3 de julho de 2021

Marujos, espadas e trapaças

 




O que os homens fazem na escuridão

Israel correu como um sorro no meio da mata, foi andando com o archote apagado, se esgueirando de pinheiro em pinheiro. Deslizando junto à relva na clareira, caindo alguns tombos, mas procurando manter-se nas sombras para que o homem que seguia não o visse. 

Ele não queria estar ali, mas sabia que deveria, afinal, desde o dia em que aquele estranho enfiara o pé na porta de sua casa, que ficava na herdade sob proteção de Eduardo Minarica, e ali se instalou, comendo do pão e da carne que sustentava a família, sua vida virara uma desgraça. 

Um ciclo de lua vinha durando aquele inferno, sabia que não poderiam continuar vivendo assim. E o Estranho nada falou ao chegar, mas tinha uma ar soturno, a pele acinzentada, um cão feroz que o acompanhava. Fez de toda a família de Israel reféns em sua própria casa.

Arrancou-lhe a irmã da cama na noite alta, despertando a todos, com o cão infernal latindo desatinado, fazendo sinal para que fosse para o chão, e dormiu na enxerga aconchegante sobre o leito, sendo vigiado pelo cão, que de vez em vez pestanejava aos seus pés.

O Estranho exigia a tudo sem falar nada. Sentava e comia calado, queria ser servido e deixado em paz. Então, ao seu bel prazer os fazia sentar e comer junto dele, entre mãos trêmulas, coisas caídas e o choro irrefreável da irmã de Israel.

O pai tentara apunhalá-lo pelas costas uma vez, o que fez com sucesso, mas o Estranho sangrou pouco e botou o cão para cima do pobre velho, fazendo arrancar-lhe um bom pedaço da panturrilha. E desde então ninguém mais tentara nada, ficaram à mercê daquele Estranho na desventura daqueles dias.

Quando se demoravam a trazer o que queria ou a fazer o que comandava com a mão, já descia o punho sobre a mesa, e o cão começava a latir incessantemente incutindo um pavor nos nervos trêmulos.

Eis que na noite mais escura o homem deixou a cabana e sem saber se ele voltaria ou não, Israel se esgueirou pela mata querendo descobrir seus assuntos.

E foi rumando em direção à velha mina de prata.

Israel, mantinha distância razoável, mas acompanhava a luz da lamparina que o Estranho carregava. O cão parava de vez em vez, como que percebendo que estavam sendo seguidos, mas o amo o mandava tocar adiante, estava com pressa e sua desvantagem era a luz, essencial naquela noite de breu.

Quando entrou no portão da mina, a claridade que Israel perseguia se encerrou, e ele ficou tateando os bolsos até encontrar o isqueiro e pôr fogo no seu archote. O que fez com dificuldade, pois suas mãos tremiam de nervosismo, afinal, ainda não tinha certeza se não estava sendo visto. Por conta disso ainda derrubou seus aparatos e demorou a encontrá-los no chão, antes de fazer o fogo e a luz.

Mas assim que fez, aproximou-se devagar.

De súbito pensou que não haveria como entrar ali sem ser percebido e lembrou-se da entrada lateral onde brincava com alguns meninos quando pequeno.

No tempo que a mina ainda estava ativa um túnel lateral fora cavado por ladrões para retirar as riquezas na calada da noite. Mas assim que um dos três túneis principais desabou a mina foi condenada, e hoje nada mais que morcegos saíam e entravam guiados pelos dormentes apodrecidos na direção do céu noturno.

Então Israel foi se esgueirando pelo buraco apertado, empurrando o archote à sua frente. O calor do fogo era demais e a testa do rapaz brilhava banhada pelo suor. Então sentiu-se sufocado em seguida o fogo foi mirrando até se extinguir. Mas o Jovem não parou e foi avançando com dificuldade através do estreito canal na rocha.

Foi que, quando pensou que não podia mais suportar aquilo começou a ouvir vozes e uma claridade muito tímida se anunciou. O túnel desembocava no salão principal do segundo corredor, numa cavidade alongada, cuja escada era formada de pequenos sulcos na pedra.

Mas Israel não desceu, ficou oculto pelas sombras da cavidade, primeiro somente escutando muitas vozes entoando um canto ininteligível. Depois colocou a cabeça para fora e viu que eram muitos homens (ou mulheres) não sabia ao certo, pois a penumbra era grande e a pouca iluminação lançava sombras nos baluartes do salão. 

Primeiro cada um falava uma coisa e depois todos juntos começaram a repetir o mesmo trecho, mosregem, ele entendeu. Então se fez o silêncio, e o homem à frente elevou uma arma acima de suas cabeças, uma espada quase sem lâmina que emitia uma pálida luz verde, tingindo o interior da caverna de um doentio tom esmeralda, como se estivessem todos submersos em um lago de água verde musgo.

Então Israel colocou a cabeça para fora da cavidade novamente e viu o misterioso estranho indo na direção daquele que seria uma espécie de mestre. O cão latia alto e reverberava nas paredes do salão, derrubando grãos de areia do teto inteiro.

Quando o Estranho estava próximo o suficiente, o mestre, sem piedade nenhuma, o atravessou com o toco de lâmina que ainda restava no cabo da adaga, e a luz cintilante penetrou através do seu corpo, iluminando o sangue que fluía no Estranho. A arma foi removida, mas o homem não caiu, ficou de joelhos, mortificado, mas vivo. E após todos retomarem aquele cântico é que o Estranho se ergueu e foi enfaixado, o que pareceu ser o ponto alto da celebração. É claro que Israel não ficou para ver o resto e saiu com pressa e desajeitado pelo túnel. Ganhou à floresta e foi tentando acender o archote no caminho, tropeçando por tudo, ofegante. Há uma certa distância fez o fogo e correu no bosque de pinheiros com apenas uma única idéia, retirar sua família dali e procurar ajuda na casa do condestável. O que fez, com pressa e sem retirar os pertences do lugar. 

Mas quando voltou com ajuda, nenhum sinal do Estranho restava, tampouco do culto que anunciara ocorrer na mina abandonada, nem do ritual sinistro que o Condestável julgou que o jovem pensou ter visto. Tudo uma alucinação na Noite Mais Escura.

Quanto aos danos sofridos tanto na propriedade como aos familiares, o Senhorio e Protetor Eduardo Minarica falou que pagaria ao jovem uma cabra pelas injúrias e um ofício de grumete para o rapaz na Companhia Geral de Comércio do Norte, onde seu irmão era Capitão de um encouraçado mercante chamado Viúva Molhada, tudo isso em troca do seu eterno silêncio.

Um homem longe de casa

Trezentas peças de ouro foram ao bucaneiro Goot quando perdeu o braço esquerdo. Usava ainda o velho tapa-olho ao entrar e sair da casinha de madeira improvisada ao lado do sino. Desde que deixara o Corso de Pequeno Kid fora trabalhar em Porto Gentil, um dentre as dezenas de portos ao Longo da costa abaixo de Tocaspretas, entre o Mar de Carabeus e  o Mar de Cima. Porto Gentil era um ancoradouro comandado pela Companhia Geral de Comércio do Norte, uma reunião de Mercadores, Mestres e Comerciantes que crescera em lucros e se expandira acentuadamente após a paz.

Ali Goot balançava o sino toda vez que um navio acostava ou zarpava do porto, saía correndo de dentro do casebre, dependurando-se com um pulo no cordame, e deixando  o corpo pesar, badalando o aço e o ferro com o símbolo da Companhia Geral. Seus pés logo chapinhavam na lama do cais, de novo para cima, então logo tornava a badalar o sino: “Viúva Molhada Acostando ao sol a pino”. Ele estendia a luneta trepado na choça da cabina de madeira junto com a tábua de senhas e a primeira senha para acusar a ancoragem, a segunda para dizer a hora, a terceira a carga. A Viúva Negra estava chegando para levar reabastecer o navio e  levar passageiros rumo às Terras de Cima.

Depois corria com as papeletas debaixo do braço, ia buscar o prático timoneiro e os homens de ancoragem, perdendo o chapéu e sempre deixando cair seus pertences pelo caminho.

Depois voltava quatro vezes na vigia de terra acima dos recifes para tocar o corno das marés, avisando aos marujos e mestres das horas adequadas para chegar e sair do Porto Gentil. Um corredor de corais adornava a passagem submersa até porto, e por isso era necessário que um homem da casa guiasse as embarcações até o ancoradouro, a fim de não danificar os traveses.

No sol a pino a Viúva Molhada arrimava sobre as escoras afofadas do Porto Gentil. O ancoradouro 1 da Companhia Geral de Comércio já estava tomado dos equipes de armação: alcatrão, fumo de erva amarga, água, Polcum, panos de mar, dez corpos de carne defumada, um tonel de ovos n’água azeda, quatro rodas de cânhamo em corda, duas gaiolas de 1 corpo cada, cheias de pombos. Milho, batata e aveia. Os passageiros se aglomeravam no hangar para ver a embarcação e seus tripulantes, enquanto os marujos passavam os cordames e as esteiras até o passadiço.

