31 de julho de 2021

Fortaleza Invicta - Imperador de Jade 2

 

CONTINUAÇÃO DO CONTO “IMPERADOR DE JADE”



Parte 2
FORTALEZA INVICTA 


Um presente para o rei

Estava calor. O Rei nu sobre a bancada de mármore, aguardava que o Alto Sacerdote tratasse o seu ferimento. Sentiu uma pressão fria, e depois um fogo consumir a ferida, mas não era quente. Suportar aquela dor o fazia sentir poderoso. Sentir os nervos retesando e depois, com o coração batendo forte, subia uma agonia em forma de frêmito, que ele abafava. E depois de novo e de novo. Abrindo e fechando a boca enquanto revirava os olhos. Abrindo e fechando o punho. Ele se sentia capaz de aguentar qualquer coisa.

-O que há com a Rainha de Harpis que não envelhece? -Perguntou o Rei apertando os lábios e os olhos. Essa dúvida era daqueles ensinamentos antigos os quais ignorara na infância.

-Bom, - disse, o Alto Sacerdote, enquanto limpava as bordas do ferimento - Podem ser muitas coisas. E talvez eu desconheça a razão. - E riu de soslaio.

-É um truque? - Continuou Tantalus.m desconfiado.

-Ela não é uma ilusionista de taverna, Nosso Senhor! É uma Sacerdotisa tal como eu. Os Sacerdotes são canalizadores do poder de D'us e das forças da natureza. Somente a Primeira Consciência, ou D'us, como preferir, pode prover a cura, o controle das circunstâncias e das forças naturais. O povo da Rainha Susana é sabedor desse Mistério que cerca a sua condição - retorquiu Edir, enquanto a memória antiga do pingente pulsante, brilhando pela primeira vez sobre o colo ensanguentado da Sacerdotisa lhe voltou à mente.

-Você pode fazê-lo? - Perguntou, sentindo um espasmo revigorante, mas sabendo ser o seu limite.

Gramateus ficou em silêncio por um longo tempo, sem que se soubesse ao certo se pensava no que dizer ou se pretendia deixar a pergunta do Rei sem uma resposta.

-Talvez.- disse o Sacerdote, depois de algum tempo, ainda sorrindo.

-Então faça! - levantou Tantalus, numa explosão, arremessando a vasilha do Sacerdote com um soco.

O sorriso de Edir secou de imediato enquanto recuava, evitando ser atingido pelo acesso de raiva do Rei.

-Quase fui morto por conspiradores! Se és um Sacerdote então faça. Nós somente somos algo quando fazemos o que de nós é esperado! Se não o fazemos somos nada. Sacerdote de nada, curador de nada. Ou Vossa Santidade é um ilusionista, afinal?- disse e ficou em silêncio em seguida. Depois bateu na bancada, e soltou um bramido meio preso, contínuo e grave, que fez os veios da face e do pescoço saltarem verdes. Depois debruçou-se sobre a mesa, com o rosto entre os braços, coberto pelos finos e leves cabelos loiros. Em seguida soltou outro urro, e ficou esmurrando a pedra. Com todos os sentimentos no topo e aquele estampido nos ouvidos.

O Sacerdote conhecia os acessos de raiva de Vossa Majestade, que os tinha desde muito pequeno e via-se que sofria lutando contra aquilo. Era comum que o pai o trancasse por longos períodos em um quarto, cujos objetos ele destruía. Ficava lá por dias. Batia nas coisas, esmurrava paredes, chutava mesas e cadeiras, mordia e feria a si mesmo. Os ataques iniciaram-se após a morte da mãe. Mas pareciam mais intensos agora, depois que retornara dos Salões de Jade.

E vinham piorando.

Ninguém tinha coragem de interrompê-lo para abrandar as crises, para ajudá-lo a sufocar o ímpeto. O deixavam, simplesmente e saíam de seu caminho.

Sua pele clara ficava muito vermelha, rapidamente seus olhos verdes vibrantes pareciam afundar dentro das órbitas escurecidas.

Desde a coroação tivera dois ataques intensos, um no gabinete real, onde destruiu todos os pertences, passando a despachar no aposento pessoal. O segundo presenciado por uma criada, que teve a carótida esmagada com as mãos. Edir o encantou para que voltasse a si, como fazia nos campos de batalha na sua juventude, retirando a força e o vigor de seus inimigos. Mas o encanto, depois disso, nunca mais surtiu efeito.

