11 de julho de 2021

O Sentinela da Primeira Atalaia


 


O velho ermitão

As ondas rebentavam com força sobre a praia de cascalhos acinzentados, lançando uma névoa intensa nas margens planas poucos iluminadas e frias de Gorlimum, a primeira extensão de terra depois do mar do Leste, o mundo das águas endurecidas, o lugar de gelo e pedra além das zonas conhecidas. Frield recolhia as madeiras que as vagas traziam, boas para vincar os encaixes dos estertores do seu abrigo. Blocos imensos de gelo tingiam de brancura o mar chumbo, e projetavam-se fora das águas frias como fossem cidades inabitadas, diminuiam até chegar à praia, quebrando suas longas extensões gélidas e encalhavam sobre os antigos cascalhos à beira-mar, recebendo, até serem destruídas pelas ondas, a fúria dos Deuses das profundezas.

Frield vinha coberto pelo manto branco de couro de bjorn, o gigantesco urso alvo dos domínios de gelo. Na idade tenra aprendiam a abatê-lo, ele e os de seu povo, homens que viviam nos confins inóspitos das geleiras de Kromm. Alimentavam-se dos animais marinhos que cobriam as praias na época de acasalamento, das aves e seus ovos que coloriam de preto as encostas geladas além da praia. Caçavam as grandes baleias desde sempre, comendo sua carne, usando seu couro e deitando seu óleo sobre o corpo para se aquecerem. Os homens de Bar vieram de Gorlium, levando consigo os saberes dos antigos sobre como caçar e preparar os grandes animais marinhos.

Além do barulho ensurdecedor das ondas na praia, Frield ouvia um rugido, que crescia a cada momento. Largou as madeiras longe das águas e puxou das costas o velho arco de galho retorcido. Ficou à espreita atrás de um grande bloco de gelo.

Então a imensa criatura apareceu correndo em direção ao mar, jogou-se através das ondas que se faziam momentaneamente prateadas e mergulhou. Emergiu com quatro arenques na mandíbula e nadou com a cabeça fora d’água até a praia. Deixou os peixes se debatendo sobre as pedras e foi os arrastando delicadamente com as garras, enquanto seu pelo denso e alvo endurecia  encharcado pela água do mar.

Frield foi deslizando contra o vento de uma calota de gelo a outra, procurando a distância certa para abater o bjorn. Então manteve os olhos abertos, sem piscar, até lacrimejarem. O capuz lhe cobria a cabeça, escondendo os cabelos brancos e a boca tapada por uma gola, estava úmida, a respiração descongelava a geada que se acumulava no pano.

Os dedos grossos e de idade avançada, parcialmente descobertos, mantinham a corda do arco tesa, e veio o momento de concentração que precede o abate, uma flechada certeira no dorso do animal. O Urso rugiu e sacudiu a cabeça na tentativa de alcançar o lombo e morder a flecha.

Então Frield disparou a segunda flecha e correu na direção de outro bloco, aguardando a reação do animal.

O bramido intenso e desesperado do bjorn abafou as ondas explodindo na praia e ele foi saindo com muita velocidade em direção à geleira de onde viera. 

O caçador recolheu a pesca do urso, a colocando na bolsa de couro e armou o arco, indo perseguir o animal a uma distância segura, rastreando as manchas vermelhas que tingiam a brancura sem fim.

Adiante, mancando, estava a criatura, que recebeu uma nova flechada, dessa vez próxima ao ouvido, só então deitou.

Frield retirou uma faca rústica feita de ossos de baleia e cortou as entranhas do urso ali mesmo. Primeiro comeu o fígado ainda quente. Uma sensação de conforto deslizou pela boca carmim, entrando goela abaixo e aquecendo o corpo gelado.

Porém, ao se afastar da praia Frield não viu a galé imensa que desviava das grandes montanhas flutuantes de gelo, e foi dar nas pedras cinzentas da costa.

Os homens desceram na praia e foram direto à caverna de gelo onde Frield morava, que ficava sob a geleira de Zigmund, eles queriam aquilo que o caçador guardava há muito tempo, as armas que os Deuses forjaram para os homens, mas não acharam nada, exceto os pertences rudimentares do guardião.