-Vão para trás, vamos! Primeiro a comida, depois a bebida, depois as mulheres, os velhos e as crianças. Por fim os homens valentes e os homens fortes que chegarão. O porto é gentil, Mas quem fica para trás é deixado para trás! - gritava o grumete sacudindo os braços para a equipagem que se dirigia à armação: “

-Sempre com seus bilhetes na mão. Sacudam os braços os passageiros da Viúva Molhada, a Fragata Couraçada aposentada de Bar, o mais elegante navio de passageiros e cargas finas da Companhia Geral. O trio de Mastros cujos véus que vêem ferrados, voarão nas linhas do nosso horizonte até as Terras de Cima. Logo estarão todos nos braços da Viúva, a mais veloz de todas, a grivar o vento nos altos de seu gurupés.- O grumete agitava os passageiros a acotovelarem-se na beira do cais, braços erguidos balançavam os bilhetes, em meio à gritaria e empurra-empurra na margem da trevés. A equipagem toda em seus postos de carga, subindo os víveres e carga sobre o cordoalho de esteira. A primeira, uma porca de dois corpos que berrava na gaiola ensurdecendo os aprendizes a fazer força, ia acima pelo passadiço, sobre os roletes de angico. As línguas tinindo subiam um caixote aparentemente muito pesado, de forma ritmada, ao som da resposta dos marujos ao seu contra-mestre: “O que fazer com um marinheiro bêbado logo pela manhã?.” e todos respondiam enquanto puxavam “ Trace o curso do facão e ele se levanta”. “O que fazer com um marinheiro bêbado logo pela manhã?” “Raspe-lhe a barriga com uma navalha enferrujada!”

Após subir a armação e a carga vieram os passageiros. “Primeiro os velhos!”, ordenou o contra-mestre. Ao comando uma bengala de alabastrino brilhou acima de todos e entre os amontoados, espetando o bilhete de embarque. Um velho que logo foi posto a caminho do cordoalho, com o capuz esfarrapado e uma bolsa a tiracolo. 

O contramestre lhe fez baixar a carapuça quando chegou ao tombadilho.

-Alto lá! Ôh, Sinhô, o bilhete, mê dê o bilhete!

O velho estendeu a bengala para que o contra-mestre o recolhesse. Assim que o leu caiu na gargalhada.

- Abram passagem, meninos - falou em tom de escármio- vai passar o Sinhô Rei da Cidade da Lua.

O passageiro parou de súbito e desceu o gorro, encarando seriamente a equipagem, ele se demorou a puxar uma fita que estava sob o pescoço, desvelando uma grande chave que carregava sobre o peito.  Depois a ergueu para que todos vissem: “O templo da Cidade da Lua se abre ao meu comando, mira”- e apontou para as calças do contra-mestre Brodi- “a sua bexiga já não sei se lhe obedece…”.

O oficial fez uma pausa e sentiu-se consumido pelo ódio enquanto enchia o soalho de urina. A fúria estampiu seus ouvidos e só conseguiu ouvir depois de algum tempo os marinheiros a bordo gargalhando incessantemente.


Um marinheiro bêbado logo pela manhã

Deixe o trago e não faça como João cozinheiro, (o ajudante estava apagado debaixo da mesa, o lugar mais seguro para se dormir numa cozinha quando se está tragueado), sente aqui e me ajude com essas batatas Senhor Israel. E bateu com o pé no saco de batatas apontado o banco na quina da mesa.

-Yarr, Yarr, esse é um marujo velho, já com a alforria nas costas, andou na grande guerra e hoje, perdoado pelo almirantado pelos serviços prestados para o restabelecimento da paz, ficou mole. Está aí, caindo com o trago, tão mole como os dentes que ainda não decidiram abandonar o dono de vez. Veja você, sei amigo, é novato aqui.

E o rapaz arregalou os olhos e começou a descascar as batatas, como desconcertado.

-Eu sei, seu sei, ninguém engana o velho Bode. A propósito, esse é meu nome e você é o grumete contratado em Porto Gentil. Eu sei, o velho Bode sempre sabe. Você não escorvou as bombas como deveria não é? Serviu o trago errado ao imediato. Mandou a letra errada usando os fanhões. Correu na borda falsa e caiu ao mar. O Pobre Igor, foi ele mesmo lhe salvar, e ao regressar a fragata derrubaste o cordame que sustentava o baleeiro, enquanto o Pobre Igor subia pela escaiola de estibordo, caiu e nunca mais foi visto. Também tendo sido preso, fez por onde ser solto, ao passo que na primeira noite em tua detenção choraste tanto que não puderam os homens dormir. Eu sei quem és, o velho Bode sempre sabe. Pois agora estás aqui, de frente comigo e eu de frente contigo. E estamos nos olhando e eu pensando que infernos vão acontecer em minha cozinha hoje. Eu sei, o velho Bode sabe, yarr, yarr. Essa minha faca é muito afiada e toda carne na panela é igual. Portanto novato, o meu conselho é bom e você deve usá-lo: não misture as batatas das cobertas baixas com as batatas dos oficiais. Na cozinha e na guerra, facas sempre bem afiadas. Fique aí no seu canto enquanto o velho João não acorda, pois nunca se sabe o que esperar de um homem bêbado logo pela manhã.

O grumete engoliu em seco.

O velho Bode sempre sabe. Correr e navegar no bico da onda, nos mares do norte. Yarr. Pra lá e pra cá. E o velho que é Rei, eu também já o vi. Já naveguei com ele nas Guerras antigas. Faz a água criar vida. Faz o barro se erguer como um diabo. Eu já vi, Israel. O velho Bode sempre sabe. Você contou um segredo a ele, na escuridão do corredor, todos sabemos. Uma Rainha formosa ele tem, uma Rainha que não pode morrer. Viera das Terras de Baixo, lá de Nicéia, cantava como um demônio nas orelhas dos marujos, lhes arrancando segredos, grumete. Ah, sim. Viraram Rei e Rainha, o velho Bode nas batatas ainda. Às vezes entendo porque o João aí bebe logo pela manhã. Veja israel, as linhas do inimigo, as barcaças, as fragatas, os encouraçados cheios de canhões. -delirava- As urcas tinindo no horizonte e manobrando contra as ondas para atirar. BUm! Bum! Os cavacos voando pelo convés! Bum! (e esfaqueva a bancada com o cutelo, onde um pernil de porco escorria sangue). E você deitava um homem inimigo, e era menos um. Preparar para a abordagem, altear o pavilhão Negro. Slash, tripas, sangue e mais um inimigo no chão ( e ele cravou a faca entre as articulações do pernil, como estivesse eliminando o inimigo numa cena de guerra) Ah o pavilhão Sombrio era o nosso pavilhão. Depois fomos tomados e esses homens ficaram moles. Quiseram o perdão. Yarr, yarr.

Israel parara de cortar as batatas e ficou assustado com o comportamento do cozinheiro. Ganhou embaixo da mesa. Mas viu passar zunindo uma faca, escutou o solavanco da lâmina atingindo a madeira da mesa sobre a sua cabeça.

Israel, israel, Vá descascar as batatas que lhe mandei. Disparou o velho Bode, com olhar transtornado para debaixo da mesa. Eu também gosto de um trago pela manhã e sou um bom religioso quando quero. Mas o que mais sinto saudades dos velhos tempos, é de passar a faca num bucho bem macio. Eu gostava do Capitão Baradum, mas ficou mole como esse João aí debaixo da mesa. e quando lhe perguntaram pelo perdão, ele disse que sim. então os homens lhe viraram as costas. ele ficou em Sabo, yarr, yarrr. Hoje as regras são moles, e se não prestam, os grumetes são sempre os primeiros a morrer. Eu sei, eu sei. E no primeiro porto, junto com o Rei, você vai parar de descascar as batatas que estão aí. Vai descer e vai lembrar do lugar para onde nunca voltará, a Viúva Molhada. Sabe porquê? Porquê essa não é a Marinha de Sabo, mas é a velha equipagem de Baradum e nós podemos, sim, nós podemos. Quando o navio balançar lá no Mar de Cima, já sem carga e sem passageiros, não seremos os homens que o Almirantado do Norte deseja, mas os que ele nos permite ser. O facão vai assobiar (e catou uma carcaça de frango), e o Corso virará a toda a barlavento com os armas dos caixotes desveladas, todos empurrando a pólvora e o ferro na goela do canhão (e empurrou farofa temperada para dentro de um frango, socando e socando). Esse homens bravos vão sorrir, vão sim, eu digo. Não pode sobrar nenhum inimigo, nossos bolsos estarão logo, logo, cheios de peças. Só contra o pavilhão de Sabo. Eu sei, eu sei. Até lá amigo, só cortamos batatas. Só batatas...


A Carta Marítima de Varr Jötun


Os tomates balançavam de um lado a outro na bandeja. Um belo pernil de porco e vinho forte de Vaudeferro. Era o que havia sido servido no jantar das cobertas altas, para o qual Ben Adan fora convidado. Convidado de honra, lhe disse o capitão, dando tapinhas nas costas.

Estavam ali os homens reunidos sob a luz oscilante da lamparina, com o vinho embalando dentro do copo e a fumaça do cigarro de corda e parreira inundando o cubículo. Falavam sobre os ventos, sobre política e sobre as novas convenções de comércio que começavam a surgir.

O Sacerdote se mantinha em silêncio, dando pequenos sorrisos, e de vez em quando era convidado pelo capitão a dizer sua opinião. Ao que respondia de forma breve e geral: O que é bom para o comércio, é bom para os vivos. De fato não era essa a sua opinião, mas ali naquele momento, com aqueles homens, era o que deveria ser dito.

Um silêncio sucedeu a toda a conversa que vinha rodeando a mesa. Isso porque o assunto que se queria falar, o qual realmente importava, fora deixado para o momento improcrastinável que se seguia àquele interregno.