Uma onda recorrente de preocupação vinha o atormentando. Uma suspeita profunda que ele ignorava, de que talvez os delírios do auge da loucura de sua mãe pudessem ter um fundo de verdade.

Edir juntou seus pertences do chão para ir-se, ali persistia uma animosidade tangível entre ambos, o fazia enquanto se recordava da carta que lera secretamente há muito tempo, Dágoras a deixara para queimar, mas o fogo estirpara-se precocemente. A carta escrita por Fineas e recebida pelo Rei no dia do retorno do filho, meses antes de sua morte e que trazia notícias surpreendentes e reveladoras sobre o herdeiro.

-Vou tomar Saigão! Vou tomar e colocar o Vau na minha mão!- Edir escutava o Rei esbravejar enquanto esmurrava as paredes, nem o que não era dito escapava ao pensamento auspícioso do Sacerdote.


Voltando para casa

Fineas digeria no caminho de volta para casa aquela derrota amarga. A segunda perante o conselho.

Primeiro foi a deliberação pela corrente majoritária em matéria de propriedade, que deu Origem à Lei de Propriedades. Sim, sua primeira grande derrota. Agora a revogação do Tratado da Última Cidade Mais ou Menos ao Norte para Ações de Paz. Uma moção com a assinatura de seis Senhores dos Povos, dois Reis, da Liga de Mercadores de Saigão, Três Torres de Alta Magia (Malditos Magos!, pensou), cujo único fundamento era uma crescente ameaça aos povos. Que diversos reinos estavam sendo atacados, e precisavam de autorização do conselho para contra-atacar. Mas a única coisa de concreta que tinham, eram as pilhagens em Evreskaya. Por essa razão, colocaram o velho Edron para falar, em meio ao pânico semeado entre os presentes.

Logo Edron, cuja esposa teve a família destroçada pelas mãos da guerra.

Então Edron falou confiante que vivia em constante guerra, sofrendo com ataques habituais de rebeldes vindos de Evreskaya. Que a peste os afugentava do seu território. E que lá ainda era forte o ressentimento pelo fim do Império Kaisar, terra de origem da Rainha de Kaisar, antiga princesa de Evreskaya. Sempre fora. Mas Evreskaya caíra em desgraça, “para nossa sorte”, nas palavras de Edron, repudiadas por Fineas. E disse que Kaisar lhe batia às portas sempre que chegavam caravanas de mendigos, ladrões, quadrilhas e quadrilhas de Egirões. E que há muito ele pedia ajuda para a antiga Aliança, porém ninguém lhes mandava soldados ou suporte de qualquer natureza. Mas que Ágoras vinha alcançando reforço militar, para ajudar-lhe, contudo não poderiam eliminar os focos de rebeldes tendo em vista o Tratado de Paz.

Pior foi quando Varr Reykjavik Bar, se pronunciou. Ele mesmo, que teve o pai, Varr Jötun Bar, friamente assassinado por Tantalus Ágoras nos Jardins de Pedra. Disse que a Ilha vinha sendo atacada, e seus negócios iam de mal à pior. Que os ataques eram desconhecidos.

Então muitos dos Senhores que não haviam assinado a moção, começaram a relatar pequenos ataques isolados em seus territórios, com razão aparentemente desconhecida, mas que apresentavam uma coisa em comum: Bandeiras Sombrias de Ankset.

Uma bandeira que não era vista há muito. Ankset fora destruída pelo próprio Kaisar, que passou a reinar sobre os escombros. Sua bandeira, totalmente tenebrosa, Tenebrae, a chamavam, sombrio em em Bo, representado a noite que precede o Havdalá.

Tal afirmação provocou uma convulsão geral. “Guerra está chegando, novamente”, muitos afirmavam desconsolados.

Não havia provas, apenas evidências que precisariam de investigação. pensava Fineas. Mas muitos pediram pela revogação imediata do Tratado de Paz, querendo com isso iniciarem medidas urgentes de proteção.

