25 de maio de 2021

Tarde Demais

 Um conto esquecido de meados de 2002.



Tarde demais  

Sonhos miúdos, trinta e três anos, dez meses e vinte e sete dias de mediocridade, sem desafios e abandonado em meio a um noivado de 6 anos. Magda se foi numa tarde de maio, com o seguinte bilhete: "Te trai sim. E vou embora, por que descobri que sexo é bom!". Possuía ombros caídos e olhar permeado de simplicidade irritante. Chapado e sem profundidade, esculpido amiúde pelo serviço público estadual: treze anos de protocolo, carimbos e alienação! 

Morava com a mãe, Candinha, costureira, viúva, infeliz.

Na vida de Roberto as flores se abriram no seu pasto morto, quando avistou pela primeira vez, entre a lente grossa dos óculos e o cenho, aquela de sobrancelha farta, uma prova da revelação de Platão sobre Eros: caminhar leve e cuidadoso, seios pequenos e firmes, escondendo-se por debaixo do vestido de seda, celeste como os azulejos do seu banheiro, sorriso meigo e doce, de olhar tímido e passador de flores no cabelo ondulado. Mais perfumada que as rosas de sua mãe, as quais era obrigado a podar todo domingo, mas ainda assim sutil, no meio do cheiro da carne, essa candura, sem adornos ou maquiagem. Eis que essa foi a primeira visão da mais nova funcionária da repartição: Maria Fermina, de voz baixa e delicada, quadril de centaura, boca a se movimentar como uma lençol dançando no ar antes de repousar sobre a cama, esse era seu sorriso. Disparava com os olhos semicerrados, como uma brisa, porém aveludados e volumosos como Kashmir.

Logo os homens da repartição comentavam o corpo da mulher com disparate e vulgaridade, enquanto Roberto, calado, imaginava poder pedi-la em casamento, isso já no primeiro momento em que seus olhos caíram sobre ela.

Uma semana, duas semanas, e a funcionária sequer olhava para os admiradores, tímida, recatada. Não que não imaginasse, lá nos seus pensamentos mais íntimos, quais os desejos de todos à sua volta, ao menos Fermina não esboçava qualquer atenção em relação a isso. Ocorre que essa conduta provocava um frenesi maior ainda nos colegas de trabalho: "Ai, que eu pegue esta Santa!", falava Geraldo, o chefe da repartição, entre um café e outro aos demais, como uma bando de urubus rondando um moribundo.

Roberto, na intermitência de um olhar ora ativo, ora passivo, perdia e recobrava forças para dirigir-lhe um Bom dia, era quase como faltasse oxigênio no cérebro, como fosse desmaiar desventilado. Era o último a sair da repartição, esperando ficar a sós por um momento com Fermina, até que um dia, aconteceu. Quando finalmente notou que estavam sós, sentiu seus músculos enrijecerem, seu coração disparar, seu corpo ferver. O relógio martelava o ponteiro, um segundo após o outro, ele sabia que deveria falar algo, mas sua garganta tremia e sua língua se retorcia. A mente fora invadida por uma febre e a vista apertava, embotando o pensamento Roberto não conseguia conter o suor nas mãos macias, era evidente seu nervosismo! Ao ver que Maria juntava suas coisas, prenunciando a ida para casa, foi que sentiu o relógio martelar os segundos, mas sua fala, nem boa, nem anestesiada, saía. 

"Pense algo Roberto! Pense em algo para falar!" ordenava a si mesmo, "Convide-a, para tomar um café. Não, não...", "Ir ao cinema? Também não...". 

Até que sentiu como se seus pensamentos houvessem sido lidos, escutados, como se gritasse em momentos atrás tudo que pensara, porque escutou aquela voz doce suspender seu bloqueio: "Tu não queres tomar um café comigo?", perguntou a funcionária, com o casaco na mão e um sorriso no rosto. 

"Eu?", interpelou, nitidamente aterrorizado, o medíocre funcionário. 

"É, tu mesmo!", ela completou com um sorriso no rosto enquanto ajeitava o casaco sobre os ombros.

"Bom, bem... -balbuciava Roberto - é... hum... Sim, sim!". 

Roberto saiu com a mulher, esbarrando pelas coisas, a visão espacial dos obliterada, por conta de sua coordenação motora subdesenvolvida de sedentário e agravada pelo estado em que  se encontrava. Tomaram um café, e Roberto a deixou em casa. "É a mulher da minha vida", pensava o funcionário, sorrindo pela rua.

