29 de maio de 2006

O Caso do Açougueiro

A história terminou com um final feliz; ao menos para João.

Dois olhos encalacrados no rosto: sem dormir, talvez há semanas, apenas pensando. Não tinha coragem de mexer-se. Nem ao menos de piscar, ou terminar o que havia feito. Timidamente movia-se para alcançar as bolachas que havia em cima do balcão; isto quando lembrava da fome. Os dentes, descarrilados, eram esfarelados pelo maxilar inquieto. Noites a fio remoendo pensamentos. "Talvez fosse melhor levantar-me da cadeira" pensava em uma mera sensação de alívio, porém instantes depois, quase que automaticamente, esborrachava-se na cadeira como se alguém fosse surpreendê-lo. A cachaça já havia acabado, o cigarro também, porém a angústia de ser surpreendido, esta jamais passaria. Uma sombra surrupiando no canto destro do congelador parecia bambolear uma sinistra profecia, como se prenunciasse a chegada de alguém indesejável. A chegada de alguém, corrijo, pois qualquer um seria indesejado. Um silêncio inexorável comia as horas, que irrompiam uma após a outra, professando uma tensão cada vez maior.
"Há alguém lá fora, eu sei", pensava João. E apertava suas mãos firmemente na guarda da cadeira. Estalava os olhos, como se enxergasse mais coisas que seu ângulo de visão pudesse alcançar. E a cadeira rangia, deixando João mais ansioso, temendo ser descoberto. A manhã atravessava a tarde, a tarde assassinava a noite, e a madrugada, a madrugada, com toda sua escuridão devorava a mente de João como formigas famintas sobre um inseto morto. Morto. Morto.
"Ainda há alguém lá fora, eu posso sentir", e aquela sensação de espera corroia a mente do açougueiro. Ele não arriscava levantar para lavar as mãos sujas de sangue, ou para tirar o avental no mesmo estado. As moscas zuniam nas volta das orelhas de João, porém ele não arriscava se mexer e espantá-las. Podia ser descoberto através de ínfimos movimentos desferidos.
Escutou o gonzo da porta estremecer, e imediatamente gritou: "O açougue está fechado, a carne acabou, não há mais carne". Mas era Bulgato, seu gato de estimação. O animal parou sentado na frente de João, olhou-o com olhos de julgamento - e como era tenebroso e pungente o olhar do felino-, por muitos minutos, fixo. João primeiramente sentiu-se inquieto, mas logo o desconforto deu lugar a culpa, e os olhos do gato imóvel, jamais feririam alguém como feriram à João. E subiu-lhe uma ânsia, e o açougueiro retorcia-se na cadeira, aos prantos: "Não! Não! Não pode haver!", gritava desesperadamente o homem. E então o animal começou a engolfar algo, e por minutos assim passou, até colocar pra fora diante dos olhos de João, uma massa vermelha, disforme, gosmenta, e sem piedade fixou o olhar João novamente. Logo em seguida, saiu. E o vômito permaneceu ali na frente de João.
E logo ele percebeu que havia rompido o silêncio. Mas, a porta rangeu novamente, e entrou no açougue Welington, seu vizinho. "Escutei gritos João, você está bem?", e logo João meneou a cabeça, porém uma sensação torpe evadia dele e Welington se retirou "Acabei de chegar de viajem, soube há pouco que ela foi embora. Se precisar de algo, não se acanhe, me procure. Até mesmo se quiser conversar sobre o que aconteceu...".
O vizinho saiu, e João caminhou até o freezer. Levantou a porta e deixou o ar gélido correr pelo rosto endoidecido, desvairado, o olho parecia saltar do orbital, e uma áurea de mácula perambulava sob o olhar tenebroso de João, um pobre açougueiro de orgulho ferido: "Ah, meus olhos ardem, e tenho fome. O que posso comer além de bolachas mofadas? Que dor, uma dor tão imensa que corta!!!! (e solta uma gargalhada,como se falasse com o fundo do freezer, porém logo em seguida recobra a postura e olha firme para dentro do congelador ) Nada, nada de carne, não sobrou nada de carne para mim..." Porém catou um saco que havia ali dentro com algum volume,do tamanho de uma bola de futebol, e jogou na lixeira: "Agora, meu amor, o que me disseste está bem dito: o bairro todo te comeu, mas agora eu sei; e eles não".