma fumaça preta e sufocante.

Maria jogava a água dos jarros de flor sobre o fogaréu que lhe queimava os olhos, inutilmente.

A ave revoou de um lado para outro e foi ganhando em direção às escadas.

O ladino levantou o punhal mais uma vez, mas acabou o cravando sobre a escrivaninha, quando Paisano se esquivou para o lado, desviando da mão pesada que vinha em sua direção.

Rolou para trás do mascarado e empurrou sua cabeça, batendo-lhe a testa no cabo do punhal, desmaiando-o imediantamente.

Mas em seguida, e com isso o pirata não contava, um terceiro mascarado o surpreendeu por trás, segurando-lhe com um garrote no pescoço, enquanto Maria lhe atirava livros na cabeça.

Todos começaram a tossir enquanto se mantinha a briga, uma nuvem preta tomava conta de tudo, mas naquele momento uma azagaia fendeu a bruma violenta, atingindo o invasor bem no meio das costas, que gemeu, em seguida uma segunda lâmina voou e cravou ao lado da outra, fazendo o homem cair sobre o soalho que começava a prender fogo. O ladrão rolou sobre as chamas, e enquanto seu corpo ardia, em desespero, atirou-se do balcão gritando.

-Paisano, você está bem? - o rosto da pequena foi visto com alívio, enquanto um sorriso preocupado se abriu nos lábios de Valéria.

O pirata assentiu com a cabeça, atordoado e sem ar.

-Vão! -Ela disse, ficando para trás tocando os gatos na direção da escada.

O marujo juntou Maria, quase desfalecida, e foram rumando escada abaixo.

Do lado de fora deixou a mulher e tentou entrar no casarão, mas as chamas e o calor eram intensos, o que o impediu de saltar na direção da entrada. Mas logo viu a pequena pular para fora com o rosto tisnado e arranhado, tossindo e com os braços cheios de gatos e alguns livros.

-Ei, você está bem? - perguntou a pequena, entregando os animais para a dona, que levantou os olhos cheios de lágrimas na sua direção. - Tia Maria? -perguntou incrédula. 

-Faléria? Sim, eu rreconhecerria essas olhos redondas em qualquerr lugarr!

-Focê salvou a minha livra de prrotocola! Que mocinho mais querrida! - disse a advogada enquanto limpava seus pertences sobre a mesa da estalagem, após recobrarem-se minimamente do ocorrido.

-Tia Maria era casada com meu Tio, depois veio para cá. Ele é muito chato mesmo. - Disse Valéria, enfiando a cabeça nos seios fofos da mulher, num abraço apertado e desajeitado, mas cheio de amor e saudade, enquanto enchia o colo da tia de lágrimas sem fim.

Do outro lado da rua a brigada de incêndio extinguira as chamas, mas o imóvel e o passeio, cercado de curiosos, estavam tingindos de lama preta, foligem e restos de construção carbonizados. 

A mulher soluçava de quando em quando, voltando suas atenções para a casa e tudo que perdera, cheia de pesar.

-Aqueles homens, Paisano, eram os homens do mestre das facas, não é? Segui você um tempo depois que saiu, a Valda roncou tanto que não pude dormir mais, agradeça à ela se está vivo.

-Eram sim. Mas há mais deles por aí. Vamos pisar em ovos pela cidade, não estamos mais seguros.

Depois de algum tempo um oficial da brigada entrou na pousada e chamou pela Doutora Maria, pedindo que assinasse uma papelada sem fim.

Paisano foi na direção do prédio, onde seus sonhos do futuro residiam consumidos pelo fogo, nada de pagamento, nada.

-Ei, alguém entrou aí dentro? - perguntou para um dos guardas, limpando o rosto suado na bainha do vestido.

-Ah non, impossífel, non sobrar nada ali. A inventárrio de tuta que retirramos dos destrroças está com a Doutorra Marria, tem de verr tuta que sobrrar com ela.

Paisano retornou amargurado, mas checando a lista não vira nada de punhal nem títulos, nada, sentia como se as três Luas tivessem caído sobre a sua cabeça, todas de uma vez só.