E então o capitão levantou o corpo pesado do mar e buscou cambaleante, um pergaminho na escrivaninha. Havia muitos ali, mas escolheu um em particular. Desembrulhou-o em cima da mesa, sinalizando para que o grumete Israel levasse os pratos embora. Sob a luz da lamparina, pra lá e pra cá abriu o papel.

Saltou aos olhos do Rei que aquela era uma carta marítima, escrita nos códigos de Varr Jötun, com o símbolo da Marinha Mercante de Sabo.

Não havia um mapa ali, mas apenas linhas intermináveis e contínuas de símbolos e mais símbolos ocultando rotas de navegação nos mares desconhecidos de Baixo e do Oriente, onde navegavam os homens de Sabo. Ali navegavam Senhores do Mar e detinham o domínio da circulação de bens, valores e serviços nas rotas comerciais marítimas do Leste.

Mestre Ben Adam, o Senhor Sabe tanto quanto nós que os novos tratados de comércio, eles não são mais regulados pela lei revogada do tratado de paz. Que nossas linhas de comércio não são mais controladas pelo Alto Conselho. Sabe que uma convenção ocorrida em Ilha Baroa aprovou a moção do Livre Comércio nas Águas Não Continentais. E essa moção agora permite que avancemos para mares não antes navegados legalmente por nós, águas não autorizadas  nem pela carta de corso que detenho. Pela primeira vez poderemos desbravar os mares de Baixo e do Leste sem sermos tidos como piratas - O Rei de Harpis levantou a sobrancelha e olhou com uma certa dúvida nos olhos do capitão. Mas o Homem do Barco prosseguiu - Pela primeira vez adentrarei o Cabo Björn sem correr o risco de ver meus homens enforcados nas praças dos almirantados, em Benfica, Portogaivotas ou Bar.

Todos os oficiais se aproximaram da mesa, enquanto Israel ainda terminava de retirar as travessas, prestando atenção mais no assunto que no seu serviço.

-Precisamos de um favor seu, Senhor. Precisamos que leia para nós a Carta Martítima de Varr Jötun.

Ben Adam esticou a farta sobrancelha branca, deixando o olho cair sobre a carta: 

-“Não enxergo.” - falou sem pestanejar, apesar do pouco esforço que fizera para lançar o olhar sobre o documento. 

Então os olhares dos oficiais se cruzaram, e correram para o capitão, todos ao mesmo tempo. O ar da sala começou a ficar tenso e todos ventilaram o tema daquela conversa sem dizer nenhuma palavra. Brodi, que não nutria nenhuma simpatia pelo passageiro foi o primeiro a avançar. Mas o Capitão o segurou.

-Vejam bem cavalheiros. Me convidaram para um jantar e não deixam que um velho Rei termine de comer e já querem falar de negócios. Deixem-me gozar da cortesia desse Senhor de Mar e Guerra, para a qual fui convidado a desfrutar.

-Sou um Comandante Mercante, Alteza… - corrigiu o capitão, colocando os pulsos na quilha da mesa, fazendo força contra a natureza das ondas.

-Ah sim! - sorriu o velho. -O Senhor agora é um Comandante Mercante. Um homem que sabe muito dos mares, já naveguei com o Senhor. Não somos estranhos, eu ao senhor, o Senhor a mim. Nos conhecemos sob estes mesmos dormentes remendados, quando esses cavacos de madeira chamavam-se Exequatur, serviu à Fortaleza do Sol de Nosso Senhor  Dágoras na guerra pela paz. E era um belo encouraçado de guerra. Primeiro , derrotado pelos nossos, arriou o Pavilhão Sombrio, depois alteou a Bandeira da União dos Povos, na alforria. Na época o Senhor era imediato de Baradum. Me lembro bem. Conseguiram o perdão real e puderam ser legalizados, o Senhor Baradum e sua equipagem, não é mesmo? Eu me lembro bem, Comandante Torn.

Então ficaram em silêncio esperando a resposta do Capitão.

-Fico admirado em saber que o Senhor, dentre todos os estudiosos das escolas de Mistérios, veio logo a mim, um jusnaturalista que lutou na guerra e que luta pela paz até hoje, para ler esta carta ao Senhor. Mesmo sabedouro de mim, veio e me pede para lhe ajudar numa empreitada que ocorre sob as barbas de uma Lei contrária à todas as coisas nas quais acredito. O Jantar estava delicioso, Capitão, mas tenho sono a essa hora. Como todo velho fraco tem.

O Capitão recolheu o documento delicamente e engolindo aquela negativa, perguntou com todos os nós na garganta: 

-O que o Senhor faz ao norte, com todas as espadas apontadas em frente à sua casa?

O Bardo parou por um instante, e disse sem virar para encarar o oficialato: 

-O que o senhor faria aqui se fosse eu, Comandante? Procuro aliados

Capitão Torn pensou rápido, como era sua maior qualidade: 

-Aos seus olhos meu ato é um ato de guerra, Alteza, isso porque não estou ao seu lado. Mas a todos os homens é possível conseguirem o que querem, enriquecendo com o fruto do seu trabalho sobre a terra e a água. Eu digo Senhor, diante o meu oficialato, é assim que os jusnaturalistas pensam. À luz desse entendimento, Senhor, meu ato não é um ato de guerra, mas sim, um ato de paz. Quero paz para poder trabalhar no mar, onde quer que seja. - Ben Adam voltou-se para o homem surpreso, mas permaneceu em silêncio - Seria seu aliado se fosse meu aliado. Já não importa mais a Companhia Geral do Comércio do Norte, eu e meus homens queremos ser comerciantes livres, como sempre fomos no passado, antes da separação da Marinha de Sabo e da Companhia Geral. Nasci em Nicéia Senhor, assim como sua esposa. Não posso navegar nas águas onde nasci porque trabalho para esses homens. Essa carta nos levará para casa, nos levará para os mares, que para nós, ainda são desconhecidos. Saberemos evitar os homens de Sabo, essa carta nos diz exatamente onde não devemos ir, pois estarão lá nas suas embarcações, quebrando as ondas que são suas, no caminho que escolheram. O que quero, excelência, é nunca ter que encontrar meu antigo Capitão quebrando ondas, ele lá, nós aqui, sem nenhuma surpresa à barlavento.

-Veremos, Capitão. Isso é o que veremos. - Ben Adam foi se afastando no balanço bravio do encouraçado, pensando que talvez essa aliança o pudesse beneficiar mais do que lhe trazer prejuízo.

Então parou e batendo a bengala no chão e disse perante os homens:

-Aliados? , ao que o capitão Torn respondeu, “Sim, aliados”.

-Preciso de mais uma coisa, -disse Ben Adam - Que deixe o grumete Israel comigo, completou o Bardo.

O capitão ficou intrigado, e apesar de que deveria negar o pedido, tarefa que competia somente ao Mestre Mercador do navio, mandou que colocassem a punho a dispensa do grumete, o que lhe causava certo alívio, porque até o presente momento o rapaz só lhe causara problemas, e foi enrolando o pergaminho com um sorriso de vitória no rosto queimado de sal.



A Senhora da Guerra do Nordeste


Depois de três ciclos no Mar de Cima à bordo da Viúva Molhada, Ben Adan desembarcou junto com Israel, em Comênida Limani, uma koinótita comuna de grande porte, às margens nordestinas do Mar de Cima. Lá, após deixar o marujo numa hospedaria, aguardando o seu retorno, devidamente recomendado de silêncio e discrição, encomendou um lugar numa caravana que rolou rodas na grande estrada de pedra que cruzava toda a extensão continental, de koinotita em koinótita, através dos vales Comênidos, nos dias cinzentos e frios das paisagens tão distintas além do mar.

Vastas regiões rendadas de morros de vegetações baixas, bordadas de riachos pedregosos e escuros. Ao longe, entre nuvens densas de umidade, se viam os picos encimados de neve, semelhantes ao existentes em Picoalvo. Além das colinas geladas estava Graikoi Koinótita, a maior comuna nordestina, governada por Comena Irina II, a mãe ou mítera Graikoi , como chamavam-na.

Ao final do segundo dia chegaram aos Portões de concreto vermelho da cidadela. As abas douradas se abriram para a carruagem passar, um ruído gutural e desconfortável esvaíu dos gonzos e dobradiças, forcejando sobre o peso das amplas placas de madeira banhadas a ouro. Atravessaram o fosso sobre uma ponte de alvenaria vermelha e chegaram ao segundo portão.

-Os alfandegário, os alfandegários! - gritava alvoroçado o guarda, com a lança em punhos. Uma pequena porta no muro se abriu e quatro homens saíram de lá, carregando uma mesa com rodas, sobre ela, diversas papeletas encimadas de pesos de ferro e duas máquinas.

Um dos homens segurava uma prancheta, chegou esbaforido no interior da longa carroça, foi adentrando desajeitado, pedindo aos estrangeiros que dissessem o nome (a graça), anotou tudo com longa pena que retirara da aba do chapéu pontudo e molhou no tinteiro apoiado na prancheta. Os dedos pretos de borrão.

-Mercadores na fila! - ordenou o segundo alfandegário, colocando-se atrás da mesa.

Então, após se identificarem na prancheta, desceram da carruagem e se foram para a fila.

-Sua graça, a que veio e quando vai. - indagou o alfandegário.

