20 de março de 2021

 

Fortuna Fallax


Mesmo antes de estar ali sentindo a criança sair dentre as pernas da Jovem, estirando sua pele e forçando a vida para fora, a velha lembrara das mãos na tina e do clarão pela manhã, não sabia de onde viera, tampouco porquê estava ali. Mas de uma forma misteriosa, sabia tudo o que sabia, das desgraças do mundo que vivera, da fortuna que deixara ao acaso. O clarão branco dera lugar ao azul, frio e cortante, depois viu as mãos envelhecerem repentinamente dentro da tina, como fosse mil anos em um segundo, inevitável.

Agora estava ali, como num piscar de olhos, esfregando gordura de carneiro no parto. Ali, junto dessa mulher que paria como fosse ela mesma, a dor vinha e ia e era tão intensa que quando amainava, fazia-na pensar que não poderia vir mais forte: “pobre mulher”, pensava. Talvez lembrasse de ter parido algum dia, mas a lembrança não fazia mais sentido, eram somente luz e brilho desconexos, uma colcha esfarrapada, puída,  cheia de pó e buracos.

Mas a dor da mulher vinha.

E por mais que se esforçasse, não lembrava quem era a Jovem, exceto que lhe era familiar. Talvez parecesse nova e velha ao mesmo tempo, castigada, porém macia. Aparentava ter passado por tantas provações que se mostrava capaz de aguentar qualquer coisa, exceto pela estranha vista leitosa e pela raiva inexplicável que lhe escapava até na parição.

Foi que, quando escutou o choro e via-se no estupor do final daquele trabalho, de imediato o coração lhe bateu rápido, subindo uma ânsia. Um desespero: os três corações batendo como um. 

Uma angústia arrancava a jovem daquela cena, uma necessidade urgente de sair. Quis ir embora e já foi levantando do catre forrado, escorrendo as vísceras puerperais.

A Velha acabara de passar a faca no cordão, com o menino sobre as peles, quando sentiu a mão trêmula repassar pelo seu braço, então a parideira disse, secando o suor da tez com a barra do avental:

-Esse é meu filho, o chama de Hector, O infeliz. Porque já nasce na desgraça e não pode gozar do amor. Ninguém é por ele, pobre filho meu. Eu não posso dar cabo da criação, porque meu destino já tracei, é vil e dança com a morte, tal sina não quero para ele. Dize-lhe que a mãe se foi, que o pai sumiu, não dirás mais que a verdade. E se um dia vir a mim, eu o refutarei, porque não quero que me veja como a mãe que deseja, serei cruel e amarga, eis a fortuna pouca de meus dias: é porque fico, que me vou. Mesmo nessa bruma branca que se assentou em meus olhos, vejo a ti, Hector, levaste o melhor de mim.

-Fica, cria teu filho! -disse a Velha oferecendo o menino nos braços pelancudos para a mãe. Mas a mulher nada mais falou e foi indo e chorando com a boca caída, arriando toda a infelicidade que ainda encontrava em si. Foi até sumir entre a mata, mirando para trás com os olhos leitosos que nada podiam ver.

-É essa a maldição que tua mãe te impingiu, chamar-te como Hector, O infeliz. Pois o dizer de mãe é como quando verte o limão sobre o leite fresco, talha. Mas se os Deuses estiverem olhando por ti agora, aqui vai o que te digo, Hector, tu que acabas de vir ao mundo já provando de sorte tão amarga: que a infelicidade não te seja desespero, e que tenhas a força e a sabedoria para atravessar os dias ruins. Que da infelicidade faças a luz que te moverá em busca da realização, porque no destino do mundo, Hector, O infeliz, ninguém nasceu para a felicidade, o augúrio de tristeza é nossa razão. Aqui neste mundo estamos para sofrer e a felicidade é uma gota nesse imenso rio de agruras. Serás o mais preparado para esse mundo, te digo, tu Hector, O infeliz, irás conhecê-lo como ninguém.

 A velha enrolou o menino nas peles e passou um pano úmido para lavar-lhe o rosto. Ficou o embalando por algum tempo.

E foi que ao final do primeiro dia o menino começou a chorar de fome. Ainda que uma ama, ela não poderia ser a nutriz do menino. Apanhou uma porção de leite do jarro, com uma folha de milho enrolada, como um canudo, e pôs na boca do menino. Entre soluços e espirros a cria sorveu o alimento, ainda que com dificuldade.