-Cróc, minhas penas queimadas! Cróc. - resmungava Carlotta, sobre o braço de uma cadeira, limpando as penas retorcidas com o bico, embora tenha saído janela afora, o calor não lhe poupou.

A companheira tentou consolá-la em vão, haviam perdido tudo, aguardavam o perito chegar para abrir o sinistro, e sinalizara à Paisano que lhe entregaria uma quantia, pela boa-fé na conclusão do serviço, mas nem isso fez brilhar qualquer luz no rosto do pirata, que sentou-se e pediu ao estalajadeiro para trazer polkum, uma caneca após a outra, repetidamente.



Um pé de cabra, duas laranjas e um pernil defumado


A cabeça doía como se houvessem forjado uma espada sobre ela, mas não foi a primeira coisa que sentiu. Tinha a sensação de ter o peito atravessado por duas adagas. Mas também não era isso o que mais doía. De fato, arrancando-lhe do torpor, vinham as dores e o amargor saindo boca afora, numa contração desmedida e dolorosa, como se um demônio puxasse suas entranhas pela boca, tudo de uma vez só. Mas nada saía, embora o estômago e o abdômen fizessem muita força, fazendo as veias do rosto saltar.

Depois dos espasmos a escuridão da visão foi passando e viu sob seus olhos o ladrilho branco e úmido, cheio de restos de comida e polkun, cheirando a vômito. 

Tentou forçar os braços a erguê-lo da sarjeta, mas a cabeça doía tanto que se deixou ficar deitado ali mais um pouco, sobre as pedras geladas que lhe traziam um alívio indizível.

No peito não eram punhais afinal, mas duas laranjas por dentro do decote do vestido, sobre as quais estava deitado, não sabia há quanto tempo. As jogou para o lado e foi erguendo o tronco novamente, tentando sobrepujar a dor lancinante que batia como uma martelada na fonte. A luz da manhã era intensa e teve que apertar os olhos até poder enxergar alguma coisa.

Quando levantou-se afinal, foi como estivesse subindo pela primeira vez ao convés durante uma tempestade, o barco adornou e Paisano marejou, novamente uma ânsia subia pela boca. Não tinha mais forças para deitar na sarjeta, segurou-se no estertor de um balcão plantado na calçada até o mundo parar de girar ao redor de si. As pernas bambas foram ficando mais fortes, podendo até levar o pirata a dar alguns passos.

Quando se ergueu, por baixo do vestido, viu um grande volume na barriga. Sentou sobre o meio fio e puxou o que havia ali por entre as pernas , como um parto. Era um pernil de porco defumado, mas com uma tatuagem: “de Lili Lulu, com amor.”.

Paisano levantou a cabeça e bateu levemente a nuca em algo que estava enfiado às suas costas, por dentro do vestido, como uma espada. Era um pé de cabra de ferro torcido e ensanguentado.

Apertou os olhos e passou a mão pesada pelo rosto, tentando se recompor, mas nada lhe vinha à memória, nada.

Foi se arrastando pelas ruas em direção à estalagem em que estavam hospedados. Na portaria o estalajadeiro o recebeu contrariado, exigindo que retirasse seus pertences dali, que não queria mais confusão na pensão.

Chegando no quarto, tudo revirado. Suas amigas não estavam lá, a porta aberta, coisas quebradas e sinais de luta, dentro de um penico virado estava o saco mágico: “Valeria escondendo as coisas..” pensou.

Nisso, viu a copeira passar pelo corredor e a chamou:

-Ei, ei! Viu o que aconteceu por aqui?- disse espremendo os olhos e sentindo a boca se abrir como um velho sarcófago arrombado depois de mil anos.

A jovem espiou para os corredor vazio e disse, num copta sem qualquer sotaque:

-não posso falar! Sou de Ankset e sou nova aqui! É meu primeiro emprego, Senhor! 

-Só quero saber o que aconteceu, senhorita. Para onde foram minhas amigas? -o pirata se escorou sobre o batente da porta tentando um charme que não estava ali, se pudesse olhar em um espelho veria quão deprimente era a cena.

-senhor, vou lhe trazer um copo d'água e um jarro de água morna com lavanda e espuma de sebo de carneiro. Vai lhe ajudar.