Fineas observava incrédulo tudo o que estava acontecendo. A maior vitória para os povos jamais vista, que era a lei de paz, fora vergastada por “rumores”, “homens possivelmente pertencentes a um império morto”, “sussurros de ataques isolados”, todos argumentos muito frágeis. Fineas levantou-se, ao que todos pararam de imediato para escutá-lo. E fez essas observações. Afirmou que com a medida, iniciariam-se uma série de atos de guerra, e que tais atos fomentariam o uso das mesmas (e antigas) estratégias militares para defender interesses escusos de cada povo e seu governante. Usariam seus recursos militares para prática de comércio, saques deixariam de ser alvo de controle (e de sofrerem as devidas punições a que eram submetidos atualmente), as coercitivas regras atuais às intolerâncias sofridas pelos povos dos continentes seriam relativizadas, o tão eficaz e ainda jovem, sistema de repatriação de espólios ilegítimos de guerra (que vinham devolvendo aos seus povos de origem, objetos de valor inestimável às culturas assaltadas pelos Kaisar) cairia por terra e a destruição, principalmente da ação recém iniciada para redução das desigualdades e realocação dos usos das riquezas naturais comuns encontraria seu fim.

Fineas falou brilhantemente contra a aprovação da moção. Mas havia um veneno disseminado, que ardia no coração dos presentes, o próprio medo da guerra e a necessidade de defender-se dela:

-Lembrem-se,- falou exaltado, salivando, com o dedo em riste- todos os sentimentos elevados que estão sob a tutela desta Lei serão aniquilados, por um fantasma da guerra que vocês mesmos não conseguem exorcizar de seus corações. E cuja sombra, que os Senhores mesmos alimentam o crescimento, arrastará suas asas de forma devastadora sobre todas as conquistas até aqui alcançadas. E então todos os seus temores terão se tornado uma realidade, construída unicamente por si mesmos.

Mas a longa e tortuosa votação teve início e quebrou o coração de Fineas. Uma maioria esmagadora seguiu a moção. “Sim, pelo povo de Vaudeferro e pelos sonhos de aço”, falou Edmundo. “Pelos tão sofridos Kolbis em suas tocas nos pântanos, Sim.”, falou a Matriarca Kolbi. “Pela glória intocada das Montanhas de Gelo, Sim.”, disse o Senhor de Picoalvo do Leste. “Pela opulência dos antigos princípios. Sim.”, disse Zor, Senhor dos Abismos de Zarmund, um dos maiores escravagistas do continente e constantemente censurado pelo conselho por não combater com eficácia as ainda presentes práticas de escravidão e comércio de vivos em seu domínio.

E cada “sim”, enterrava mais aquela faca afiada na paz dos povos. Até que ao final da reunião, rastejando pelo salão, ela teve a cabeça esmagada por Tantalus Ágoras, que se dispôs a enviar tropas para os territórios que necessitassem de ajuda. O Senhor de Solar das Laranjeiras foi primeiro a requisitá-las.

Aquilo foi o fato que mais partiu o coração de Fineas, e foi irremediável. O filho do seu amigo e pacificador, Tantalus Dágoras do Sol, estava conspirando para a guerra com os mesmos homens que se submeteram à vontade de seu pai,que unificou o continente sob uma só bandeira: a de defender a Liberdade dos Povos e instituir um sistema de proteção à paz como jamais ninguém fizera.

E Ágoras acabara ardilosamente e irreversivelmente com tudo.

Fineas bateu na janela da cabina, como tivesse uma revolução de ideias em sua mente. Fazia sinal chamando a atenção do condutor.

“Está tudo perdido”, foi com pesar que essa ideia caiu como uma realidade em Fineas, ainda mais quando lembrou de avistar tropas de Tantalus espalhadas ao longo das margens do Rio do Ausar “algo maior está acontecendo”, pensou rápido. Deveria encontrar Joyce o mais rápido possível e contar-lhe tudo o que sabia. Deveria prosseguir com suas andanças e cumprir o que prometera ao amigo falecido, encontrar a resposta que faltava à certeza de tudo. Dissera à Susana que esperasse o seu sinal para então agir contra Ágoras, ele deveria encontrar aquela resposta, cuja busca fora adiada pelos compromissos no Alto Conselho.

O caminho se desenhara em sua mente. Primeiro a biblioteca da Torre de Marfim, deveria procurar nos livros algo que comprovasse a sua presunção, já que tinha indícios suficientes para algo maior que uma mera suspeita. Depois da Torre, quem sabe, a Fortaleza.

O coche parou. O Alto Sacerdote, Sumidade Ocidental, desceu no barro e arremessou a toga sobre os ombros. Se dirigiu ao General na comitiva, que estava em sua montaria: 

-Me dê três homens e seu cavalo, sigam com a comitiva para o templo. Tenho assuntos para resolver em Mataguda.

Assim que montou, bateu os calcanhares no lombo do animal. Dispararam  com pressa, embrenhando-se entre as rochas de Penhascoforte, porque ele corria em direção a um conselho fiel. Ao conforto do abraço de uma grande amiga.