Frield retornou pela praia, mas quando vislumbrou a pavilhão sombriao hasteado no cordame principal da galera, paralisou, deu meia volta e foi na direção da encosta, onde em uma gruta de gelo guardara o último barco, aquele que o trouxera de volta a Gorlium.

Tanto tempo se passara, tanto que Frield deixara de contar. Vinha um dia após o outro, e a única coisa que o guardião proscrito notava é que suas fartas sobrancelhas tornaram-se brancas, caindo um tanto na frente dos olhos.

Depois de vagar por incontáveis anos pelo mundo ameno, além do mar do leste, ele sabia onde encontrar refúgio, nas altas e frias montanhas de Picoalvo, então , com a chegada dos homens que o perseguiam novamente, sabia que não estava mais seguro, nem aquilo que deveria proteger. Parecia que afinal seus sonhos e visões estavam se concretizado, teria que retornar para o oeste para morrer, exatamente como seu Deus havia dito que aconteceria enquanto repousava o corpo velho e cansado sobre a enxerga do seu refúgio algumas noites atrás.


O Sentinela



-você está aí! Venha mais perto. - Hector retesava o arco com seu único olho bom emparelhando a mira. O ar saía branco pelas ventas, como tudo naquela desolação. Era dia de caça, as tempestades de neve se acalmavam e os animais deixavam suas tocas em busca de comida. Ele também, o animal nas geleiras, o proscrito no silêncio. -aí, bem aí… fique paradinho amigo, serei rápido. - os dedos se abriram e a flecha voou como tivesse consciência própria, indo direto ao pelo branco e manchando a neve ao redor de um vermelho intenso. Finalmente, Picoalvo via cor.

Quando o vento zunia e assobiava nas paredes de pedra é que Hector sentia-se escutando alguém. Tinha uma charla com aquele sussurro perdido, naquele desolamento branco, era seu confidente aquele vento nas paredes. E era nesse momento que lembrava de conversas, ideias que vinham na mente e desapareciam muito rapidamente. 

Ainda que tenha esquecido de muito, pessoas, coisas, falas, palavras, acontecimentos, nunca esqueceu o que ouvira de um preletor andarilho, ainda pequeno da Fortaleza do Sol, disse o velho que o Livro dos Mistérios ensinava que todos os animais e coisas existentes foram paridas da Primeira Consciência e que com o passar das eras eis que se lançaram apartadas Dela. E seguiram um rumo incógnito, crescendo e tornando-se tudo que é visto. Que conforme ia o tempo, os haveres do mundo foram se refinando e se destoando uns dos outros. Assim, a unidade divina, aquilo que o Preletor apontou como a matéria de que o todo é feito, assumiu muitas composições distintas e foi se unindo de maneiras diversas, para formar coisas nunca antes vistas. Ao passo que se a história da vida fosse percebida de trás para frente, os vivos retrocederiam em seu distinguimento até voltarem à criatura singular que lhes originou. E voltando mais na história, a grama retornaria até o pequeno gérmem e único de todas as pradarias, os rios voltariam às suas nascentes, as areias retomariam à sua antiga forma de pedra e cristal, reclamando a sua parte no grande pedaço de pedra primitiva e fogo de que era feito o mundo quando surgiu. E tudo, seguindo essa faina, até que as estrelas coubessem em uma única esfera, que desde os antigos era chamada de Primeira Consciência, D’us.

Essa palavra martelava sua mente, arrastava seu pensamento para um lugar vago, antigo e de difícil compreensão. Um lugar passado, que nem a memória atávica mais remota era capaz de alcançar. Concluíra sobre aquelas palavras que o tudo caminhava sem proprósito na direção inconstante de qualquer lado, com o objetivo único de tornar toda existência maior e mais cheia de coisas que eram diferentes entre si. Isso vinha para o deixar aliviado e ao mesmo tempo perplexo, ainda que viesse imperar em Hector o desprendimento da necessidade de atribuir um porquê à sua própria existência.

