7 de agosto de 2021

Devir



1998

 Fiquei esperando pelo meu Mestre durante dez anos. Velas acesas farfalhando na escuridão, casas abandonadas, pouca roupa e comida do lixo. E chorava em meio às preces, tentando me fazer ser ouvido. Nada. Um silêncio brutal ferindo meu coração. O abandono do Mestre me infligiu anos de dor e miséria.

    Veja que não sou qualquer um, já tive muito do conhecimento do mundo ao meu dispor e fui homem de grande poder e influência na sociedade do rebanho, como ele chamava a tudo que estava vivo. E então o Mestre se fez silencioso, me abandonando à sorte de toda desgraça.

    E vivo nesse mundo destruído, comendo o resto e o alimento desprezado. A noite me fazia forte para que eu seguisse orando e aguardando pela presença do meu Mestre inflando minhas veias, me enchendo de vida, de todo o combustível vil que me mantinha no topo.

    Clamo a quem gire a roda de infortúnio na qual me encontro em posição miserável, e que no entanto parece estagnada, porque foi isso que o Mestre prometeu antes de desaparecer. Mas agora envelheço nesta cidade decadente, cheia de prédios vazios, cheia de pessoas que se escondem da noite, enquanto desejo abraçá-la. Essa  existência cheia de faltas e criaturas desvalidas, com as quais eu não me importo e que tampouco se importam comigo.

    Se houvesse alguém que não conhece esse Lar, essa cidade, eu diria, lhe apresentando o nosso mundo agora, depois das notícias de 1998, depois das luzes piscando na cidade intermitente, das explosões que nos arremessaram um manto espesso de cinzas, deixando a terra cinérea, diria que não houve quem  conseguisse sustentar o mundo frágil de antes. Isso porque tudo colapsou, a tecnologia, a economia, a resposta humana indulgente se tornou um estado de necessidade puro. Então tudo mergulhou num caos e o que estava velado pela convenção cética da ciência, e em razão dela mantinha-se no fluxo, foi brutalmente exposto. Porque em meio ao desacerto não havia quem controlasse as notícias na TV, não havia internet, não havia estado de direito. Dormimos em um mundo de convenções e acordamos em um mundo de sobrevivência.

    Mas o que preciso dizer é que tudo aquilo que não era crível que existisse, emergiu na noite infinda que se estabeleceu no mundo dos homens.

    Somente alguns anos depois, quando muitas mulheres e crianças já haviam sido violadas, quando então todos compreenderam que não seria possível restabelecer a condição na qual vivíamos todos, é que a sociedade se reergueu parcamente. Vivendo do trabalho contínuo de homens e mulheres em suas jornadas exaustivas, da pouca comida para muitos e muita fartura para poucos, da parca segurança nas ruas, estabelecida a duras penas, da falta de esperança nos olhares.

    Tudo foi se tornando suportável com o tempo, porque é isso que os homens fazem, acostumam-se, e o desprezível passa a ser o ordinário. E vão indo, dia após dia, como gado, do trabalho para as moradias, antes do toque de recolher.

    Veja que essa longa linha na costa é uma imensa planta industrial, grande parte abandonada, na qual todos os que restaram vertem suas últimas forças buscando o alimento do dia. Nos poucos espaços que brilham durante a noite fria, é possível ver através de grandes janelas de vidro embaçado, o requinte que para poucos ainda sobrevive, como uma realidade inacessível para quase todos. Vivem num mundo à parte, como um fantasma da vida que vivia-se no passado.

    Eu que estava lá atrás daquelas janelas antes de tudo acontecer em 1998, hoje estou aqui, aguardando pelo meu Mestre, e pelos dias que ele prometeu que viriam uma vez mais, dizendo em meio às preces: “na manhã o véu no umbral balança, preso à uma fina linha. Não durma na noite infinda, sob o véu rasgado, de onde não se pode ver se ainda estão as criaturas adormecidas”.



Tudo pode dar errado

    Ali estava aquela mulher, e eu sabia, porque ela me contou, que tudo dera errado. Que crescera ouvindo que deveria estudar, trabalhar e então ter uma família, casa boa, férias, carro. Que lhe disseram que isso era felicidade. Que por muito tempo ela havia acreditado nisso, que descobriu no fim: tudo era uma mentira.

Assim, perseguira isso durante seus melhores anos, ao final, nada disso. Não encontrou alguém, não teve forças para terminar os estudos, os dois filhos que teve foram embora e ela ficou sozinha até a colocarem ali. E sentia-se infeliz todo dia porque não conseguiu alcançar os objetivos que plantaram na sua mente como sinônimo de felicidade. E foi que isso a diminuiu tanto, que encolheu-se num canto de si, sem conseguir lutar contra aquele sentimento opressor de derrota.