A antonímia de Vaudeferro

Miguel estava cabisbaixo, olhando repetidas vezes a carta de Edmundo, Senhor de Vaudeferro. Levou sua companhia, que ficara do outro lado do Rio, e foi sozinho bater às portas do governante.

Uma simples correspondência requerendo informações acerca do aumento sobre o preço do ferro, do cobre e das matrizes de armas.

Quando os portões foram abertos, para que entrasse o estandarte da Fortaleza, Miguel foi conduzido de imediato por inúmeros soldados. Como se estivesse sobre custódia. O clima não condizia com a política de cooperação estabelecida para a revogação do tratado de paz, e quando interpelou pela conduta em sua recepção, o diplomata e general recebeu em resposta, que diante dos diversos relatos de ataques de Egirões, esse era o procedimento geral de recebimento dos estrangeiros no momento.

Tomando por bem evitar atritos, Miguel quedou-se silente.

Sua resignação foi provocada somente quando, ao ser recebido pessoalmente pelo Senhor de Vaudeferro, e obrigado a ler em voz própria a interpelação oficial, foi dito que retornasse dando notícias “Ao seu Mestre, Rei de pouco” (como Edmundo mesmo disse, nessas palavras), de que o preço era esse. E que  caso persistisse a indignação, Ágoras viesse reclamar por si mesmo, sem mandar homem sozinho entregar seus recados.

Miguel ficou assustado, disse a Edmundo que a resposta não era adequada, e que por uma questão de diplomacia, não poderia entregá-la em voz ao seu Rei.

Edmundo chamou o escriba e ordenou que suas palavras fossem desenhadas. Levantou do trono e baixou as calças, pedindo que o escriba passasse a cena para o papel. Depois, enrolou o pergaminho e entregou para Miguel, mandando-o de volta para casa “obedecer seu Rei valentão”.

E lá estava Miguel, olhando a cena do documento que fora ordenado se chamasse “Antonímia de Edmundo, o Varãodeferro”.

Sua decisão, porque conhecia muito bem o seu Rei e amigo, foi ficar por ali e ver um lugar adequado para instalar as tropas, perto da margem do rio, enquanto um homem da sua companhia viajava até a Fortaleza, para entregar em mãos, o recado de Edmundo de Vaudeferro.

No entanto, o fato de ter permanecido ali, orquestrou um acontecimento inesperado.

A companhia militar comandada por Miguel ficara instalada do lado oriental do Rio Mãe. E após o General partir de Vaudeferro, não abandonou a localidade. Edmundo mandou três batedores até as margens, para que averiguassem a movimentação de homens de Ágoras no local.

Miguel, percebendo a movimentação, escondeu-se entre às árvores, na margem ocidental, enquanto aguardava a balsa. Inicialmente pensou em não atacá-los. Porém, pensando na investida de Tantalus contra Vaudeferro, concluiu que seria melhor interceptar os homens, para que informações sobre as tropas e sua localização não chegassem ao Senhor das terras. Assim, acabou assaltando aos batedores de Edmundo.

Eram três homens e um cão. Miguel cruzou espadas com os homens, brevemente, os derrubando com a morte. O que lhe deu trabalho mesmo, foi o cachorro. Correu atrás dele montado no cavalo de um dos batedores por uma longa distância, conseguindo encontrá-lo na altura do Rio próximo a Inkaar. Porém, ao alcançá-lo o animal estava muito cansado e acuado. Ofereceu-lhe um pedaço de carne seca, o que conquistou a confiança do cão. E quando retornou para a margem da balsa o bicho foi o acompanhando.

Vendo aquilo, pensou que seria oportuno devolver a piada. Cortou a genitália de um dos batedores, o de cabelos loiros, e a atou ao pescoço do cão. Amarrou o cachorro a uma corda no  freio do cavalo e tocou ambos na direção do vilarejo.

O que Miguel não sabia era que os batedores eram o filho menor, o irmão e o sobrinho de Edmundo.


A Batalha de Vaudeferro

Talvez um ou dois homens observadores tenham notado a máscara de Tantalus se mover com o sorriso irônico que deu ao ler o “recado” enviado por Edmundo. Mas todos os Generais e Tenentes que estavam sentados à mesa no salão principal, discutindo estratégias de organização militar, sabiam qual seria a reação de seu Rei diante da resposta infame que recebera e que passara de mão em mão. Risos se espalharam pelo salão.