Aquela era uma tarefa difícil, a de alimentá-lo. E certo era que não bebia o que devia para se fortalecer, e dois dias após o nascimento, uma forte chuva deixou tudo úmido e doentio.

E a Velha, caíra haurida, muito fraca, mal conseguia levantar o machado e picar a lenha do fogo. O frio se infiltrava pelas frestas e pelo telhado mal coberto. Muitas goteiras surgiram em todo lado após a chuva forte.

Tratou de se manter mais ocupada em escorregar o leite pela folha dura de milho, esquecendo por vezes dela própria, em suas necessidades de calor e alimento.

No quinto dia a criança chorava num frêmito ininterrupto e a Velha, escorada na parede talvez tenha perdido os sentidos, voltou a si escutando ao longe um barulho na sua cabeça, como fosse, talvez, uma lembrança de algo. Uma sensação de que precisava fazer alguma coisa naquele momento, mas em seu devaneio não sabia se estava acordada, se sonhava ou simplesmente revivia uma memória distante.

Então, de súbito recobrou os sentidos porque o choro ficara tão estridente que não pôde ignorá-lo. Mas saltou aturdida, sem compreender o que estava acontecendo. O bebê se remexera e estava, além de faminto, nú. As peles haviam caído e se aliviara  muitas vezes ali, e tudo estava molhado e frio.

A Velha foi rastejando cobrí-lo.

Mas o choro persistia. Então viu que não era somente o frio, era também a fome. E ao apanhar o leite do ânfora, estava azedo. 

Foi que a ama, se forçou até o tambo, mas não tinha músculos para erguê-lo, não tinha forças para nada e acabou por virá-lo.

O menino tremia o peito entre soluços e lágrimas afogadas, fazendo retumbar os ouvidos de sua criadeira.

A Velha respirou fundo e foi levantando-se muito lentamente, apanhou um copo de madeira que estava pelo chão. Foi saindo do casebre e indo em direção à leitaria. Passou pelos cachorros que latiam incessantemente, mas ela não tinha forças para comandá-los. Antes ainda de conseguir chegar na ordenha, caiu e deixou o copo rolar pela lama. Mas o leite não vinha. A ordenha empedrara e a vaca gemia de dor, fugia e resfolegava. Empurrou a velha para longe, que voltou se arrastando, enlameada, para dentro do chalé.

Então, desafortunada, se prostrou e chorou. E o rebento seguiu no esforço de se fazer ser atendido, em desespero.

Talvez tenha cochilado, e quando acordou o menino continuava seu pranto agonizante.

Foi então que a  Velha conseguiu lembrar de algo, algo que havia guardado entre um couro cozido e alcatroado, enterrado sob a taipa solta do assoalho.

Trêmula, ela afastou a madeira, rasgou a terra com as unhas, e trouxe o embrulho para si. Com muita dificuldade mordeu e abriu as peles fervidas, fazendo o colar cair no soalho. Postou as mãos trêmulas ao redor da jóia e voltou para o catre onde estava o menino: “Toma Hector, O Infeliz. Isso te pertence. Eu bem o queria para mim, mas estou tão velha, como uma corda puída de barca ancorada, que no primeiro tranco se despedaçará, a nau vai sair sem rumo. Vê que isso te pertence, penso eu. Vê que isso vale mais que um reino, e na tua pobreza e desgraça és um rei. Quem dera fosse isso capaz de te alimentar, mas as riquezas não são feitas para que nos dêem a vida, mas tão somente para que, vivendo, possamos delas gozar. A Fortuna de que gozo é minha maldição, uma vez enxergando, não lembro, quando lembro, eu fujo. Então o magnífico está aí, e de nada te adianta, tampouco adianta para mim que estou morrendo. Vê que tua graça é mesmo teu destino, pobre infeliz.

A velha colocou o colar ao lado do menino, e repousou ali, como que para morrer. A pedra do eterno incrustada no centro da roda de ouro rebrilhou. Os lábios fracos ainda tinham força para ordenar uma última vez, ela lembrou: “roda, Oh, Fortuna Fallax!” e aos poucos, fez gemer uma fagulha azul. E outra. Até que novamente uma luz se acendeu ali, começou a girar como uma chama viva em seu interior, iluminando todo o casebre, a sorte  distante através do tempo e do espaço rodando misteriosa, onde a carne e eternidade são um só.

E então o menino parou de chorar, a Velha não mais se moveu, não até enxergar as próprias mãos na tina, e se ver perdida através do clarão branco da manhã.



Jaque Machado

escritora, advogada e mentora de comunicação e escrita.