-Pélagos de Míntos, disse o primeiro. A serviços de Comena trago para o comércio 30 corpos de brodejão-do-mar-seco, 90 regras comenas de sequilhão da Torre Cevadilha, 10 regras comenas de lã de caxemira, 2 regras comenas de esmeraldas não lapidadas. Peço a licença de dois dias para préstimos comerciais.

Assim o alfandegário anotou toda a descrição da carga e emitiu a autorização de permanência temporária puxando a alavanca da maquineta, com muito esforço. Um longo trim foi ouvido quando o carimbo atingiu o papel, registrado o selo Grakoi no pergaminho.

Um outro alfandegário esperava os estrangeiros muito próximo do portão, onde montou um palanque e preparou a outra máquina que estava sobre a mesa. Uma cabina de couro escondia o mecanismo. O alfandegário tinha o rosto tisnado e uma pressa muito acentuada.

Assim que o homem que disse se chamar Pélagos de Míntos recebeu seu pergaminho, se foi para dentro da câmara de couro, o alfandegário espiou pelo lado de fora, em seguida acendeu uma vela, e encolhendo-se após enconstar a chama no orifício. Um estopim ecoou, seguido de uma luz dentro da cabina de couro, após o quê saiu o mercador atordoado, tropeçando nos próprios pés.

Depois veio o último alfandegário, que recolhera uma papeleta de dentro da câmara, e pincelando grude nela, colou nos registros de entrada a imagem do Mercador, que estavam sobre a mesa.

E assim, um por um os estrangeiros foram sendo anunciados e as perguntas foram feitas. Depois passavam ao compartimento de couro.

Aquele ritual estranho da cabina não foi encarado como receptivo por Ben Adan, que sugeriu uma certa rispidez naquele momento de encontro. Reclamou ao alfandegário que aquelas não eram maneiras de receber visitantes, ao passo que tudo foi anotado ("Anote, aí, anote aí!", dizia o primeiro deles) e disseram, seria entregue ao Ministério dos Relacionamentos Exteriores.

Ben Adam conseguiu uma passagem de visitas, e seguiu, sendo obrigado a carregar um pergaminho com suas informações e imagem pessoal atado ao pescoço.

Um secretário o levou aos aposentos públicos da Comena e lhe foi explicado que pelo título que possuía, teria direito a uma audiência ampliada, de 4 mil palavras com a Comena Irina II.

Então se foram pelas ruas úmidas e resvalantes da Koinótita, por entre as casas e apartamentos com singelas janelas de madeira. Pelos jardins de quadra, belamente tratados e cultivados, pelas bicas, fontes e passeios cheios de alunos em suas aulas públicas. Mestres e mais Mestres dos Segredos, como eram conhecidos os preletores, mestres e Sacerdotes das Escolas de Mistérios no Nordeste, berço da tradição de ensino importada para para as terras de baixo.

O cheiro forte dos dejetos nas vielas não havia ali, os banheiros públicos existiam por todos os lados e tudo que era dispensado lá serviria para alimentar as lamparinas das ruas e das casas durante a noite.

No meio da Comuna estava o salão público, onde ocorriam as audiências da Comena Irina II. Havia uma imensa fila, mas todos que ali estavam conversavam tranquilamente entre si. Então Ben Adam foi posto na fila dos idosos, e enquanto aguardava, lhe foi oferecido água e pão.

Quando as portas abriram, numa saleta pequena de pedra havia duas cadeiras. Uma vazia para ele, outra muito próxima, onde estava Irina.

Ela o olhou num primeiro momento sem reconhecê-lo, mas em seguida, como que num tom de questionamento e afirmação, ao mesmo tempo, disse entusiasmada: "Meu irmão em Lei!"

E receberam um ao outro num longo e carinhoso abraço, mas às costas de Ben o rosto da velha amiga escureceu e se fechou. Seus braços foram Tomados por uma rigidez instantânea que diminuiu a ternura que a simpatia do seus movimentos. Ben sentiu a mudança repentina e seus olhos se apertaram assimilando o velho erro que pensaram ter ficado no passado, mas que ressurgia latente entre os braços daquela Senhora da Guerra:

- O tempo foi gentil contigo Komena, vejo a mesma mulher com quem lutei lado a lado na grande guerra.

- A despeito da tua velhice, vejo o mesmo traidor. -despontou a governante afastando-se do bardo e retomando seu assento continuou -Que tua visita valha realmente a pena, porque no meu domínio não és bem-vindo desde quando não pagastes o preço da ajuda que te alcancei.

- Não poderia te dar aquilo que não é meu para dar. - Ben baixou a cabeça e diminuiu para um breve silêncio tecido na vergonha.

- Que não empenhes então aquilo que te pertence! Se me lembro bem, minha parte eu cumpri: te alcancei 8 mil homens bem armados, 150 dracares cuspidores de óleo, mil magos de todas as torres que existem em minhas terras. Só tinhas que depositar em minhas mãos aquele pequeno é brilhante pagamento azul. Mas não foi isso que aconteceu, sumiram com ele, tu, a traidora de minha irmã, aquele morto-vivo assassino, teu clérigo frio como gelo, o preletor barrigudo, o fascínora que comandava tuas legiões e mais aquele casal de feiticeiros que penso devem ter morrido na guerra. Fugiram e sumiram com meu pagamento, a única coisa que importava e sobre a qual emprenhastes a tua palavra. Não penses que tua vinda aqui será tida sem notícia, uma sentença não cumprida faz de um governante alguém fraco.

- Quando tudo foi ameaçado eu tive que escolher entre a honra de uma promessa cumprida ou o genocídio dos povos das terras de baixo. Não preciso te diZer mais sobre a minha escolha, morro como um homem sem palavra, mas também como um mártir, se a morte é tua sentença. - O bardo esticou os braços para ser agrilhoado, mas a Komena não moveu um só músculo, permaneceu com sua sua aura insofismável de imparcialidade.

- Não se preocupe, meu amigo, aqui todos nós temos direito a um julgamento.- a governante bateu seu cajado de ouro no chão ao que dois guardas responderam aproximando-se e erguendo o velho bardo pelos braços, o levando em direção à comuna central. Muito rapidamente um tapete vermelho foi estendido para que ela passasse ao som de um corredor de  trombetas, todos em direção ao púlpito da praça comunal.

- Que venham o advogado, o sicário, o escriba e o exegeta, passemos às formalidades do julgamento de Ben Adan de Quran pelo crime de desobediência ao tratado internacional de cooperação para guerra.

Após aproximarem-se do púlpito o exegeta teve depositada sobre seus ombros a grande fata bordada de ouro e cordões carmesins, nas mãos lhe foi posto um grande incensário a dispersar ondas de fumaça num movimento pendular e sobre a cabeça um imenso barrete dourado no formato de cone, adornado de relevos e fitas translúcidas, cujo peso era tão evidente que parecia que o exegeta iria soçobrar abaixo do palanque.

Veio o advogado depois dele usando a mesma roupa, porém tinha nas mãos uma espada larga e sem gume afiado que ser balançada revelado o som de um chocalho tinindo para a multidão que se aglomerava.

Foram seguidos do sicário, que trazia, cruzada sobre o peito, duas cimitarras muito afiadas.

- esse homem que chega em nossas terras chama-se Ben Adam de Quran, um estrangeiro que pediu auxílio ao povo Komeno há vinte anos em troca do pagamento de um item maravilhoso que traria grande vantagem econômica ao nosso povo. Enviamos todo o auxílio bélico que nos foi pedido e nossos homens e mulheres feneceram nos campos de batalha para vencer uma guerra que não era nossa, mas o fizeram por honrar o nome de nossa nação. Senhores e Senhoras, companheiros de todas as Koinotitas que se encontram aqui hoje, o pagamento nunca foi entregue. Aqui o caso que ofende a nossa honra e ofende o tratado internacional que foi celebrado para selar a participação do nosso povo na grande guerra das terras de baixo. Eu chamo o exegeta e o advogado para acusar e defender o réu.

O exegeta balançou com muito afinco o pêndulo fumacento, infestando a praça de uma névoa branca;

-malditos os vivos do Norte! Eu vejo aqui nessa praça o rosto de homens e mulheres que ficaram órfãos, tiveram seus pais arrancados prematuramente do seio familiar por causa dessa guerra. Vejo o rosto de mulheres viúvas e homens solitários na condução do lar, família destroçadas pelos trabalhos da guerra para a qual a Nossa Senhora se empenhou em ajudar em troca de um pagamento. O homem e a mulher que se submetem ao arrendamento do trabalho tem direito ao pagamento por aquilo que erigiu, um preço previamente ajustado. Sim, nós sabemos!

A multidão inflamada levantou os punhos em direção aos céus.

-Como o povo do Norte julga o homem que aqui está, pela lei dos iguais e pela lei da promessa?

Uma e outra voz se ergueu o chamando de culpado, enquanto muitos se entreolhavam, acompanhando o coro tímido de início, mas que aos poucos foi tornando-se uníssono.