Depois do burburinho, Tantalus bateu na mesa, pedindo silêncio. As taças e os pratos de ferro estremeceram sobre a madeira: 

-Senhores, acho que devemos ensiná-lo uma boa educação. Estão de acordo?.

Os homens passaram a bater na mesa, juntos, levantaram  suas armas concordando com o Rei.

O perdigueiro ficou frenético. Seu Rei os convocava. “Guerra! Guerra!”- pensava, com um sorriso no rosto, o coração batendo na garganta. Um ritmo de frenesi e absoluta ignorância do que vinha a seguir. Mas ele via a convicção do seu Rei, iria seguir aquele homem, onde quer que fosse. “Tan-ta-lus! Tan-ta-lus! Tan-ta-lus!’, começou. Em seguida todos o acompanharam, vibrando o nome do Rei e batendo no peito.



Os Tordos de Pedra

Era manhã alta e os homens desciam madeira no rio desde o fim da tarde anterior, abrindo uma clareira para as lonas amarelas e os mastros do acampamento de Ágoras, o aninhamento das patrulhas nas margens lamacentas para trincheiras e valas de espetos. Era para aquilo que estavam preparados, guerra.

Miguel coordenava a atividade dos seus setenta homens, a companhia dos Tordos de Pedra, Primeiro Regimento do Comando Real, combate especializado corpo a corpo. Ele mesmo os selecionava pessoalmente, pensava que um bom soldado de combate de proximidade deveria ter como característica, além do domínio das técnicas de combate, como a luta, espada e escudo, um pensamento rápido capaz de tomar decisões ousadas de forma sagaz. Sempre dizia aos seus homens: “Ao cruzar espadas, vence aquele que evita o prolongamento da luta de maneira eficaz. Matando, imobilizando ou falando”.

Deixara um homem no lado ocidental, pronto para atravessar um aviso pelo cordame estendido sobre o rio. Cada fita azul, indicava aproximação de um homem. Uma fita vermelha para cada dez. No lado oriental estava Marco, outro batedor e seu cavalo, atentos a qualquer sinal.

Miguel orientava um soldado para cortar as árvores mais adentro na mata, juntamente com alguns de seus homens que compartilhavam a execução das tarefas distribuídas, quando Marco, o batedor no rio, irrompeu veloz com seu cavalo, arrancando grama e areia da terra fofa e úmida. O animal relinchou e se ergueu com a parada brusca do soldado. Em suas mãos havia trinta longas fitas vermelhas pingando água.

O General entrou na barraca e soou o corno de guerra. Em pouco tempo seus homens começaram a correr pelo acampamento, indo aos seus lugares e arrumando-se para batalhar. A armadura lamelar entrou no corpo, um capacete de metal que emoldurava o rosto, projetando o centro sobre o nariz. Uma mão segurava o escudo de bronze, ornado com o sol dourado da Fortaleza. Tão polido que refletia a luz do dia de forma pungente nos olhos dos oponentes. Uma lança, chamada Banidora, toda de metal, com a ponteira em forma de uma pena canular e bordas afiadíssimas, ela ia nas mãos das duas primeiras fileiras de dez homens.

As duas próximas fileiras eram compostas de  soldados com suas espadas de aço, cuja lâmina fora dobrada duas mil vezes sobre o calor da forja de Sabo.

Atrás vinham as clavas de corrente. E Por último as dez longas e pesadas espadas de duas mãos, comandadas de perto pelo General.

Estava com seu elmo debaixo do braço, à frente do Regimento. “A guerra veio até nós hoje. Mas nós ansiamos por ela, todo dia. Somos duros e nosso voo é certeiro. Somos Tordos de Pedra, somos homens preparados para morrer. Guerra e glória!”, “ Guerra e glória!” respondeu o regimento em coro, com o lema da companhia.

Miguel assobiou com os dedos entre os lábios e os homens já sabiam que era hora da batalha. Então começaram a marchar até a margem do rio. Onde uma rede havia sido jogada para segurar as toras de madeira cortadas e arremessadas na água. Então correram sobre os paus flutuantes cada fileira de uma vez. E quando foram vistos chegando na margem um homem de Vaudeferro saiu disparando no cavalo em direção a colina. Quando desapareceu no baixio, uma corneta soou entre o matagal que cercava a clareira do passo da balsa, no Veio de Ouro, o Rio Mãe.

