9 de junho de 2021

Síncope

 Bagagem



    Voltar para casa é qualquer coisa como chegar ao lugar onde você é o que é. Não há tempo que apague a lembrança quando se está perdido, quando se está doente. Aliás, quando se está perdido a lembrança é como um farol na escuridão, indicando um porto seguro, terra firme. Quando não há o que lembrar nos foge o farol, nos foge a segurança, não há como retroceder. Cada lembrança nos aproxima de casa, e neste sentido “casa” também é uma metáfora para “si mesmo”, aquilo que somos em essência, e que conserva o individual. Aquilo que somos e que devemos resgatar periodicamente para que não mudemos ou nos percamos de nós mesmos. Assim, ao lembrar de um cheiro, lembramos de algo como o lar, o cabelo da mãe, o perfume da namorada, a pele do filho. Mas e quando não lembramos de nada? Resta apenas um cheiro, mas sem sentido.

    Marco arrumava a mala, com um pouco de receio, um pouco de medo dos objetos que ali colocava e suas histórias desconhecidas: uma manta ocre surrada, com um furo. Ele encaixou seu dedo no buraco, balançando pra lá e pra cá. Mas não fazia idéia de como viria a furar o cachecol, nem ao menos de onde viera.

    Assustador.

    Colocou um par de meias ainda embaladas que comprara em uma liquidação, a etiqueta estava pendurada, com uma remarcação por cima da outra. Colocou na mala algumas roupas que ele desconhecia. Pôs a mão no bolso e encontrou um cartão e uma chave: “Hotel Colina do Vento, quarto 10”. Ele não lembrava exatamente nada.


    Como pode um homem caminhar sem que as coisas pelo caminho lhe inundem a mente com lembranças? A todo momento quando caminhamos nosso cérebro não pára de registrar imagens, lugares, rostos, pessoas, sensações, cheiros, movimentos. Como pode um homem caminhar e não lembrar onde foi seu último passo? Como pode um homem, viver, sem saber onde foi seu último passo?

   

    Alguém que não sabe estas coisas não sabe nada. Não sabe se está vivo ou se está morto. Vive de um futuro já despedaçado, um passado que borra como aquarela no álcool e desaparece.


Marco

    Marco tocava a chave no bolso mas não lembrava que aquela era a única coisa certa: um baú onde suas lembranças estavam guardadas, que deveria ser aberto, em tempo, para que talvez ele soubesse e não esquecesse, seu próximo passo.

   

    Antes de colocar a bolsa nas costas Marco ainda atendeu o telefonema de um médico que lhe recomendou ficar em casa, primeiro disse que era alguém, depois chamou a si mesmo de Doutor. Nada fazia sentido. Este era o médico que tentava fazer com que desistisse de sair, o médico que ligou e um telefone tocou e Marco atendeu. Mas logo desligou o telefone e abriu novamente a sacola, colocou mais alguns objetos, olhou para dentro dela por um tempo. Colocou mais algumas coisas. Pôs a mão no bolso e tomou a chave novamente “É para lá que tenho de ir”, sentiu. Ele sabia, outra vez.


    Ao passar pela porta pensou ver outro homem se mover tal qual ele próprio, e se não fosse a moldura até acharia realmente que era outro homem, pois não reconhecia aquele estranho no espelho, aquele cabelo grisalho, como qualquer outro, aquele olho castanho de fitas perdidas. Tocou o rosto e viu o reflexo fazer o mesmo: a pele morena, o maxilar pronunciado, mas achava que o homem estava magro. Muito magro. Meio encurvado, as sobrancelhas também grisalhas, uma cicatriz muito grande percorria sua testa. Ele a tocou, protuberante e avermelhada, talvez antiga.


    Marco morava dentro daquele homem desconhecido, que perambulava por todos os lugares com bastante dinheiro no bolso, um cartão e uma chave, de barba mal feita, cabelos sem corte e olhar disparado, imediatamente triste, imediatamente nada. Não queria olhar para si e se foi. Tinha vergonha de ver alguém que não conhecia, ou não queria conhecer, tinha vergonha do olhar desconhecido daquele alguém do espelho.


    Destrancou a porta e saiu.



    Trem

    O barulho do trem incomodava, mas não mais que o olhar das pessoas que embarcam nas estações. São olhares desconfiados, que temem aos outros e que fogem aos olhares alheios correndo inibidos para os cantos dos vagões. Os olhares fogem para as janelas onde não se pode vislumbrar nada além de borrões. Os olhares fogem para os bancos rabiscados e para o chão inerte. Para as portas fechadas, que se abrem apenas para alguns olhares saírem e outros olhares entrarem. Nos olhos é proíbido olhar. Dói. Fere. Arranca qualquer coisa de alguém sem lhe pedir permissão, olhar é falta de bom senso. Olhar outra pessoa nos olhos é falta de discernimento e continuar olhando para ela é falta de educação. Olhe no máximo o tempo permitido para saber posicionar-se antipodamente a ela e evitar que se esbarrem. Saiba que ela também vai fazer o mesmo. Ambos evitarão um encontrão. O olhar quer dizer muito sobre o pudor, mas se alguém olha para um homem com má aparência é um olhar de qualquer coisa julgadora, um olhar sem pudor. É um olhar de execramento.


    O barulho do trem incomodava tanto quanto os olhares lhe execrando. Mas felizmente ele sabia que ao descer do trem esqueceria todos aqueles olhares, todo aquele trem.


    A plataforma estava fria, soprando um vento sem força e pesadamente ausente de algo, deixando-o frio. Talvez o vento não devesse ser cheio de coisas naquele momento em que tudo tinha terminado. Não havia ninguém na plataforma a quem pudesse soprar morno e acalentar. O vento tornara-se frio na dimensão vazia da plataforma. Nos ares ocultos d'outras paradas onde habitava uma impressão humana o vento soprava bom, ali não. E se Marco pudesse ter entendido, escutado ou até mesmo compreendido aquele alguém lhe chamando no fim da plataforma ele teria voltado. Mas ele correu cabisbaixo para fora da bilheteria e tomou as escadas. Como se estivesse atrasado.


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