"A sentença é a morte.", disse o sicário ao ouvido do Sacerdote, bem só cerrou os olhos apertados e meneou com a cabeça, sabendo do peso da promessa não cumprida que levou à vitória na grande guerra. Os exércitos do norte somaram-se aos esforços das terras de baixo quando foram convocados. A frota vermelha sangrou os mares e incendiou os navios sombrios com uma força naval jamais vista, mas a Komena nunca recebeu o pagamento pela aliança, a gema azul permaneceu nas terras ermas no lugar secreto onde sempre estivera e não houve retaliação, os nortenhos se limitaram a saquear as terras sombrias e levaram muitas riquezas através do mar para casa, enquanto seus amaldiçoaram os quebradores de promessa. Não podiam avançar sobre os líderes da aliança, afinal a pedra de localização incerta ainda era algo que a Senhora da GUerra do Norte ainda queria e também não poderia estender ainda mais a guerra que fragilizara tanto suas hostes como de seus aliados traidores.

A Imperatriz levantou seu cajado dourado sobre todas as cabeças que se estendiam na praça central e disse, enquanto as vozes diminuíam para ouví-la:

-Sou a Senhora do Norte, a mão que traz a glória e reparte para o povo que construiu os lares e todo o império das terras de cima. É meu o destino dos vivos que devem ao Reino dos Nortenhos, e é nossa a glória dos dias passados e vindouros. Hoje aqui eu proponho a piedade do Tratado INternacional dos Direitos dos vivos: Pouparem a vida desse líder, conclamando misericórdia diante o pagamento da sua dívida do passado. Ben Adan de Quran, Rei de Harpis, nos traga a gema dos povos livres e saia andando como um homem que empenha sua palavras com honra, nos traga o pagamento que nos é devido e volta para as terras do sul com o perdão da Nação do Mar de Cima.

O sicário estremeceu sob as vestes, relutante, mas ordenou aos guardas que não avançassem até que o velho desse a sua resposta.

Ben respirou fundo, mas não pôde olhar os olhos atentos da multidão, suas vistas estavam embaçadas e sua cabeça latejou forte, só balançou a cabeça dizendo sim.

As trombetas rufaram e os grilhões foram retirados de seus pulsos magros, mas o que doeu fundo foi saber que jamais poderia cumprir essa mesma promessa novamente.

Komena aproximou-se do sacerdote, rindo para os súditos e levantando os braços do bardo, falou sem olhar para o homem:

-Se a gema não vier, cairemos sobre o seu mundo como o pesadelo que jamais sonharam enfrentar, derrubarem cada vivo nas suas terras, até conseguir o que é nosso, até que não restou mais um suspiro além do Mar de Carabeus.

Os OLHOS DA FORTALEZA AO NORTE

O velho estalageiro coçava a barba olhando para o marujo e o Preletor. Quê tanta maresia vinha deitada naquele vestido trapilho que nunca vira remendo? Quê vento açoite bateu tanto no velho para cavar sulcos de marujo experiente na pele flácida de muita idade? Quê trançado era aquele no cabelo e que sotaque vinha emaranhado nas palavras complicadas daquele Mestre? Não sabia, mas não esqueceria, não era mais um rosto num bar, mais um velho viajante na Koinotita mais populosa do norte, era alguém familiar. 

Fala macia e recheada de palavras difíceis. Era como um Preletor, e os Preletores lhe causavam arrepios e nem era pelo que entendia das lendas e histórias, mas pelo tom de mistério carregado em todos os verbetes que não compreendia.

Ficou ouvindo liturgias, canções e palavras de sabedoria do velho viajante. E um pequeno aglomerado se juntou ao redor do Mestre, iluminado pela luz da lareira. As histórias foram ficando mais misteriosas e cinzas, enquanto os tocos crepitavam no fogo, travando um linha de conforto contra a brisa fria que escorregava por debaixo da porta da taverna.

Alguém gritou “Cante o  Pasquim da Guerra”, ao que o velho ficou sombrio e torceu o tronco para lançar a mira cinza e a fita fulminante sobre o ouvinte.

Israel escutava tudo com atenção, senta ao lado do velho.

 Isso requer muito. Muito tempo, muito preparo. Não há ninguém aqui com a alma dura e ouvidos afiados capaz do entendimento necessário. Esse não é um Pasquim, é a dura e fria lenda dos homens mais devastados que nosso mundo já viu. O ouvinte riu, bebendo o vinho azedo, deixando a acidez escorrer pela barba. Mas ficou em silêncio quando se deparou com a expressão de reprovação do Mestre, e voltou à escuridão das palavras de onde nunca deveria ter saído.

 Ninguém sabe ao certo o que aconteceu, começou o velho, eis que o se sabe das histórias é o que se conta delas. Impossível dizer, depois dos astros cruzarem incontáveis vezes o firmamento, e nascerem e morrerem tantas vezes as urzes nas pradarias, se o que é dito é o que deveras se passou.

O que perdura é a história aos olhos de quem contou, e quem a contou pela primeira vez, também não é sabido.

Se tivesse que revisitá-la com detalhes, não poderia fazê-lo, pois, assim como a maioria dos contos, esse também foi algo que ouvi de alguém, que ouviu de alguém.

E a mim chegou sendo cantada, não por um Patrono ou um Preletor instruído, partiu das ideias de um contador bêbado, numa taverna de segunda, no beco mais escuro de um lugar qualquer.

E aqui vai a história, eu digo.

Foi em razão desses acontecimentos que chegaram as ondas vermelhas de sangue dos homens que morreram nas praias, que tingiram perenemente a costa de Tocaspretas. Esse que era o sangue anônimo dos vingados. Tudo aconteceu depois das lágrimas dos filhos e das mulheres inundarem as planícies, sufragando os córregos que se tornaram rios; do choro prolongado e grave que rompeu o silêncio dos ventos, empurrando com força as águas que rasgaram a terra formando os fiordes em Zarmund.

Tanto a justiça quanto a ganância levavam à morte na era que antecedeu todos os acontecimentos, então não se sabe qual delas matou mais, porque esse foi o tempo da aflição onde não havia misericórdia entre os homens. Irmãos deitando o ferro fundido e a lança aguçada nos irmãos.

Os lobos foram exterminados, com suas mandíbulas fendidas, as serpentes se esconderam para não serem encontradas.

Tudo começou quando alguns se debruçaram sobre o trabalho das lanças e das espadas, a despeito do temperamento pacato de outros que trabalhavam a terra e a lavoura. Aqueles, bateram a clava contra a carne dos mansos, manchando seus rostos de sangue, arrebatando seus rebanhos de ovelhas, tomando suas provisões e mulheres. Os homens tinham essa cisma na ideia, de que tal tarefa seria seu destino. 

Cegos, queriam algo, e mais outra coisa e sempre mais disso e daquilo. Diziam: “Vai e vê se aquilo é bom; se for, o quero e o tomarei para nós. Se não for, tragam a todos, ainda que deitem alguns, para trabalhar naquilo que é de nosso interesse.”

Foram pelas terras, montados nos seus animais de guerra. Caminharam sobre as águas nos seus longos barcos de bandeiras sombrias, assim como a Noite Mais Escura. E houve morte por todas as herdades, dos mansos.

Os berbigões cresceram nos cascos afogados. As montanhas verteram o sangue dos violados. As crianças foram tidas nos grilhões. As mulheres lançadas a toda sorte de humilhações. Aos velhos lhes foi reservada fortuna iníqua de verem vergastadas suas forças derradeiras nas tarefas alheias sob o fustigo do couro trançado. Por toda a parte os homens trocaram a vida pela morte porque pensavam não haver destino diferente daquele que era reservados a todos de forma equânime. O que se poderia esperar de algo que nasce para morrer? Questionavam os sábios observadores na Torre de Marfim, na frialdade e distanciamento reservadas à sua imortalidade.

Os agressores lutavam para suplantar o ato final de suas existências, entendiam que a glória os fazia imortais. É disso afinal de que trata toda a história.

Assim, na roda  de infortúnios que giravam tais algozes, incessantemente, perceberam ao acordarem pela manhã, que também seus irmãos tinham as veias abertas, suas mesas estavam vazias, os filhos estavam mortos e as mulheres viúvas sofriam de lancinante tristeza.

E não havia terra lavrada, nem gado. Nada havia para comer. Os campos restavam enegrecidos e cobertos de cinzas. As urzes vazias e apequenadas  eram o vestígio do verde e da prosperidade, uma terra árida e tomada pelos restos da guerra. Sobejava um gosto de ferro na boca e um desejo contra a costa, a ira. Uma força como a de ondas furiosas atirando-se das profundezas ao cosmos em desespero. No vazio de seus corações solitários nutriram o desejo de vingança e aspiraram a promessa de morte enquanto rezavam aos seus deuses esquecidos.

Primeiro queriam de volta as terras férteis. Depois queriam as casas, as ruas e as vilas. Os instrumentos de lavra, as sementes e cultivares. Depois queriam para si tudo.

Ao final, foi isso que fez a todos continuar na guerra, derramando mais sangue através das eras, uma roda de vingança girando sem parar.

Eis que, dentre os ambiciosos, um guerreiro amargurado levantou-se contra os seus, e submetendo-os a sua vontade, ergueu o pavilhão dos desolados. A bandeira sombria dos corações duros e vergastados pelo sofrimento. E tornou-se Rei.

Ao arrepio dos homens que não nasceriam, pisaram sobre o que restou. “Deixe que sejam aquilo que quiserem”, disse o Rei. E foram.

O reino dos viis se ergueu ali, derramando a vileza sobre tudo o que já vinha destruído.

Sucumbiram os que nunca teriam chance, o chão vermelho e as praias em chamas por todo o lugar. Incontáveis homens afundando nas profundezas silenciosas. No largo chão gélido das planícies submersas. Lá onde a luz não desce é que a escuridão os acolheu.