 Paisano girou e caiu sobre o catre e todo o teto ficou rodando.

Depois de algum tempo a copeira voltou, vertendo água quente no bacião:

-meu senhorio mandou que o ajudasse a se vestir e sair daqui, pediu que desocupasse o quarto. -a arrumadeira sacudiu o banho jogando o ar perfumado e a fumaça da lâmina d’àgua, cheia de ervas, para cima. Era como um campo florido, uma doce manhã refrescante que evaporava do bacião. -tire suas roupas e caia n’àgua.

-Não consigo! - disse Paisano, com a fala torta, revirando os olhos.

A copeira cedeu, embora contrariada, ajudando a tirar a roupa do marmanjo e a colocar-lhe de molho no tacho de cobre. Foi o esfregando e despejando a água morna, enquanto o pirata se portava como um bebê.

Depois de limpo saiu dali chorando, encolhido foi para o catre e resmungou, sentindo culpa por não saber onde estavam suas amigas: “sou péssimo amigo, Cleide.”, ele dizia.

-é Marisa. - ela respondia.

-Ana, não me abandone! - Paisano segurou-lhe a mão. - Preciso de ajuda para encontrá-las! Me conte o que aconteceu!

 A mulher titubeou um pouco, mas espiando a porta sussurrou. 

-O senhor bebeu a tarde toda até ser expulso daqui, saiu vagando pela rua. Já a Doutora Maria foi ficar na casa do Burgomestre Amadeus. Mais tarde homens invadiram a pensão e teve uma luta. Suas amigas foram levadas por capangas de alguém.

-guardas?- disse preocupado, recobrando de forma séria os sentidos.

-não, palhaços de circo. Foram na direção do outro lado da rua, pelo beco. - apontava pela janela.

 Paisano deixou o estupor e foi vestindo as suas roupas limpas e perfumadas, calçou as botas preocupado, escondeu as adagas e pendurou a espada na cintura. Escondeu o topete com o chapéu da fantasia de pirata da pequenina: era um ótimo chapéu afinal. Antes de sair, voltou abruptamente e deu um beijo na copeira, agradecendo o que lhe fizera.

-Tchau, Emília!

Foi indo sob protestos da mulher, que queria desocupar o quarto, na saída deixou duas moedas sobre o balcão e pediu para o anfitrião relevar o incômodo. Mas não ficou para ver as fartas sobrancelhas do estalajadeiro se erguerem, aceitando de bom grado o pagamento.

O pirata caiu na rua indo em direção ao beco. Havia sinais de luta: lixo revirado, espirro de sangue manchando uma das paredes. Uma carroça fora derrubada e encostada sobre o muro, atrás, palha e sangue se misturavam sobre dois corpos. 

-Mortos, mas Ainda estão mornos. - pensou ao tocar o pescoço de um deles. - Uma perfuração enegrecida na costas, na altura do rim. Elas podem ter sido trazidas para cá para serem executadas, alguém procurou por algo no quarto, estavam atrás do punhal. Vieram para o beco, elas à frente. Essa facada, é “a supresa no rim”... Valéria, boa menina! O outro morto teve o braço arrancado, mas não por um instrumento de corte. Parece até que um gigante o desmembrou. ali- continuou o raciocínio, vendo pegadas indo na direção da oficina do ferreiro.

Interrompeu o bleng, bleng do homem:

-Ei, amigo,  viu alguma briga por aqui mais cedo?

O homem suado caminhou em direção à porta da oficina, deixando o calor da fornalha, debruçado sobre o umbral coçou a testa cheia de fiapos loiros, quase brancos, o rosto recozido, num vermelho intenso do fogo da forja:

-sim! Eu vir umas palhaços estrranhas levarr uma moço é um crriança parra a beco. Entom eu chamarr as guarrdas. Acho que forram com elas, lá na dirreçon da Manson do Burgomestrra.

Paisano agradeceu balançando a cabeça e foi indo pela viela.

A casa do burgomestre ficava rua acima, perto da praça central, que estava apinhada de barracas e transeuntes vendendo comidas, pertences, bebidas, animais, tecidos, roupas, pratarias. Na quadra Sul era aquele mestre que cuidava de tudo, Amadeus Capitolino. Na ponta da quadra uma modesta colina cercada de um muro branco de pedra, estertores imensos guardavam dois portões de madeira e ferro. Um guarda protegia a entrada do captólio, armado com uma lança de cristal.