Assim que as duas primeiras fileiras de Tordos chegaram na margem oriental, uma saraivada de flechas veio do alto, da direção da mata baixa que seguia em direção à colina.

Os homens levantaram seus escudos, formando uma grande bola dourada, que refletia o sol a pino. Impossível de se olhar por muito tempo. Quando as duas fileiras seguintes atravessaram, escutaram os piados e assovios de dois Tordos no sentido da mata, e correram cada fileira para um lado.

Os homens no matagal, não conseguiam mirar suas flechas e nem olhar na direção da claridade ofuscante. Quando as fileiras surgiram na mata os arqueiros foram atravessados de assalto pelos homens de Miguel.

Então os lanceiros desceram o Vau, na direção da mata que circundava a colina.

Nesse momento os demais soldados da Fortaleza terminaram de atravessar o rio, todos que estavam na sexta fileira recolheram as duas grandes redes.

Os Lanceiros adentraram na mata espetando os soldados do Vau, que usavam todos espadas curtas de aço. Suas formas de armas eram conhecidas por Miguel. Ele sabia que os lanceiros deveriam ir primeiro, porque tinham vantagem na batalha corpo a corpo contra as armas de proximidade de Vaudeferro.

Os Tordos alcançaram o pé da colina em pouco tempo, saindo de dentro da mata baixa e se reuniram aos poucos sob o comando do General. Oito soldados seus não atravessaram a mata, ou talvez estivessem lutando entre as árvores. Haviam sessenta e dois ali.

-Além da colina - esbravejou Miguel, cuspindo sangue e apresentando um ferimento no abdômen- está a glória. Vamos buscá-la!

Todos os homens avançaram sobre grama da Colina, mole e pisoteada, que descia Vaudeferro. Quando chegaram no alto, viram que havia muitos homens ali, duas ou três vezes mais. Então puseram seus escudos sobre a cabeça, os que estavam nas últimas fileiras. Os intermediários na formação, elevaram seus escudos na altura do rosto. Os lanceiros puseram o escudo à sua frente, levemente inclinado. O que se via no campo de batalha de Vaudeferro foi uma grande parede de luz descendo a colina, a qual não se podia mirar sem ofender a vista. Muitos arqueiros lançaram flechas e poucos acertaram na direção do paredão. E quando a luz cessou, os lanceiros já estavam enfiando suas lâminas no estômago dos Soldados de Ferro.

Desceram arrastando as primeiras fileiras diante da Fortaleza do Vau, abrindo espaço para as espadas afiadas. Logo um tapete vermelho se formou sobre o pasto e a lama, os homens do General avançaram com suas longas espadas de aço inquebrantável sobre as hordas do inimigo. Eles não esperavam um ataque tão cedo, ainda estavam se organizando para atravessar a margem e encontrar a companhia de Miguel.

Edmundo vinha montado no cavalo quando uma lança foi arremessada na sua direção, mas não atingiu o alvo. Porém uma clava de corrente bateu no seu escudo, derrubando-o do cavalo. O escudo resistiu à investida do soldado, e novamente ele lançou a clava sobre o Senhor de Vaudeferro.

Então uma trompa soou. Um som metálico, baixo e contínuo veio derrubando as árvores e estremecendo os tímpanos dos soldados.

E soou de novo. Na segunda vez estava mais alta e próxima.

Os Tordos gritaram no campo de batalha, com um frêmito incendiado de energia. Miguel sabia que seu Rei havia chegado, então ele brandiu sua espada com muito mais força.

“Mais duro que o aço.”- ele gritou.


O velho oráculo

Estavam todos no salão de Ferro do Castelo do Vau. Festejando a vitória esmagadora sobre o exército de Edmundo. O Senhor de Vaudeferro estava sentado, com um ferimento de espada no abdômen. Da ferida brotava uma sangria inestancável, vertendo o ferro líquido e morno pelas pernas do homem, debaixo da peitoral de aço escovado, fendido e retorcido pela pancadas em batalha.

De fato era um ferimento mortal, Tantalus enfrentara Edmundo, um homem de idade avançada, porém de constituição forte e experiente em batalhas. O que não foi suficiente para conter a fúria de fogo do Rei de Jade. Tantalus largou sua espada e partiu de punhos nus na direção de Edmundo, e após trocarem ferimentos, Ágoras com muita força, urrando sobre o rosto do Varãodeferro, atravessou Edmundo com a própria espada. Não teve piedade, mas o deixou ferido suficientemente para presenciar a festa que daria nos Salões de Ferro após a vitória.