E veio um tempo adiante, quando o lamento já não era presente e dor não mais conclamava o pranto, surgiu a força nos vivos para levantar-se contra o caos.

Já ninguém temia o aço, pois os que vieram a despeito de tudo, foi gente brava e resiliente, que renascera em meio a chaga aviltante da guerra.

Nas planícies distantes foram forjados, no interior da terra fria onde frutificaram amotinados. Vieram as viúvas com lanças. As crianças adultas que não suportaram o legado. Os sobreviventes endurecidos pelo padecimento da vida terna.

Arrastaram sua fúria diante dos sombrios, e bramiram acima dos ventos, para que sua vontade fosse ouvida.

Mais uma vez as costas rubras.

Velho, -interrompeu o beberrão-, não é esse o Pasquim. Queremos ouvir a lenda dos sete trabalhos, dos sete sublevados. Queremos o Pasquim dos Rebeldes, a parábola da guerra dos dez signos.

O velho torceu a sobrancelha, primeiramente perquirindo o ouvinte. Depois, ao ver que o interlocutor estava bêbado, soltou o ar rápido dos pulmões tentando evitar a curta paciência. Apertou forte a bolsa e atou o longo cabelo branco como um coque acima da cabeça. Tomou a caneca do beberrão e entornou o vinho azedo.

Conta a lenda que há vinte signos, quando os diamantes se ergueram das profundezas das montanhas, na convulsão da terra diante o trabalho da campanha mortal, foi que o grande buraco cravado no coração do mundo, descoberto mais uma vez, cuspiu morte novamente.

Sete inimigos foram enviados para derrotar os maiores dentre aqueles que se negaram à submissão: os rebeldes.

Uma serpente de fogo alada, galgando os céus no breu da noite que precede o Havdalá.

Uma nuvem medonha vertendo a própria escuridão, engolindo e dissipando os seres sobre a terra.

Um oráculo de sangue empunhando a Sentinela das Trevas, a espada venenosa dos Antigos Reis.

A Tormenta de areias para arrebatar tudo ao esquecimento.

Os mil olhos das moscas para que nada lhe ficasse oculto.

A peste dos mortos para consumir a carne, para que os vivos alcancem a morte sem de fato a sofrerem.

E por fim, as Mil Hostes e os Mil Generais empunhando as bandeiras sombrias, flamulando nos baluartes corruptos a adoração ao culto do sangue. O império da espada fria. O Reino dos sem esperança.

Os insubordinados foram sete. A cada um coube o trabalho contra uma das Bestas.

O Bardo, a Feiticeira,, o Guerreiro, o Clérigo, a Ilusionista, o Assassino e o Senhor dos Elementais.

A Batalha no Vaudeferro foi aquela onde o Oráculo de Sangue e o Assassino cruzaram suas espadas. Dançaram noites a fio, ferindo um ao outro com suas armas mortais. No entanto o Assassino acabou sendo derrotado pelo veneno da Sentinela das Trevas, e caiu. Seus restos nunca foram encontrados. O Oráculo retornou como uma serpente negra para as sombras, quando chegara auxílio, ainda que tardio, para o seu oponente, porque as cobras sempre se escondem.

A Batalha da Ilha Vermelha entre o Senhor dos Elementais e A Serpente de Fogo foi que O Senhor dos Elementais, tendo construído uma linda gema, a transformou em um receptáculo pequeno por fora, porém imenso por dentro, e seduziu a besta para entrar no baluarte. Disse-lhe que nela estava contigo o fogo da eternidade, e a Serpente, que como seu Mestre perseguia com ambição o poder maior, ali entrou e não pôde sair. Emitia raios poderosos de fúria que pungiam quem por eles fosse tocado. No entanto, tornaria-se fonte de poder para outros aquela força. Ali permaneceu, sendo prisioneira de sua própria ganância, sendo nutrida por sua própria ira.

A Batalha da Segunda Cidade Anciã, em Selqet, entre a Tormenta de Areias e o Bardo, foi que das areias do deserto levantou-se a Tempestade ora em forma de onda, ora em forma de turbilhão: a areia viva cuja violência não pôde ser resolvida ou tampouco abrandada. Consumiu, assim a Segunda Cidade Anciã e tudo que havia ao seu redor, chicoteado infinitamente a tudo com suas braças de areia que iam acima dos céus. E o Bardo, que não podia contra aquela fúria, invocou as águas com o canto de sua voz para deitarem a areia ao chão, e confinou a tempestade aos limites dos veios que circundavam Selqet. A tal encantamento é que ficou submetida a devastadora Besta, e não pode avançar com suas raias para outras bandas vizinhas.

A Batalha de Evreskaya entre a Feiticeira (a que não podia morrer) contra o Flagelo Da Peste foi a mais longa. Foi porque a Feiticeira sendo portadora da sabedoria imortal, era a única que poderia opor-se à morte. No entanto, a mulher não pôde ser vencida pela Morte, uma vez que era Imortal, mas a morte também não pôde ser derrubada. E no embate entre ambas, foi que, ao final das suas forças, a Morte lhe pediu uma trégua, fugindo machucada para a escuridão, sibilou com sua voz que subia arrastada pela garganta, como saindo das entranhas do nada, soando como muitas em um só coro; e foi dizendo à Feiticeira que à Morte tudo pertencia, e que nada podia fugir-lhe. Que permaneceriam batalhando eternamente, até o ocaso se passar com a mulher, após o quê, poderia consumir a tudo e a todos. A Feiticeira, conhecendo as fraquezas de sua magia, pesou a verdade nos argumentos da Morte, ao que essa lhe disse: “Digo, vai. Vive essa imortalidade que  ao final é sequaz de mim. Vive o que te resta e eu ficarei com essa concórdia que lhe direi agora: de mim saberás que não consumirei nada a mais no primeiro trintênio, a não ser aquilo que já foi maculado. E no próximo trintênio, o que me for permitido comungar pela vileza dos homens consumirei os restos. Isso se estiveres gozando de tua vida nessa Terra. Mas depois tomarei o que é meu, da maneira como me aprouver.”, disse-lhe isso que aí está e foi possível que a Feiticeira a vencesse por algum tempo, tendo a peste alcançado o povo todo de Evreskaya e nada mais.

A Batalha de Picoalvo, entre a Ilusionista e a Besta de Mil olhos iniciou-se  em terras longínquas, mas querendo levar a oponente para terreno oportuno, rumou a Picoalvo, onde toda a terra podia ser vista. Atravessou  as agruras do gelo e da neve, e sentido o clamor da vida esvair diante o frio opressor, foram ambas enfraquecidas. A Ilusionista tornou para Besta e disse-lhe: “Chegamos até o firmamento de tudo, onde quase não podemos respirar e somos esmagadas pela força do universo sobre nossas cabeças, e vejo o pouco que meus pequenos olhos me permitem, mas tu, tu vês a tudo e isso te confunde. Vê que há muito, com teus olhos poderosos, e isso te fez fraca, e a mim mais forte que tu. Então é o que tenho a te dizer: não sou a carne de mim, mas uma ilusão que perseguistes, e construí aqui mil espelhos ao teu redor, e eles te farão olhar os teus mil olhos pela eternidade, refletidos nas imagens infinitas de si mesmos. Esse é o teu castigo, ser aprisionada nessa Atalaia no fim do mundo. E a Besta grunhiu aos ventos, que ao longe poderiam ser ouvidos, dissipando-se sobre os muros de terra e pedra das cordilheiras que circundavam aquelas vizinhanças.

A Batalha de  Ankset, entre o Clérigo e a Tempestade de Escuridão, passou quando ao encontrar a origem das bestas enviadas à toda a terra, o Sacerdote de Shadai foi com suas súplicas sagradas cerrar o fosso profundo. E lá, nos portões de Ankset, deparou-se com as nuvens Tenebrosas que revolviam-se nos estertores de cima do mundo. Compreendeu que tal magia era a mais forte que já vira. E diante aquilo prostrou-se. Mas a Consciência Primeira se fez habitar no seu âmago, lhe dando sustentação para enfrentar a onda sombria que descia dos céus. Com a ordem de D’us confinou a escuridão no interior do fosso, derrubando a imensa fortaleza e templo cheia de seus ídolos corrompidos sobre o abismo, de onde ausentou-se à beira da morte.

A Batalha do Fim,  cujo nome adianta a sina, foi aquela onde foram derrotas as Mil Hostes e os Mil Generais pelo o Exército dos Homens Livres pela Paz, comandados pelo Guerreiro, nas Terras Ocidentais. Tendo sido derrotados em Evreskaya, os sombrios  cruzaram os mares Ocidentais, ali se refugiaram os exércitos, naquelas planícies da banda ocidental. Eis que estavam reagrupadas as hostes de Seth, e eram forte e bem armadas. E tinham homens bravos e cruéis. E haviam os homens sob as ordens do Guerreiro, duros como jade, sofridos pela lide da guerra, buscando retomar a tenacidade dos dias de paz. E bradiram espadas, escudos e lanças; e a terra ficou molhada com o sangue dos vis e dos justos. E foram longos os dias e as batalhas inúmeras, até que o Guerreiro, no Passo Desolado (onde nada mais cresceu) sobrepujou o último Rei dos Antigos Reis.

Então esses foram os dias de guerra, e depois vieram os dias da paz que a seguiram. A União dos Povos prosperou até hoje.