-ei, amigo! Viu uma mulher alta, sem um braço e uma criança aqui pelo quartel?

-estão presas no xerifado. Atacaram guardas no beco do ferreiro.

-você poderia chamar a Doutora Maria? Tenho certeza que tudo não passou de um mal entendido, a doutora vai resolver.

-mal entendido? A mulher sem braço parecia um urso gigante, estava em frenesi, desvairada, rasgou a armadura de um dos guardas e arrancou suas costelas com a mão. 

Paisano arregalou os olhos, com certeza era Valda. Saiu pelo passeio na direção do xerifado, enquanto tentava desviar do povaréu aglomerado na rua. Alguém na multidão gritou para ele, mas sem receber importância:

-ei, ei você! É aquele transvestido que apertou os peitos da minha mulher!

O pirata mergulhou na saída mais próxima e desceu para a direita, querendo contornar a praça, indo em direção ao xerifado, como o guarda lhe indicara. Ao chegar em frente ao modesto prédio de barro Caiado, ouviu os gritos de Valda, foi adentrando e viu que estava contida em uma cela.

-é minha mulher! - gritou para um dos guardas que estava atrás da escrivaninha.

-ela dilacerou um soldado. Vai ficar presa - enfatizou, cuspindo no chão e falando em copta, tinha a pele bronzeada e o cabelo muito brilhante e liso saindo numa cola através de um orifício no topo do capacete.

-um solarino nessas bandas!-  provocou Paisano.

-Minha mãe era solarina, escrava, eu sou um soldado! E você se quiser tirar sua mulher e aquela criatura empertigada daqui, - e apontou para a cadeira onde Valeria estava sentanda, muito quieta e cabisbaixa, balançando os pés que não encostavam no chão.- vai ter que conseguir um bom advogado de ofícios ou um oficial de fiança! Preencha todos esses formulários e peça uma audiência de custódia -depois bateu na mesa encerrando o assunto e empurrando Paisano para fora do xerifado.

Do lado de fora Paisano encarava desencorajado toda aquela papelada sem saber por onde começar:

-Alcunha, descrição do fato típico, autoctone ou ádvena, descrição do auto de flagrante delicto… - Quê? 

O pirata retornou até a janela e perguntou ao guarda, revirando as pepeletas:

-Tem algum formulário em Copta?

-Está em Copta! - respondeu o guarda gargalhando -Dá o fora daqui!


Nunca havia lido nada parecido e nem sabia por onde começar aquilo. Retornou imediatamente até o Capitólio e foi ter com o guarda aos portões:

-A Doutora Maria, pode chamá-la, por favor?

-Tem axendamento? - respondeu com um sorrisinho no rosto.

- Não, é uma emergência! A sobrinha dela está detida no xerifado!

O guarda arregalou os olhos e bateu no portão, ao que o postigo abriu, e um outro guarda o atendeu.

-Chamarr a Doutorra Marria aí, carra.

-Tem axendamento? - perguntou o outro guarda.

-non! A sobrrinha dela fai serr prresa no xerrifado! - o postigo fechou, depois se ouviu o som de uma armadura tilintando até sumir.

O guarda na rua apertou os olhos encarando Paisano:

-Conheçerr focê! Focê serr aquela puta que foi tançando no palco da Cavalo Brranco e depois espancou com uma pé de cabrra um palhaça que meterr a mom porr baixo ta saia,e pateu nela até morrer a coitato to lado de fora?

-Não! Você está enganado! - desconversou o pirata, virando o rosto para o lado e apertando a cara.

- Erra focê aquele moça, sim! 

-Não! Não era!

Paisano foi salvo pelo portão a estremecer, quando Maria colocou o nariz para fora, espremendo os olhos sobre o óculos fino: 

-Paissano! - e foi saindo, ajeitando os peitos dentro do vestido de seda dourado, empurrando a peruca farta e branca para o lugar. -  O que acontecerr com Falérria?

-Se meteu numa sinuca de bico!