Ordenou que pusessem o Senhor numa carroça puxada por dois porcos, que o foi carregando até o interior da cidade.

Edmundo viu tudo, moribundo. Deixaram-no sentar no trono até seus últimos momentos. Giom tomou a filha de Edmundo, diante de seus olhos. Fizeram-lhe um vestido de noiva com a toalha de mesa. Casaram-na com José, o batedor do rio que avistou as tropas de ferro.

Os ânimos estavam exaltados.

Irene de Vaudeferro, a mulher de Edmundo, foi obrigada a servir um banquete para os Tordos de Pedra e os generais do Rei que estavam ali, enquanto as barracas dos Regimentos da Fortaleza do Sol eram montadas no pátio do castelo.

Trouxeram um menestrel para cantar. E Tantalus mandou descer cerveja. Muitos risos bateram contra as paredes do salão e o canto frouxo e engraçado que desdenhava o Edmudndo ecoava nos estertores de ferro, enquanto o condestável morria ouvindo a tudo.

Então foi ordenado que viessem os Lordes de Ferro que se renderam em batalha. O Primeiro foi o Senhor de Passo da Balsa, Edgard Minarica. O olho azul safira brilhava desconfiado sob os archotes. Mas veio e foi convidado a se juntar à mesa, muito embora se mantivesse temerário.

Tantalus aproximou-se de Edgard e lhe perguntou porque decidira se juntar à Fortaleza, mudando de lado durante a batalha. O Homem com o  bigode sujo de sangue engasgou, mas por fim se explicou: “Eu vejo que os fortes devem ser seguidos, cometi um erro ao apoiar um fraco.”.

O saguão ficou em silêncio aguardando o julgamento daquelas palavras. Tantalus o mirou com os olhos verdes brilhantes por trás da máscara que reluzia ao fulgor das chamas no salão, ergueu o braço do homem nas alturas, como se pedisse a reverência dos presentes. Porém catou uma faca na mesa e atravessou o peito de Edgard, diversas vezes:

-Traidores são sempre traidores.- ele falou para seus homens- Fortaleza, lealdade, respeito. Misericórdia jamais.

E todos repetiram as palavras de Ágoras.

Depois um perdigueiro veio, cochichou ao ouvido do Rei, que assentiu com a cabeça. Logo o emissário trouxe uma mulher enquanto o Rei procurava assento confortável. Ela vinha de cenho duro, cabelo e olhos pretos, da cor do ferro, e estava vestida com roupas finas, e seu andar era cauto e pisava com altivez, erguia a cabeça como uma nobre. O homem que a trouxe se dirigiu à audiência: 

-Ela quer falar, diz que é bastarda de Edmundo.

Tantalus pôs os pés sobre a mesa, afim de escutar confortavelmente o que a mulher tinha a dizer. Fazendo uma mesura, sinalizou para que ela falasse. O soldado a empurrou para o centro do salão de ferro, ao redor do qual todos estão estavam sentados banqueteando.

Ela girou sobre os pés, antes de iniciar sua fala.

-Meu nome é Irena, primogênita e bastarda de Edmundo.- então todos os soldados bateram, nas mesas dizendo o nome da mulher, zombando.

Ágoras pediu pelo silêncio de todos, fazendo shi.

Ao que ela continuou: 

-Sou Patronesa do Escola de Mistérios de Vaudeferro, mulher de Isnard, que caiu em batalha. Venho diante de todos pedir que as mulheres e crianças que estão sob a proteção dos muros da cidade, bem como os velhos e jovens que não foram à luta, sejam deixados em paz. Não queremos ser violados. Os Senhores demandam respeito, eu ouvi. Peço o mesmo enquanto choramos a morte dos pais, filhos, irmãos e maridos.’

O Rei levantou-se, caminhando na direção da Patronesa. Ele chegou muito próximo de seu rosto, e segurou a borda de filigranas de ouro de sua Toga Candida. Deixou que os longos brincos de esmeraldas escorregassem entre seus dedos. Mirou com curiosidade no fundo daqueles olhos negros e desafiadores. Então afastou-se.

A sua máscara sempre evitava que tivesse o rosto lido. Ele girou no salão, erguendo os braços para os seus, e gesticulou para que ela o seguisse até a mesa. Puxou uma cadeira para que sentasse ao seu lado.

“Mande a próxima atração”- disse Tantalus para o perdigueiro.