Os encontros tornaram-se freqüentes e secretos. Adquiriram a contumácia das saídas combinadas com olhares, sorrisos se encontravam ao mirarem o relógio perto da hora do fim do expediente.

Porém ignorava Roberto, vendo somente aquilo que desejava, as constantes mudanças de comportamento de Fermina durante os encontros: pintava a boca, desgrenhava os cabelos, fumava em uma longa cigarrilha e aproximava-se insidiosamente dele, que continuava inerte, conforme os bons costumes que sua mãe lhe ensinara; queria casar-se, como todas as moças de honra e rapazes de boa família faziam. Quanto às atitudes dela, embora  consumissem com febre e desejo o presbiteriano evanhoado, tornavam-se mais explícitas e sedutoras, porém ele não podia recriminá-la, afinal era uma inocente jovem, apenas apaixonada. Entretanto, após um determinado dia, tudo cessou de vez e ela não mais o esperou após o expediente.

Roberto: em uma semana passou de funcionário ativo à desesperado, estava consumido! Em duas semanas sua carcaça fora devorada por pensamentos recorrentes e se viu tomado por uma obsessão tresloucada. Em Três semanas, tornara-se uma sombra de Roberto.

 Queria falar-lhe, perguntar o porquê. Mas sua covardia o engolia, e ele, de um tristão sonhador beirava um louco desventurado: barba por fazer, terno amassado, cabelo despenteado, sem gomex. Um mês, dois meses e transfigurara-se em uma besta, animalesco, desmedido e atabalhoado por ondas irascíveis de fúria.

Os demais funcionários se perguntavam o que havia acontecido com Roberto, que chegava na repartição, por vezes cheirando a Whisky barato: "Ouvi dizer que a Dona Candinha Morreu fazem duas semanas. Deve ter morrido de desgosto, a pobre carola, ao ver o filho derrocar na vida..."

Roberto sentava na sua mesa, colocava a bebida escondida dentro da gaveta. Carimabava a folha com força, secava o suor com a manga. Coçava a barba com a mão que logo levava afrouxando a gravata, olhava Fermina com olhar faminto e a calça apertava, como um touro rufião. Estava louco. Seus hormônios eram despejados em um turbilhão na corrente sanguínea, suava como um porco. Queria vingar-se daquela maldita, principalmente depois de saber que ela estava saindo com Geraldo, aquele cretino, casado, beirando os sessenta anos de profissão! Queria pegar a cadela, surrá-la. "Maldita! Hoje vou lhe mostrar no que me transformou!".

Pois no fim do expediente aproximou-se de Fermina coçando a barba e com olhar firme, segurou-lhe do rosto grosseiramente e o virou na direção do seu olhar: "Hoje quero falar contigo", e jogou o rosto da funcionária. Sentou-se na cadeira e ficou admirando as coxas de Maria, cujo relevo se precipitava através do vestido.

Depois que todos saíram, ela a Roberto se dirigiu com impáfia: "Que queres tu de mim?".

E apesar da distância indiscrepante das últimas semanas, seus punhos debruçados por sobe a mesa imprimiram linhas de suor, enquanto projetava o tronco insinuando-se brevemente na altura do olhar de Roberto, insinuando algo.

Desorientado, pegou-lhe firme do punho, num bote, olhando-a nos olhos: "Tu és uma cadela! Era isto que querias, sua puta?", perguntou enquanto a funcionária tentava desvencilhar das mãos rudes do louco: "Eu não queria nada!". 

Ao ouvir isso Roberto foi tomado por uma sombra, uma fúria incontida, arrastando Fermina pelo cabelo até a escrivaninha dela, com um braço pôs ao chão os pertences da jovem, com o outro braço, teso e cheio de hormonas desestabilizadas, a empurrou de costas, rasgou-lhe a blusa; revelou-se então aquela funcionária recatada e cristã no limiar dos segredos, as costas tomadas por cicatrizes de açoite. Foi que abriu o cinto, enquanto ela tentava fugir. Tomado por ódio profundo engalfinhou-lhe uma mordida visceral no rosto enquanto violava sua intimidade alva com força e violência, sodomizando-a como um animal, dilacerando suas entranhas delicadas. 

E quando terminou, sem querer saber das condições da mulher, dirigiu-se a ela como praticasse uma vingança: "E agora, gostas?! Hã?!",  e aterradoramente, escutou "Era assim que sempre te quis, nas dores e nos gemidos… Mas se vai tarde a tua alegria, não te pertence minha liberdade, assim como jamais meu corpo, de outra forma, pertenceria…”.