E nesse caso não se sentia compelido a explicar a natureza das coisas e dos homens como Shilo, seu Preletor na Fortaleza, comumente tentava fazer. Sua convicção era de que a existência seria caótica, nem boa nem má. O vivo não é nem bom nem mau, mas singularmente diferente. E esses pequenos estilhaços aos quais se atribuem o estigma de bondade e maldade, não são nada senão parte pequena da malha de caos de que é feita a essência dos vivos.

Em sua convicção íntima era rodeado pela certeza de que a natureza das coisas era o caos, pois ele mesmo só estava ali porque sua mãe fora estuprada durante um saque. E que ao ser abandonado aos cuidados de uma moribunda, não encontrou a morte porque fora salvo pelo homem mais terrível que o Oriente conheceu.

E que mesmo o tendo salvo e cuidado como a um filho, o mandara para um lugar temerário, com a finalidade única de se tornar um guerreiro do qual se arranca a misericórdia e a empatia, para torná-lo um homem de jade.

Em seu coração ainda era frágil a lembrança reconfortante da Fortaleza. Das lições de equitação que Nosso Senhor lhe prestava ele mesmo. Das competições de luta e espada, às quais era levado pelo homem que lhe fazia as vezes de pai. Sentiam o cheiro e ouvia as vozes das festas, a fumaça da comida quente dançando no ar sob as centenas de archotes acesso nas noites mais escuras. Lembrava do cheiro pungente de couro, suor e alfazema de barba que vinha da máscara do Nosso Senhor.

Então veio aquela separação e o choro na cabina do navio, atravessando as águas silenciosas rumo aos Salões de Jade, fazendo aquelas poucas noites se arrastarem como mil anos.

E depois a tortura a que foi submetido, essa que lembrava com rancor e o fulminava com uma raiva profunda, fazendo desvanecer cada cena de carinho que ainda remanecia sobre Nosso Senhor da Fortaleza do Sol e ele ainda menino. Aquele homem forte, com alto senso de justiça, porém impiedoso é incapaz de compaixão, o Imperador lhe fizera as vezes de pai, da maneira como pode, Hector entendia as durezas pelas quais Tantalus passara, mas não compreendia como mantinha-se inquebrável ao longo do tempo, tanto nas virtudes aústeras daquele coração amargo, quanto nos vícios de um coração impossível de ser consertado. E tudo terminava numa brancura sem fim, a brancura que o circundava e o ocultava por todo esse tempo, desde que fugira dos Salões de Jade, vivendo nas tocas dos antigos cavadas nos ermos de Picoalvo.

Lá tornara-se um outro tipo de homem duro, forjado na necessidade de sobreviver. Um caçador, um rastreador, um homem oculto nas neves e distante. Alheio aos interesses da guerra e da política, alheio aos conhecimentos mágicos e divinos. Um homem servo de si mesmo no prazer e agrura de perseverar a própria vida naquele cenário inóspito.

E foi errando pelos vales e prados enquanto ia sendo caçado. Até subir pela neve e entrar nos túneis antigos e mal iluminados a que os vivos chamavam Nefertot em Bô e Picoalvo para a língua de todos. Ali ninguém o seguiu e assim se foi como peça de um esquecimento inexorável, tal qual a brancura dos cumes que o escondiam.

Lá dentro das cavernas as pilhas de esqueletos dos vivos de eras passadas. Talvez ali estivesse também aquele ser único, que depois foi sendo como um pigmeu, um kolbi, um oriental, um vivo das árvores, um solarino, depois outros e outros. Talvez ali estivesse os restos do Primeiro vivo ou talvez desses ossos que recolhia e tornava tão agudos tenha feito azagaias, jungindo as resmas na pedra da alcova primitiva até que pudesse rasgar uma carne, fender um couro e partir suas presas.

Na insolente falta de estremecimento sobre a sua própria condição, Hector se via já como parte inexorável da avassaladora brancura do cenário. Com seu manto de lebres, seu olho branco vazado durante a fuga, sua pele translúcida como a bruma, foi que se tornou diferente do que era, mais igual ao mundo de Picoalvo, encerrado em sua constância gelada.

Só não concluiu que o mundo era somente seu lá nos montes, porque do outro lado da montanha havia um proscrito, tal como ele. Mas nunca se dirigiram um ao outro, talvez porque sentiam-se iguais no silêncio e na condição abstrata de sobrevivência, que seria o único liame entre os poucos olhares desconfiados e de cumplicidade que trocaram nos seus raros encontros ocasionais.