Enquanto traziam o próximo entretenimento, virou o rosto na direção de Irena e sussurrou ao seu ouvido: Sei que tem um punhal dentro da manga, o vi brilhando enquanto falava . Se tentar usá-lo terei que mostrar a meus homens que não tenho piedade. Fique quieta e sorria ao meus lado. Se o fizer, deixarei que permaneça na Escola, que viva no Templo junto com um Preletor Racionalista indicado por Edir Gramateus. Se quiser continuar com o plano da adaga, fique à vontade. Vou me divertir da mesma maneira, porque eu não me importo com você. - recostou-se na cadeira e cruzou os pés sobre a mesa novamente, e ficou observando enquanto o perdigueiro trazia a nova atração. Um velho cego, de olhos leitosos, vestindo uma burca preta, carregando uma ânfora de ferro.

-Ele diz que é um profeta, Nosso Senhor. - falou o perdigueiro.

Irena se aconchegou na cadeira com ar de satisfação.

-Diga.- Ágoras pediu para que o velho se aproximasse- O que vês com seus olhos  de cego?

Alguns riram no salão, mas a maioria permaneceu em silêncio, curiosos e intrigados com a figura enigmática da qual estavam diante.

-Eu vejo o futuro que vai acontecer ou que poderá acontecer e como evitar os infortúnios. Eu vejo aquele homem segurando um cálice dourado, a mulher a seu lado sorvendo uma bebida doce. Com esses olhos brancos eu vejo o que não pode ser visto e o que deveria ser evitado. As sombras que se movem ocultas nos covis de conspiração. Os punhais e as gotas fatais escorregando na escuridão, adormecendo precocemente os homens de coragem. - O velho olhava para o lado contrário no qual se encontrava o Rei.

-Necessito da sua seiva, Nosso Senhor , para tanto.

Tantalus ficou curioso e aproximou-se com uma faca na mão. O velho se voltou rapidamente na direção de Ágoras, o mirando com as fitas leitosas: 

-Com a faca não. - o Rei deu um salto para trás, desconfiado de que ele tinha a vista boa.- Faça com isso.

Ao retirar o tampo da ânfora, uma cobra negra, de escamas brilhosas deslizou sobre o bocal, serpenteando seu corpo fino e brilhante sobre o manto negro do velho. A cobra sibilou e ao encontrar os olhos de Ágoras se lançou sobre o Rei. Com um disparo de reflexo passou a faca na cobra que se erguia. O corpo dela ficou mole e a sua cabeça caiu no chão.

Todos riram daquilo.

Mas em seguida a serpente de pele negra e brilhante se reergueu e uma nova cabeça brotou no lugar daquela que fora extirpada. E avançou sobre Tantalus lhe picando com longas presas tão finas como agulhas. A cobra enrolou-se no braço do velho e entrou pela manga. Desaparecendo sob suas vestes.

Ágoras deu alguns passos para trás, com a mão no ferimento da picada.

Em seguida o velho estremeceu e ergueu os braços para cima, seus olhos ficaram vermelhos como poças de sangue e ele começou a falar em copta: 

-Um sangue de antigos Reis vem à mim porque quer saber o futuro. Eu vos dou o meu sangue, a seiva do filho esquecido, como pagamento desta magia poderosa. Um tesouro procurado se esconde sob mil folhas de lótus. Um couro de lobo na noite escura para o assassino titereiro de sangue. Um menino à beira da morte, no grande castelo no Havdalá. A Princesa da Bandeira Sombria. A Gema... a Gema na escuridão brilha, para construir o maior império de todos. O Rei de Jade quebrado. Uma Rainha Sombria de Olhos brancos. Uma guerra terrível. A montaria sagrada para o imperador de tudo… - Tantalus ficou transtornado com as palavras, acenou para o perdigueiro. Um soldado com uma banidora saltou de trás da mesa e atravessou o Oráculo, até que o cabo trancasse nas costas.

Um brilho ondulou na pele do velho, como se ela fosse feita de milhares de pequenas escamas metalizadas, depois seus olhos voltaram a ficar brancos e então se fecharam.

O salão permaneceu em silêncio, digerindo aquele evento inesperado. E muito embora tivessem procurado exaustivamente, jamais encontraram a serpente da ânfora.

Irena acompanhou todo o desfecho com um grande ar de satisfação, como se já conhecesse o espetáculo, usou a adaga da manga para puxar uma maçã para si enquanto observava toda aquela circunstância curiosa.



Continua no dia 6/08…


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