E essa história, vos repito, não é minha, nem dele, é de alguém, cujo nome vem esquecido, a despeito da imortalidade desse conto.

-Esse é o Pasquim! - Retrucou exaltado o barbudo cheio de trago, caindo da beirola da mesa e derramando bebida para os lados. Seus companheiros riram. Mas o estalageiro foi prestando atenção ao rosto do contador, meio escuro e meio iluminado pela chama amarela, e um lampejo fez uma meia lua azul escarificada rebrilhar na gordura daquela testa. Ali escondida entre as linhas da idade pouco se podia ver se tinha o olho comum. Mas um estalageiro bem pago na moeda da Fortaleza sabia encontrar a coisa certa, e a lua de Harpis subiu com o velho pelos degraus até o quarto.

Mas o grumete que acompanhava o velho ficou ali, um parvo estrangeiro, com todas as informações que as mais promissoras moedas poderiam comprar.


Um desconhecido complicado

Ben Adan retornara de Grakoi com um pouco mais de confiança, notara o grumete. Ainda não sabia exatamente qual era missão de Ben Adam, mas resolveu o acompanhar mesmo assim, afinal era um Rei e fora bom com ele, o livrando de caminhar sobre a prancha ou virar escorva de casco do Viúva Molhada.

Pois o Rei o deixou na estalagem com a missão de encontrar o perdigueiro a mando de Egídio, receber dele algum documento e  pediu então ficasse por ali, agindo discretamente e sem arrumar confusões.

Foi o que israel fizera, em parte.

Israel encontrou o desconhecido, que na verdade era um anão espalhafatoso, cheio de caixas e apetrechos em um carroção, perguntando informações sobre um “Famoso Bardo de Harpis” e queria a todo custo que o estalajadeiro assinasse uma tal nota de entrega. 

Israel interveio e recobrando desleixadamente a discrição e recebeu a entrega, bem como uma caixa e outros diversos embrulhos, e uma chave imensa, que mal podia carregar. E mais, dezenas e dezenas e dezenas de papiros enrolados, empoeirados e atados uns aos outros. Alguns ele abriu, mas não fazia idéia da língua em que estavam escritos. Virou-os de cabeça para baixo, mas não, não podia ler. Havia imagens e pinturas e desenhos de criaturas. Livros e mais livros sem fim. O anão lhe dissera: Veio tudo do Norte e vai sei lá pra onde.

Israel abriu o pergaminho que fora entregue há algumas luas, enquanto o Bardo estava para as terras mais ao norte.

Havia instruções para armar um comboio com o baú de moedas entregue junto com os pertences.

Todas as coisas foram carregadas para um armazém no porto, muito próximo à estalagem, e quando devolveu o manuscrito para Ben Adam, na mesma noite em que ficara contando suas histórias na taverna, o homem tratou de pedir uma harpa e foi indo na noite alta para o depósito dos pertences. 

Israel tratou de seguí-lo com muita discrição, e atravessou o porto e as ruas na direção dos silos.

Ben Adan cerrou as portas, não sem antes conferir, olhando para os lados, se estava só.

Mas o marujo procurou um fresta entre as tábuas abalroadas e se acomodou, bisbilhotando o que o Sacerdote faria.

O olho direito de Israel sequer piscava, atento que estava àquela cena curiosa que vinha se desenrolando.

De um dos caixotes Ben retirou diversos mantos brancos e os colocou em um circulo no chão. Sentou-se sobre um barril e apoiando a harpa no colo, começou a deslizar os dedos sobre as cordas hirtas.

E eram lindas as notas, como uma musica celestial. E foi evoluindo até entrar com sua voz doce e sentimental. O olho de Israel tremeu e se encheu de lágrima, tendo que se controlar para não fechá-lo.

E a canção era linda, mas não conseguia compreender o que era dito, exceto pela palavra recorrente Valkaria.

Até que o chão começou a se iluminar, fazendo surgir em tons dourados e brancos, uma luz na forma de um sigilo imenso no chão.

A luz foi se tornando cada vez mais intensa, e difícil de suportar na vista.

Então o sigilo refletiu no teto do armazém formando um cilindro largo e real. Ficou incrédulo e esfregou o olho doído, pois não cria que ali de dentro começaram a sair sete mulheres. Todas dispostas como um relógio, deixando o cilindro em direção às capas brancas.

A luz foi diminuindo junto com a canção e então os dedos do Bardo pararam de se mover e seus olhos foram direto na mira de Israel que saiu correndo em direção à estalagem.

Na manhã seguinte o comboio estava à postos e o Bardo já montado à frente pronto para tocar o primeiro carroção. E quando israel se aproximou, cheio de vergonha, o homem colocou o dedo sobre o lábio e pediu que subisse. Venha, ele disse. Vamos levar essas coisas para o céu e depois o levarei comigo à Última VIla Mais ou Menos ao Norte, onde está Mestre Egídio, de onde retornará para sua casa.


A breve eternidade

A Torre Branca na quadra Norte, na quadra sul a guilda dos artífices, na quadra oeste os cientistas, na quadra leste o prédio da Liga dos Comerciantes do Norte. A última VIla Mais ou Menos ao Norte há muito deixara de ser vila, tornara-se uma cidade imensa, habitada por cerca de um milhão de vivos. Dezesseis quadras de prédios espiralados, cheios de casas e comércios, compunham uma espiral maior, onde uma avenida em forma de náutilus levava ao centro da cidade, os mais importantes núcleos de conhecimento e negócios estavam lá estabelecidos.

E era na Oeste, numa confortável e moderna residência que vivia o Decano Egídio. Naquela manhã a feira se estabelecia às suas portas, impedindo que sua liteira cruzasse os portões, ficando no pátio e obrigando o Decano de idade avançada a cruzar as quadras a pé, com suas pernas tortas e coluna envergada. Recolheu o pasquim matinal à porta e foi o lendo até encontrar o padeiro, parte do trajeto curto até a guilda dos cientistas, enquanto assoviava a sua canção preferida, cujo refrão era a coisa que mais dizia no dia, todos os dias: “E quando surge um problema? Procure o Capitão!”.

Puxou o bom e velho cachimbo da calça, deixando cair cinzas da fornalha no bolso, e remexeu o lado interno do colete xadrez onde guardava o isqueiro e o fumo.

-Mestre Egídio, bom dia! - sorriu a Dona da floricultura, ao que o Decano segurou a ponta da boina a tirando e colocando rapidamente num aceno.

-Mestre Egídio, como vai?- cumprimentou o padeiro, empurrando o cesto de pães frescos no guidão da carroceira. 

-VOu muito bem, meu caro! Me veja o pão de aveia com mel! -  e o mestre entregou uma peça de metal, colocando o embrulho de pão debaixo do braço, junto com o jornal. 

Acendeu a fornalha e foi fumegando o doce aroma do tabaco úmido e das flores de melzinho secas, um tom de casca de laranjeiro e cedrilha dançavam no perfume charmoso da fumaça sinuosa.

E no amontoado de apartamentos da quadra Oeste tinha uma porta alta, de duas folhas, de madeira dura e grossa, escura como o pelo tordilho, e lustrosa como cabelo de rainha. Acima, encravado na parede de pedra, o símbolo da Guilda dos Cientistas.

As portas não se abriram.

Mas havia uma, sem muito ser percebida, na parte inferior da folha direita, uma portinhola pouco maior que o Decano se destacava na risca da madeira, e Egídio a empurrou, revelando o corredor acarpetado de carmim que levava ao interior da quadra. Lá no meio, rodeada de um pátio muito simples e bem cuidado, habitado por um jardim e aves exóticas, estavam o centro administrativo e os laboratórios do estabelecimento secular da guilda.

Já ia adiantada a manhã, e estavam todos os estudiosos e empregados em seus lugares. Alimentando e cuidando dos animais, recolhendo as ervas, ribombando suas máquinas que cuspiam fumaças de diversos odores, lecionando nas salas cheias de anotações nas lousas, organizando as bibliotecas de inestimável valor. Já era de costume Egídio chegar no meio da manhã e ficar trabalhando até a noite.

Dali o Decano também despachava para o Conselho dos Povos, o qual presidia com louvor.

-Margarete! -cumprimentou a secretária na entrada da sua saleta e antes de fechar a porta pediu que mandassem o escriba e o correio.

A cadeira de assento elevado era recheada de almofadas de couro, onde o cientista sentava usando uma escada de quatro degraus. Mas não foi para lá que se foi, primeiro ganhou no canto, onde vivia Giovani Di Trivontela, ali, no poleiro.

Seu amigo pessoal e esteta. Uma ave falante de dois mil signos, com quem costumava debater filosofia, sociologia e as ciências das leis pelas quais tinham afeto comum.

-Trouxe seu pão de aveia e mel - emendou o Decano, vertendo água quente no jarro cheio de ervas.

-Minha plumagem está eriçada nessa manhã, meu caro Mestre.- referiu o esteta inclinando a vista sobre o monóculo e deixando seu cochilo costumeiro do final da manhã.

-Seria o anúncio de alguma tempestade? - indagou o Mestre, servindo uma xícara de chá amargo para o esteta, a apoiando sobre uma lâmina de prata que jazia ao final do poleiro - Minhas espaldas doem, e sempre é prenúncio de chuva tórrida tal sensação.