-vou tirar sua pele, não vai doer.- resmungava com a carcaça da lebre, já dentro da caverna e iluminado pelo fogo de chão. O vento zunia tímido e Hector lhe respondia como sempre - não avence, estou sempre só, não tens com o que te preocupar, vá assombrar outros lugares, a caça é pouca, não posso compartir contigo. Quê? Queres entrar entre! Mas me traga o frio de costume. Se chegares perto do fogo não o apague, como insistes em fazer toda vez que entras.

Talvez o vento tenha escutado Hector afinal, Mas sem querer obedecê-lo entrou rápido e deslizando algumas pedras nos umbrais da cave.

“Não estou só.” , pensou Hector, deslizando a mão no punho da faca de osso, abaixando-se atrás das pedras. Ergueu a cabeça sobre o ombro e olhou para trás, vendo uma sombra rápida se esgueirar para dentro do refúgio. Uma respiração ofegante neblinou acima das rochas e uma besta traquejou na pouca luz, um lince das Neves se aventurava atrás do cheiro de sangue fresco derramado.

Hector enrolou mais peles em torno do antebraço direito, como já sabia ser eficaz para aparar a mordida afiada da fera, e ficou à espreita, enquanto o animal deslizava cuidadoso sobre o terreno irregular que o proscrito abrira ao longo dos anos com seus pés grosseiros. Enrolou o cabelo que se amontoava em longos grumos cheios de gordura de cabra montanhesa, deixando os olhos livres para apanhar os lances do embate que viria, e quando a criatura estava próxima o suficiente, quase contornando as pedras, Hector se mostrou como oponente, urrando como um urso. O lince branco, ainda que vacilante, saltou com um rugido na boca sobre o homem e como sabido abocanhou a primeira coisa que viu, o antebraço cheio de couro do inimigo. Hector desferiu várias facadas nas costelas do lince enquanto caiam ao chão da cave, mas não parecia surtir efeito na criatura, que entrou em frenesi, com fome e frio, o instinto daqueles que perseveram no gelo.

Os gritos e urros se espalharam sobre o teto curto e ecoaram além nas profundezas dos túneis no qual desembocava a estrutura, por cima do corpo forte e esguio do lince o rapaz viu uma sombra alta e corpulenta se projetar ante a Luz pouca que entrava pela embocadura. Um assobio. Era ele, o eremita.

O lince acompanhou o comando e se afastou do proscrito, voltando cambaleante para junto de seu mestre.

Hector recostou-se na pedra, segurando o braço contundido e colocando o vento pela boca, exausto.

Ficaram observando um ao outro, parados, até que o Eremita decidiu avançar, mas parou antes da fogueira, deixando o capuz cair e seu rosto velho aparecer, bem como seus cabelos brancos como a neve, que se iluminarem sutilmente pelas chamas.

-não corte as patas, os tendões servem para unir as peles como um casaco e também são bons para remendar os arcos. - ele acabara de pelar a lebre, pendurando o fino corpo sobre o fogo, terminando de incinerar os pelos que ainda se colavam no sangue do esfolamento. Abriu a caça e tirou os miúdos, comendo o fígado ainda cru. -coma assim e viverá 300 signos.-depois ofereceu os dedos para seu companheiro lamber, como um gatinho domesticado em um palacete. -shii…- ele confortava a criatura machucada com alguns cafunés entre as orelhas. - Esse é Neve, meu amigo. Não costumamos caçar por esses lados, mas viemos mais longe, a caça está pouca e o cheiro nos trouxe aqui.

- eu sei- disse Hector, se acomodando e fazendo uma careta enquanto tocava o antebraço. -já vi você, lá do outro lado do rio da geleira. Como se chama? O que faz aqui? digo, aqui nesse nada.

-Frield, Gorliniano. Estou fugindo, como você.

-já não fujo, só me escondo. Como sabe?

