13 de setembro de 2021

Vacas fazem greve?




 O cara foi diminuído a velocidade até parar por completo. O carro estava a toda, mas brecou com surpresa, como quem cospe o café afora, engasgando.

Ué, tem uma vaca parada no meio da estrada?

 Não tinha que estar ali.

Que raios uma vaca tá fazendo no meio da estrada?

Não tem pasto no asfalto, tá fazendo o quê?

Nem sabe para onde vai com toda aquela senciência limitada. Ser ignóbil de quatro estômagos, mamífero ruminante que nada sabe sobre destinos, não tem que pegar a estrada! O semovente alucina com o farol na vista e brilha o olho como uma faixa reflexiva.

Chama a concessionária!


A vaca grita, ninguém entende o mugido estridente, os lábios trêmulos, os olhos vidrados, não há que se ter paciência, afinal a vaca não está no seu lugar. Toca a buzina o afoito viajante. A estrada é sua e de mais ninguém. Para onde vai o homem? A vaca não sabe.


Não há coisa que sirva à vaca no pavimento compacto.

Ela grita, novamente. 

É coisa que causaria um estranho desespero essa falta de comunicação. Ao homem, um pequeno desatino, tem medo de romper-lhe as carnes com o pára-choque, ficar com o capô abalroado, quiçá morto por uma vaca na estrada, o que não é coisa fácil de se conceber. O que diria a família? Receberia o seguro? E se fosse algo de deixar-lhe aturdido no acostamento ao bater com a cabeça no voltante, os olhos saltados das órbitas, das ideias confusas, da testa contundida. Não é prudente avançar.

A vaca grita no olho do sol, chamou aos seus. O homem também, vem chegando o carro da Viasempre. É a ajuda, oras, tudo vai se resolver, que tirem a vaca, é o que lhe basta.


Mas havia mais, dezenas de vacas berrando chegavam na faixa, todas desesperadas numa sinfonia terrificante.

Pra onde vamos? Uma só pergunta retumbava!


O pânico as acometia e começaram todas a mugir em uníssono. Havia algo de amedrontador naquelas vozes, era uma cena aterradora a obstruir a via, uma rodovia na contramão da producência, um caos que intensificava a necessidade de respostas da humanidade.


Nunca saberemos o que queriam no olho do calor, não é anunciado um evento assim tão magnífico e improvável da natureza. Como podem as vacas se reunir no meio da rodovia e se pôr a cantar e berrar e gritar sem serem entendidas?

Não diante da dureza e do cinza, não diante dos homens cheios de diplomas, falantes de vários idiomas, os homens que projetam e erguem as grandes estruturas, não eles, justo eles sem saber o quê estava ali.

Do som chiado vindo do carro de portas escancaradas se ouvia a prima notícia de que as vacas se reuniam na principal estrada no país. 


Adiante se aglomeravam os curiosos e seus smartphones transmitindo ao mundo sua própria ignorância ao vivo.


O pixe eternizado que leva a tantos lugares não fazia sentido, não para elas e sua turba estática. Se aglomeraram como gente fossem, sem dar alguma inteligível satisfação em meio caos que se instalava. A vida parou diante do branco atravessado de pelos pretos, marrons, castanhos, de vermelhos intensos, das patas cascudas, parou nas tetas imensas a recolher o calor do asfalto que lhes distorcia a imagem.


Uma buzina, quase inaudível, elas gritavam. Logo uma fila imensa de automóveis se formou.

Seus motoristas perplexos não compreendiam, o que está a acontecer? O que querem? A polícia e seu giroflex. As vacas não sabem o que é giroflex e urgência. As vacas devoradoras de pasto das paisagens campesinas. Muitos estavam as vendo pela primeira vez, curiosos de si, ninguém arredou o pé. Que animal é este? Que animal é aquele?


Não é de se estranhar que o evento inusitado logo tomasse proporções inimagináveis! Isso porque ao ouvir os berros, o pasto tremeu no acostamento e logo vacas e mais vacas vieram de seus campos, currais, rompendo cercas, anilhas, forquilhas, foram se juntar às demais, trotando, correndo e passando e pisoteando o mato, o capim. Já não era de se admirar que tudo ficasse tomado por uma trilha imensa de fendas e cascos, que o chão cedesse nos longos quilômetros, que caíssem as árvores, plantações destruídas e pisoteadas, derrubadas, arbustos arrancados com raiz e tudo pela onda de centenas de vacas. Devastando o redor, as pradarias, as estepes, o pampa, o banhado, o charco, as terras devolutas, as produtivas, o mundo estava pisado por vacas, por óbvio que mudasse com isso, completamente, a paisagem de tudo.


Tv e repórteres chegaram para flagrar o evento curioso que agora era um grande acontecimento: as vacas, dezenas, centenas delas aglomeradas e falando no meio da estrada, gemendo, vociferando, gritando às alturas. Nenhum microfone sobrepujava aquelas vozes incompreendidas.

Lhes falta pasto? Água?

E o campo, não vai bem?

A TV nada sabe, tampouco a internet tem respostas. Veremos como se desenrola.


É dia 9 de outubro, um ano, as vacas não foram embora, a cidade se divide, se rompe entre o urbano e o rural, entre o doméstico e o selvagem, entre a organização e o caos. Derrete como queijo quente diante de sua própria ignóbil vida limitada, enquanto as pessoas deitam e acampam, trazem seus colchões, dormem pela via só para ver o show.

Um acampamento de estudiosos acompanha o fenômeno, vacas conferenciam.


Vacas fazem greve?


Onde estará o humano que fala com os animais? Está ali! Deitado e dormindo, cansado, não pôde abandonar o posto e permaneceu como todos os outros. Não vão, ninguém pode, é demais todas aquelas milhares de vacas, de todos os lugares, juntas para ninguém sabe o quê. 


Mais vacas na estrada, os dias avançam já são incontáveis desde então, de imensurável quantidade aquela multidão e tantas outras não paravam de chegar.

A humanidade amofinada acompanhou a tudo já deitada por completo sobre o pasto da via, que invadira, tomara conta, crescera nas ranhuras abertas à força. O verde reinava sobre o cinza e as pessoas, que não podiam sair dali nem para comer, em desespero, enfiavam a grama crua goela abaixo. Feito vaca, esmagando areia e vegetal com seus dentes amarelados. Arrancavam com a língua espiralada as lâminas verdes recurvas sob chuva e sol, puxando raiz e galho, deglutindo a materia das resmas, que agora só lhes tinham serventia no estado natural. O faziam como se quatro estômagos tivessem. Mas não tinham, não por enquanto.


Tudo parou, a humanidade parou, prosseguiu a marcha dos animais vindos de todo lugar, talvez todas as vacas do mundo estivessem ali. Elas atenderam ao chamado umas das outras, suas vozes em toda terra, juntas. Já não havia mais rodovias, estradas, passos e ruas, não havia mais BR. Não havia mais humanidade. Era tudo só vaca agora.