-Creio que não. Mas é sensação incômoda e de fato me leva a crer que os Theropoda evoluíram no sentido de perdê-las em razão do demasiado desconforto que causam nos dias frios. As tectizes recrudescem com facilidade na idade longeva e não as sinto com o passar dos signos, mas ao trocar as estações minha plumagem rebrota e a turacínia se acumula, provocando maiores chances de desenvolver esse tremor matutino.

-Interessante! - observou o Mestre ao sorver o chá que servira para si.

-Mas o assunto mais interessante da manhã é de fato sobre o homem misterioso que adentrou esta sala e se encontra sentado na poltrona de Frederic Von Derhild.

Egídio virou-se na direção da poltrona, e deu um salto ao constatar que havia de fato um homem ali, suas fartas sobrancelhas arquearam-se para cima enquanto derrubava a xícara de chá.

O homem misterioso escorregou o capuz e pediu mil desculpas, dizendo que vira que o Mestre não o havia percebido, tampouco Margarete, e não quis assustá-lo no interregno de sua fala.

Egídio espremeu o cenho e incrédulo despontou:

-Ben Adam?

-Venha aqui, me dê um abraço, meu amigo. Nossos cabelos estão iguais agora e minhas costas também doem. - gracejou o Bardo, sob o olhar de desprezo do estético.

-Rús-Ti- cos, rús-TI-cos! - ele gorjeou com a língua na ponta do bico, um deslize de condicionamento e um dos poucos momentos de ausência de sua fala erudita.

-Que grande falta de polidez a minha. Esse vivo no poleiro chama-se Giovani Di Trivontela, o maior e mais bem conceituado esteta vivo. Senhor Giovani, esse é Ben Adan de Quran…

E o pássaro o interrompeu:

        -Ex sumidade sacerdotal das escolas de mistérios do oriente, e atual rei de Hárpis e Sacerdote da escolas de Mistérios da Ordem da Lua, sagrado como Bardo Sacerdote por Áticos de Penhascoforte pelo templo da Escolas de Mistérios da Ordem da Lua na segunda era após a escuridão, na contagem terceira da Lua antes da batalha final que encerrou a última grande guerra contra o Kaisar. Nascido em Harpis de mãe solarina e pai gorlarino, é o terceiro filho de seis. Tendo se destacado no mundo das artes como um bardo renomado nas terras das cidades gêmeas antes de tornar-se clérigo. Nessa época trabalhou na corte dos Senhores da Fortaleza do Sol, onde conheceu  Tantalus Dágoras, Futuro Rei eleito da União dos POvos e comandante supremo da Aliança Libertadora. Após sua sagração casou-se com Susana de Nicéia com quem não teve filhos de sangue. Sua linhagem prossegue na nomeação da sucessora Betsheba de Lakismi, a filha adotiva do casal real. - Giovane bebericou do chá erguendo o bico e embalando a cabeça para cima e para baixo, depois arrumou o monóculo com a pata para admirar o rosto atônito do estrangeiro.

        O espetáculo já era conhecido de Egídio, que o presenciou por diversas vezes, já sabendo o quanto GIovani adorava se gavar de seu conhecimento e sua memória extraordinários.

        -Pelos Deuses! -interpelou estupefato o Bardo- imaginava Giovani como um estudioso homem, de tinteiro e pena nas mãos.

        -Penas não me faltam. - retorquiu o estético sem saborear o comentário.

        -Se soubesse disso teria conversado com o Senhor quando entrei no escritório. Pensei: “olha, um pássaro num poleiro”, então tirei um cochilo no silêncio.

        - Eu pensei, “um estrangeiro mal educado”, e tirei um cochilo no silêncio. - Ironizou a ave. 

        -Mestre Egídio, preciso falar-lhe. - disse o Bardo apertando as sobrancelhas para o estético- Estive pelo mundo uma última vez, visitei a casa de amigos e antigos aliados. Nós perdemos tudo o que foi conquistado nesses vinte signos de paz. Tantalus, o filho, ele vem destruindo tudo. Falei com Tocaspretas e nada. Edmundo Minarica está aliado com um necromante sombrio! Os pobres Chacais estão encurralados nos corredores. As Amazonas se escondem nos subterrâneos do deserto como criminosas. As fronteiras de Penhascoforte e Solar das Laranjeiras estão fechadas. Num ato de desespero eu fui para o norte, e pedi a ajuda da KOmena, talvez a única que pode rivalizar em força militar. Perdemos tudo. As povos estão fragmentados e enfraquecidos por essa ganância vil que Tantalus vende como liberdade.

        -Calma, meu amigo. Envolver a Komena? Não é para tanto! Vamos com calma, sente-se, tome um chá. -E Egídio foi o levando de volta à poltrona. - O tempo passa não é? Há alguns signos estávamos aqui pensando como poderíamos reunir os povos sob uma bandeira única, um mundo utópico de prosperidade. E ele existiu, por vinte signos. Agora está deixando de existir. E não existia também antes da guerra. Eu me sinto como algo que está aí, observando o tempo, assim como Senhor Giovani. Vemos isso e aquilo, e tudo se repete novamente. COloquei tantos filhos no mundo. Eles estão aí, para ver coisas que nunca vi e jamais verei. O que sei é sobre o passado, o futuro é dos que virão, seja lá o que quiserem para si deverão construir. Eu digo que estou cansado demais para lutar. As guerras vêm, e depois a paz, depois as guerras, depois a paz. Estou cansado, muito cansado!

        - Mas, você acha que devemos ficar parados, assistindo as terras caírem uma a uma? A revoada da escravidão, inocentes ceifados nos campos de guerra, onde deveria haver alimentos!

-Veja, meu caro. Derrotamos o verdadeiro problema no passado, há vinte signos. O império Kaisar se foi, os bandeiras sombrias se foram, os necromantes não existem mais. Esses rumores dos bandeiras sombrias, isso foi tudo um artifício de Ágoras para encorajar o rompimento do Tratado pela Paz, criando um clima de guerra que não existe, para que pudesse desfilar por aí com seus soldadinhos. Os vivos fazem o mundo e vivem nele.

- "Quando o futuro vira passado, é fácil ver o que tinha que ser feito”, Agamenon, O Solarino, em O Portal dos Deuses no Mundo, página 1223, Editora da Guilda dos Cientistas, quinta Lua da Primeira Era. -interrompeu a ave, com voz grave, mas que ao final tornava-se estridente, enquanto manejava as patas sobre o poleiro.


Mestre Egídio deu de ombros e arqueou as sobrancelhas revelando os olhos estalados a concordar com o estético.

-Nós vimos muito disso no passado, já fizemos o que nos cabia. Recebestes nossos planos eu bem sei. Tratastes de Guardar os pertences que te mandei ao Norte. É isso que nos cabe meu bom e velho e amigo, o resto deve ser manejado pelos jovens, os que herdarão o mundo como ele está para fazer dele o que quiserem no curso de suas vidas. Por longos séculos me inquietou a sensação de que, mesmo doendo tanto aos vivos a guerra, após saírem dela tornam a guerrear. Então compreendi que este ciclo é uma aflição inescapável, fruto da curta vida, da ansiedade, da falta de tempo para o conhecimento. Eu não me tornei alheio a essas conjecturas quando decide ajudar a aliança durante a última guerra, simplesmente identifiquei que ela fugia do padrão das muitas guerras que presenciei, havia um inimigo muito poderoso e devastador. Agora nós vemos um menino petulante e homens de carne e osso com suas armas de ferro afundando-as uns nos outros sobre suas vestes de aço. Tudo de novo.

-”Derrote o inimigo sem lutar e serás supremo.”, Xantu li da Baía de Ouro, General de Tocaspretas,  Lemas das Flâmulas de Kromm, terceira era, Editora da Guilda de Cientistas, página 54. - interrompeu novamente a ave, balançando a cabeça para cima e para baixo, para cima e para baixo, com o bico aberto.

-Exato! Vamos ganhá-lo com o tempo. Tudo passa meu amigo, tudo. Vamos logo beber este chá, antes que gele!

Então, num estrondo a porta se abre, cai o escriba no chão, cheio de pergaminhos e livros. O tinteiro voa longe, arremessando o caldo escuro das entranhas dos Polvos de Gorlium nas janelas cujos vidros tiniam de brilho. 

O escriba não caíra sozinho.

Quando o vira nos jardins, Israel logo sentiu pena e ofereceu-se para ajudá-lo enquanto esperava pelo seu Mestre, Ben Adam. Vinha desde o pátio o auxiliando a carregar os múltiplos volumes.

        Abriu a porta para o escriba e enredou-se entre os muitos pergaminhos, e quando o tinteiro que estava acima da pilha de livros balançou, ele se lançou para pegá-lo, derrubando o escriba e tudo que ele carregava.

Levantou-se e rapidamente e foi coletando todos os canudos e livros, e os colocando a grosso modo sobre os braços do escriba, e por fim levou o turbante de volta à cabeça do homem e sorriu. Quando percebeu que estava torto, tentou arrumá-lo. E o pobre homem incomodado não conseguia se livrar das mãos de Israel, segurando todos aqueles papéis.

Ao sinal do Bardo o Marujo parou, deitando o tronco sobre uma das mãos cruzadas fez uma reverência para o Decano:

-Senhor, Excelentíssimo Magistrado Decano de toda sapiência, me chamo Israel, Israel de Vaudeferro, ao seu dispor.

A ave grasnou no canto, chamando atenção do marujo, que prosseguiu:

-Veja, - apontou o grumete encantado-  que linda cocota de estimação o Senhor tem!



Fim da parte 1


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