-e tem alguém que viria para cá querendo ser encontrado?- Frield arremessou um pó escuro nas chamas e fez levantar o fogo nas alturas, depois espetou a carcaça e ficou a segurando sobre o fogo.- vendo a supresa de Hector, deu um sorriso de satisfação- é raspa de rocha. Se trouxer os pedaços soltos e pulverizá-los, ficarão assim. Essa, a que fica lá no fundo de todos esses túneis, lá nas profundezas escuras, elas queimam mais que qualquer madeira. Sua chama dura dias se colocar uma pequena Rocha dessas no fogo. Isso está por toda Kroom e até em Gorlimun temos isso, calha nas praias quando as geleiras decidem escorregar nos mares.

-onde é Gorlimun? - o eremita estalou o bico e apertou os olhos, pensando. 

Depois apontou na direção da saída da cave. 

-é lá, depois do oceano de pedras de água. Mas já não é bom lá, os sombrios chegaram.

-os sombrios foram derrotados há 40 signos. Quem destrói o continente são os vivos por eles mesmos agora. Principalmente meu pai. - Hector tinha um pouco de pesar na voz e envergonhado baixou a cabeça.

-a guerra acabou então?

-sim. Contra os sombrios sim, mas entre os vivos só aumenta. Mas já não é assunto que me preocupe, sai de lá com 8 anos e fui mandado aos salões de jade. Fugi, mas não sei do mundo desde então. Aqui não é preciso.

-ah, é preciso sim. Um homem que tem valor, se torna escravo, como diria o sábio do poleiro em algumas de suas milhares de citações.

-e de que adianta valor e depois ir a guerra e morrer. Assim morrem os bons e ficam o maus.

-e quem disse que o valo consiste em somente estar vivo, as vezes a virtude nos leva ao inevitável, e esse é o valor do homem bom, consiste naquilo que está disposto a perder para se manter íntegro. -o eremita pegou o imenso arco que carregava, uma madeira recurvada que mais parecia um galho velho. -esse arco já foi vergastado centenas de milhares de vezes, matou muitos. Ele é bom? Ele é mau? Não é nenhum dos dois, pois não é capaz de se sacrificar por aquilo que faz com que exista, é preciso um valor, um vivo que o empunhe e lhe mostre onde a flecha deve ir, para onde seus ideais devem caminhar. Isso é propósito.

-bonito seu arco.

-não me pertence. - disse Frield depositando a arma às patas do lince, que tratou de defendê-la rugindo para Hector.-sou apenas seu guardião. Assim como sou o guardião de toda aquela ala do outro lado da montanha, minha sina eterna, vigiar os últimos refúgios dos vivos.

-quem te deu essa sina?

-tu e eles, mas quem a escolheu fui eu, eu disse sim. Você me ouviu antes? Propósito, é que me alimenta.- Frield sorriu, olhando o rosto sofrido do rapaz, pensando afinal, que talvez seu coração não fosse tão gelado como suspeitava, que teria valido a pena atravessar o grande rio da geleira e ter vindo até o jovem com aquela desculpa. Quando o umbral da Atalaia acendeu, Frield soube que a guerra finalmente havia começado, que o mundo se retorcia em dor e sangue novamente, mas que sozinho não poderia seguir, Hector estava lá e teve a ideia de trazê-lo consigo.

-sabe o que é uma Atalaia, rapaz?

-ah não! Nunca ouvi falar.

-a Atalaia é sempre a última esperança do mundo. E lá do outro lado da geleira há uma, com tesouros, prisioneiros e oculta na imensidão alva. Quer ir comigo, ter propósito?

-eu não saberia…

-vai aprender.- Frield passou a mão na perna e olhou no fundo dos olhos do rapaz, que brilharam com a luz das chamas- qual é tua graça, filho de Reis?

-me chamo Hector, o sem fortuna.

-muito apropriado, Hector, o sem fortuna. -agora te chamarei Caolho e me chamarás mestre. E assim subiremos aquele monte branco de merda, até chegar aonde ninguém deseja ir. -Frield sorriu com compaixão e de forma carinhosa, coçando a longa barba branca toda tramada com ossos.- olhe! Nosso assado está pronto. -e arrancou uma perna do coelho e arremessou para o lince enquanto estendia o espeto para junto de seu acólito.





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