-O quê? - perguntou a advogada sem entender nada.

-Uma confusão!

-Ah sim, sim! Ententi. - foi pegando os papéis das mãos do amigo, e caminhando em direção ao xerifado.

-Parece que Valda matou um guarda, está detida em cácere. Valéria não, mas não posso tirá-la de lá, não entendo nada do que diz ai.

-É porr issa que ecxistem os adfocatos - respondeu, dando uma olhadela por cima do óculo e batendo levemente com a mão na sua bochecha. - son muito e muitos anas estutando e aprrendendo palavrras muito, muito tificeis parra poderr fazerr uma coissa que non é parra ninquém mais saberr fazerr, minha coissinha linda!

Às portas do xerifado ela se deteve preenchendo os documentos e em seguida arrumando o vestido e a peruca, entrou como vento através das portas vai-e-vem:

-Doutorra Marria, adfocata, oficiala de tocumentos da quatra sul, porr orrdem das poteres quem me forram conferritos pelo Contestável de Zarmund, orteno axendamento de urxencia de uma autiência de custótia! - o guarda olhou desconfiado para ela, que apontou para peruca, o fazendo entender imediatamente que se tratava de uma oficiala, recolheu os documentos e formulário e sumiu para dentro da secretaria do xerifado.

Pouco tempo depois, retornou acompanhado de um homem muito alto e muito gordo, coberto de um manto de preto e usando uma peruca rechonchuda e laranja:

-Doutorra!

-Doutorr!- ela respondeu.

-Porraqui! - o burocrata foi apontando o caminho, até chegarem em uma saleta, realmente pequena, com duas cadeiras e uma mesinha entre elas, ali um sininho aguardava por eles.

-Entrrem totas os pessoas! -ordenou o oficial enquanto colocava um bigode postiço- teclarro aberrta autiência de custotia! Atvirto às parrtes que non é perrmitido confersa aqui, serrón exspulsos ta sala os dessobedientas! -e foi balançando as folhas, revirando as papeladas, murmurando o que ia lendo, com a ajuda de uma lupa. - Narra a formularria que na tarrde de hoxe, forra aportata pela guarrda a acussada Valda e a acussada Valérria, em tecorrência dissa, a primeirra atacou as homens da Burgomestrra, cometenda a crima de homocídia dolosa, com intenção de matarr a homem, com a qualificadorra de morta hetionta. - o burocrata bateu o sino e Maria prosseguiu.

-INocenta até que prrova a contrário! - e bateu o sino.

O xerife puxou a sineta e sacudiu:

-Totas as outrras guarrdas son testemunhas! - e sacudiu a sineta.

Maria pensou rápido e badalou novamente:

-A Guartas non son testemunhas! Son axentes da Burgomestra! -e apitou outra vez.

O homenzarrão, que mal cabia na cadeira, recolheu o sino ainda pensando no que dizer, mas lhe veio algo enquanto badalava:

-Axentas da Burgomestra son axentas da povo!

Maria pegou sino da mão do xerife com pressa:

-Non, son pagas pela Burgomestra da Capitólio!

O xerife arrancou o sino da mão de Maria:

-Non, rés pública!

Ela retrucou soando o bronze:

-non, rés privata! - tocou aquilo incessantemente e não devolveu o badalo à mesa.

Perdendo um pouco a paciência, mas aguardando a campainha cair na madeira, ele disse:

-Defolfe a campânula!

Maria segurava com força enquanto sacudia a sineta bem acima da cabeça dela, fugindo das mãos do xerife, ele tentava retirá-la das mãos ágeis da oficiala, que começou a gritar:  

-A tedefesa infoca a Lei da Toca! A tedefesa infoca a Lei da Toca! A tedefesa infoca a Lei da Toca!

Os guardas presentes colocaram a mão sobre a boca e fizeram expressão de incredulidade, olhando uns para os outros, sussurrando “a lei da toca”, “ a lei da toca”.

Ela prosseguiu e depois bateu a sinete de novo:

-Fiança, fiança, fiança! - tilintando a lata inúmeras vezes.