E agora estava ali, no fim, enquanto trocava-lhe as fraldas.

Muitas histórias assim ouvi nos meus anos nessa Casa de Misericórdia. Mas nunca vi ninguém tão infeliz.

Aquela mulher transitava entre a loucura e a sanidade, e quando seus olhos giravam nas órbitas, e outros enfermeiros vinham amarrá-la à cama, é que eu via um pouco de destino cruel do qual ela falava. Tudo dera errado, drasticamente errado. Então sentia pena dela.

Vi que algumas vezes ela cochichava com alguém que não estava ali e voltava a dormir. Talvez fosse a felicidade que a visitasse e então a fazia apagar nesse mundo que lhe fora tão cruel.

Mas quando ela morreu, me alertando para que eu nunca tentasse pegar o caminho mais fácil, fiquei assustado. Não porque carregasse comigo a culpa de viver de um modo muito melhor que a grande maioria, sendo-me permitidas regalias, como comprar minha comida em lojas, beber vinho, me deslocar em um carro. Mas porque aquele aviso foi sincero e lúcido o suficiente para me alertar que havia um caminho fácil e que eu não deveria tomá-lo. Deveria me tornar vigilante, nesse mundo estranho e diferente daquele em que ela viveu.

Mas não fui diligente.

Ao entrar no carro naquele dia de trabalho, cansado da miséria humana que encontrava todo dia no asilo, é que entrou comigo no carro um homem. Sorriu para mim e alinhou o terno, remexeu o chapéu branco, dizendo eu lhe tenho apreço, então quero fazer com que tudo seja mais fácil, sem a culpa desoladora que carregas. Essa culpa que afinal é sequaz de mim. Vê que sou capaz de evitar que tudo dê errado, evitar que tudo dê terminantemente e inevitavelmente errado.

E assim, foi que mesmo sendo avisado, eu ignorei as distintas e eloquentes pistas que evitariam olhar nos olhos de muitos homens de branco que hoje visitam meu quarto acolchoado.



Decadência

    Alimentar os porcos na antiga linha de produção que fora  transformada em um chiqueiro não era o melhor de mim. Embarrar as botas na merda, derramar água no cocho. Esperava aquelas doze horas passarem ocupando minha mente com músicas que queria compor enquanto os gritos ensurdecedores dos animais amorteciam meus ouvidos, ao ponto de ao longo dos anos estourar meus tímpanos. Os sons na minha cabeça construíam um cenário diferente daquele, havia flores, um jardim e o meu piano derramando as notas sob uma tarde ensolarada.

    Então passava o dia, o trem, a volta para casa na zona baixa, o som do toque de recolher, mas que eu era incapaz de ouvir.

    Metia a chave no cadeado que segurava as folhas metálicas da entrada do armazém abandonado onde dormia, ali estava o meu mundo, naquele mausoléu de passado que eu chamava de casa. Onde podia tocar o meu piano e não havia ninguém para reclamar. E tudo era preenchido pelas notas vibrando dentro da caixa de madeira sobre a qual debruçava meu ouvido. Aquelas paredes com o reboco desmoronando, e as telhas altas de zinco, todas as pombas no estertor do telhado, todo o vazio do armazém, tudo era preenchido e transformado por Mozart, Chopin, Strauss. Um convite às criaturas lá fora, mas que eu não podia ouvir. Vinha o urutau cantar junto, o amigo zeloso na madrugada azul índigo.

    Mas aquele som reverberando chamou mais alguém e eu não vi que noite após noite ela vinha me espionar pelo buraco do zinco, e ficava ali, enquanto se banqueteava das pombas, escutando todas as músicas irreais que a atraiam.

    Pois uma noite revelou-se e me olhou com aqueles olhos negros e intrigados, estava curiosa não só sobre a minha música, mas por mim. E chegou tão perto que pude ver sua pele escarificada e retorcida, as presas irregulares saltando pela boca e as orelhas agudas. Estava nua, num estado de natureza, vagando entre o humano e o monstruoso, uma reminiscência do mundo antes de 1998.

    Então foi que me afastei, mas não o suficiente, porque seu braço era longo e alcançou minhas roupas. E seus braços com mãos longas e garras afiadas se moveram sobre o meu peito, inúmeras vezes. E me senti em chamas de tanta dor, enquanto a criatura se alimentava de mim, em sua demonstração cabal de necessidade, foi que tudo ficou inerte e escuro, voltando ao estado inicial de decadência contra o qual vinha me opondo resistentemente.



Um comentário:

Lucas C. Gomes disse...

Ótimos textos Jaque, você sabe usar muito bem as palavras!