O xerife balançou a cabeça, decepcionado. Então, contando até três, ambos lançaram as mãos para frente fazendo números com os dedos, dizendo “protesto, protesto”, num procedimento chamado “cálculo de fiança”, para estabelecer o valor devido em melhor de cinco tentativas.

Ao final o xerife deu uma gargalhada balançando o sino:

-Uma milhón de Lugas, serr a fiança pela Lei da Toca!

A advogada recompôs as vestes e puxou os papéis para junto de si, esticou a mão até a gola de Paisano e o trouxe até a sua boca, para sussurrar-lhe no ouvido:

-Tenho 10 mil Lugas da segurra contrra fogarréu. O que focê ter de dinheirra?

Paisano ficou embasbacado e não conseguiu dizer nada. Mas todos ouviram uma voz estridente que vinha da porta da saleta lotada:

  • Eu pago! -disse Valéria de braços cruzados, repousando o ombro no umbral. -e esticou o braço entregando uma papeleta meio tisnada para o xerife - isso vale mais que um milhão de lugas entre terras, lavras e criados: um título de propriedade de um condado!

O burocrata analisou e balançou a sineta sorrindo:

-Libertas! Libertas! Libertas!, fai livrre sob o touca da liberrtati!

O que elas não esperavam era o fato de que deveriam andar pela cidade vestindo um longo chapéu vermelho com uma sineta na ponta, que foi colocada como uma coroação na cabeça de ambas. Mas antes de serem liberadas o xerife colocou uma caixa sobre a mesa, onde uma adaga de lâmina quebrada, em tom verde esmeralda reluzia:

-A faca ta pequenina fica na xerrifada! Muito, muito perigosa uma crriança andarr porr aí com uma brrinqueda dessas!

Paisano abriu os olhos com tanta força que pensou que não poderia fechá-los novamente, nunca mais. Virou a cabeça na direção de Valéria, sem crer que aquilo pudesse ter acontecido, mas a pequena deu de ombros, corando feito um tomate. O pirata a segurou pela orelha, a levando a reboque para fora do prédio:

-Esse tempo todo você escondeu que tirou a adaga e o meu pagamento de dentro do prédio em chamas? - ele estava furioso, como nunca ficara antes.

A marinheira tentou se desvencilhar do aperto, mas estava com os pés quase flutuando na calçada e acabou dando a pior resposta que poderia:

-Pai, você nunca perguntou se eu os tinha pego! - paisano a soltou, o que não foi suficiente para parar as lágrimas inocentes que Valéria se pôs a verter, enquanto ficava encolhida na amurada do prédio. -Você saiu bebendo e aprontando feito um hierofante comilão das ilhas do sul, atropelando tudo pelo caminho, depois que a casa da Tia Maria prendeu fogo. Depois começou a arrumar confusão na estalagem, foi posto para fora e desapareceu. Se não tivesse sumido eu não teria me metido em confusão, você teria o seu pagamento e a adaga e nenhuma de nós estaria usando esse chapéu ridículo!

Paisano respirou fundo e sentou ao lado da pequena, assumindo sua meia-culpa. Depois, aos poucos, deixou o orgulho de lado e a puxou para perto de si, colocando a cabeça careca sobre o seu colo.

Valda coçava o couro cabeludo sem parar por causa daquela lã quente e felpuda, sua testa estava tão vermelha quanto a touca, e ela se agachou procurando os olhos de Paisano:

-Não sei o que deu em mim, eu vi aqueles palhaços e soube que iriam nos matar, então tudo ficou preto e  quando voltei a mim estava dentro daquela cela! Paisano, me desculpe!

-Não peça desculpas, sou um tolo idiota! -e foi secando algumas lágrimas que insistiam em sair. - nós vamos recuperar nossas coisas, sempre dou um jeito, não é? -e deu uma olhadela para a pequenina, com um pequeno sorriso de perdão mútuo.

Maria os aguardava mais adiante, fazendo sinal para se juntarem a ela, distante dos muros do xerifado.

-Vamos lá, sua tia está chamando. - disse condescendendo e esfregando as costas da pequenina. - vai ficar tudo bem. 

E foram levantando ao som dos sinos, que balançavam de um lado para outro, na ponta grande e torta dos ridículos chapéus em cone.




fim da parte 1



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